quarta-feira, 31 de julho de 2013

1350- Controle de Constitucionalidade e Jurisdição Constitucional

O  controle de constitucionalidade e a reforma do Poder Judiciário: a necessidade de um novo Supremo Tribunal Federal

Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães


            A primeira classificação das formas de controle de constitucionalidade diz respeito a natureza do órgão ou órgãos que a exercem. O nosso sistema é misto uma vez que existe um controle prévio feito pelo Congresso nacional através de suas comissões assim como pelo presidente da república quando da possibilidade de vetar uma lei por ser inconstitucional, o que caracteriza um controle prévio e político. Após promulgada e publicada a lei o judiciário tem a competência de exercer um controle repressivo que pode ser concentrado através por exemplo das ações diretas de inconstitucionalidade por ação (artigo 102 inciso I, a CF e lei 9.868-99) ou omissão (artigo 103 parágrafo 2 CF e lei 9.868-99), a ação de constitucionalidade (artigo 102, I, a e artigo 103 parágrafo 4 CF e lei 9.868-99) e a ação de descumprimento de preceito fundamental (artigo 102 parágrafo 1 e lei 9.882-99) e pode ser difuso, onde qualquer pessoa pode proteger ou resgatar direitos ofendidos por lei ou ato inconstitucional perante o órgão judiciário competente.
            Desta forma o controle será político quando exercido por órgão que pertença ao poder executivo ou legislativo ou exercido diretamente pelo parlamento (auto-controle como Holanda, Luxemburgo e Finlândia), poderes que exercem funções predominantemente políticas e não pelo poder judiciário, que exerce função predominantemente técnica. O controle será político também quando exercido por Corte Constitucional (ou Tribunal, ou Conselho) que não integrem o poder judiciário e tenham composição predominantemente determinada por critérios de escolha política.
            Um exemplo de Estado nacional que exerce o controle político, concentrado e prévio de constitucionalidade é a França. Decorre do movimento revolucionário francês a partir de 1789 a grande desconfiança em relação ao tribunais, intimamente ligados ao antigo regime. No ano III da Revolução Siéyès propôs à Convenção a criação de um Júri Constitucional que deveria se colocar acima dos poderes do estado. A idéia foi rejeitada mas serviu mais tarde como base do atual Conselho Constitucional previsto na Constituição francesa de 1958.[1] Como já mencionado, este sistema traz um sério problema ao permitir, ou mesmo exigir, o