TODO PRECONCEITO É IRRACIONAL
Buscando o Sentido da Vida
Delze dos Santos Laureano
“Não se deve nunca esgotar de tal modo um assunto, que não se deixe ao leitor
Nada a fazer. Não se trata de fazer ler, mas de fazer pensar.”
Montesquieu
Acredito que todos nós em algum momento da vida sofremos a tentação de nos perguntar qual é o sentido mesmo da vida. Meu pai, brincando, dizia que nós viemos aqui para buscar um terno de roupa. Nascemos nus e vamos embora com a roupa do corpo. Tendo a acreditar, todavia, que vamos levar mais do que o terno de roupa. Cada experiência fica fortemente marcada no nosso corpo e no nosso espírito. Não precisamos ser especialistas para perceber na nossa pele, especialmente na face, as rugas do sorriso, as expressões de raiva, ou os sinais das angústias acumuladas. Somos como as árvores, os nós denunciam tanto a idade quanto o rigor das intempéries e a nossa capacidade de lidar com tudo isso.
A cada dia aprendemos um pouquinho. O computador do corpo registra sem piedade aquilo que somos. Percebo que com o passar do tempo, olhando esses registros aprendemos a deixar de lado os preconceitos para aceitar o que de fato dá sentido à vida. Confesso que até poucos dias atrás achava a cirurgia plástica coisa supérflua, banal. Ficamos assustados com o exagero das cirurgias estéticas no Brasil. Mudei. Comecei a pensar com mais profundidade acerca do tema após ler o livro “Aprendiz do Tempo”, o livro de memórias, de Ivo Pitanguy, cirurgião que trata as pessoas independentemente da condição econômica delas. Conviver com todas as pessoas é o maior legado que afirma ter recebido dos seus pais e o que deixará para os seus filhos.
Para começar, não posso desconsiderar o fato de que vivemos em uma sociedade capitalista. Seria mesmo impossível à cirurgia plástica não sofrer as influências da sociedade de consumo. Não é diferente com as religiões, com a família ou com os sentimentos. Tudo está à venda. A promessa do mercado é a felicidade imediata, desde que se tenha dinheiro para comprar os produtos no mercado. A família pode ser mais feliz, pode-se estar mais perto de Deus, ou podemos viver em um verdadeiro paraíso aqui na terra, longe de tudo o que nos traz infelicidade: violência urbana, poluição, estresse, depressão, gente diferente. Basta comprar, por exemplo, um determinado imóvel.
Mas volto ao livro. “Aprendiz do Tempo” é uma narrativa bastante interessante. Conta a história de uma vida longa, marcada por desafios, alegrias, muito sucesso, mas, sobretudo, uma capacidade imensa de sentir a dor do outro. Também a humildade de aprender em todos os momentos. Um capítulo especialmente me faz pensar dessa forma, “O incêndio do Circo”, no qual o escritor fala da tragédia ocorrida no Grã Circo Norte-Americano, em 17 de dezembro de 1961, na cidade de Niterói, Rio de Janeiro. Ele era ainda um jovem cirurgião, mas já conhecia o valor da cirurgia reparadora tendo estudado em Cincinnati, nos Estados Unidos, no Hospital Bethesda.
Começando o capítulo, Ivo Pitanguy faz uma auto-análise: “Jamais me lamento. Não me encolerizo. Não choro mais. Se chego a rir, é frequentemente de mim mesmo.” Nessas palavras vejo que as experiências marcaram profundamente esse cirurgião de incontestáveis virtudes e de vida tão repleta de realizações. Confessa ter presenciado naquele incêndio coisas que superam os mais terríveis pesadelos. Uma multidão de 2.500 pessoas, na sua maioria crianças, sucumbiu ao fogo e à falta de atendimento adequado em vista das gigantescas proporções do desastre. O saldo foi de mais de 500 pessoas mortas e outras tantas vítimas irremediavelmente desfiguradas. Tragédia de dimensão inimaginável, o incêndio do circo parece ter ficado esquecido na nossa história. Confesso que nunca tinha sabido desse fato antes.
Naquele ambiente de absoluto tumulto, conta Pitanguy ter conseguido organizar um coletivo de médicos, enfermeiros e diversos voluntários que se dispunham a trabalhar, improvisando o que era necessário. Era preciso controlar a multidão. Era preciso por ordem no caos. Um hospital, cujos funcionários estavam em greve, foi reaberto para fazer funcionar um sistema de atendimento a todos os queimados. Entretanto, na memória do médico, permaneceu como um marco a história de um menino de 11 anos, surgido da espessa fumaça que formava uma muralha em torno das chamas. Gravemente queimado, parecia indiferente aos sofrimentos, com roupas em farrapos olhava para todos os lados procurando alguém. Uma enfermeira pergunta quem ele está procurando e ele responde: “Meu amigo.” Os lábios tremem, mas com olhar alucinado arremete-se novamente na direção do fogo e sem ouvir as ordens em contrário some no meio da fumaça para buscar o companheiro. Todos ficam petrificados, certos de que será impossível escapar novamente daquele inferno.
De repente, conta Pitanguy, um elefante surge do meio do incêndio arrastando panos incandescentes do circo e abre uma passagem entre as chamas. Novamente é possível ver o menino. Uma enfermeira corre então em seu socorro. Ele caminha penosamente, já no fim de suas forças, mas carrega quase desmaiado o amigo. Afirma o médico que a intrepidez e a abnegação do menino marcaram-no para sempre, pois arriscar a vida pelo outro é o mais nobre ato de um ser humano. Não há maior prova de amor que doar a vida pelo outro, ensinou há mais de 2 mil anos o mestre galileu. Naquele momento, fez o juramento de salvá-lo.
O menino, chamado Pablo, estava moribundo, as chances de salvá-lo eram praticamente inexistentes, mas durante mais de seis meses a equipe revezava em sua cabeceira, prodigalizando os cuidados que eram possíveis. Dos Estados Unidos vieram cerca de trinta mil centímetros cúbicos de pele liofilizada, doadas pelo Hospital Bethesda, reserva destinada aos feridos da marinha dos Estados Unidos. Para alimentá-lo eram necessários produtos dietéticos destinados a substituir os sais minerais que o organismo perdera. A pele liofilizada só pode ser utilizada após os enxertos homólogos devido à destruição do derma. Apesar de todos os cuidados, restava um pergunta: Pablo sobreviverá?
Arremata o médico que terra de crendices, de superstições e de fé, o Brasil é sensível aos signos e aos presságios. Certa manhã, uma religiosa foi ao seu encontro com seus passos miúdos, mas toda exaltada, fazendo o anúncio: “Pablo vai sobreviver, doutor.” Ao que ele pergunta: “De onde vem essa sua certeza, irmã?” E ela convida-o a segui-la para mostrar, após por o dedo sobre os lábios para pedir silêncio e muita cautela. “Olhe.” Sobre o parapeito da janela como a contemplar o menino Pablo adormecido, uma pomba permanecia imóvel. A irmã anuncia: “Deus a enviou para anunciar a sua cura!” Ao que ele se pergunta: “Deus ou os nossos cuidados?” Deixa eu responder depressa: Deus nos cuidados de uma equipe dedicada e solidária. O certo é que o menino se cura e aquela experiência muda para sempre o olhar do doutor sobre tudo o que é possível compreender e fazer neste mundo.
Se eu estivesse escrevendo um texto bíblico arremataria assim: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça!” Como não escrevo nesse gênero, limito-me a partilhar mais essa inquietação e olhar nas oportunidades que a vida nos oferece, seja nos fatos, seja nas leituras, para buscar por detrás da fumaça o que efetivamente dá sentido às nossas vidas e o que pode nos ajudar a vencer o risco do preconceito pelo preconceito. O nosso corpo, principalmente a nossa face, mostra a nossa caminhada na travessia da vida. Se para uns os sinais do tempo ajudam, para algumas pessoas marcas tornam impossível a alegria de viver. É preciso harmonizar as marcas com a alma. Acima de tudo descobrimos que nada podemos sozinhos, o trabalho coletivo é o mais humanizador. Às vezes são os elefantes os que mais contribuem em meio aos incêndios. Podem as crianças demonstrar mais determinação, solidariedade e coragem que os adultos. Nos Estados Unidos também tem gente boa, e as pombas continuam, desde o episódio do dilúvio, anunciando que Deus está presente nas nossas vidas, ajudando-nos quando decidimos fazer o bem, apesar de todas as dificuldades. Todo preconceito tem o seu dia de se mostrar irracional!
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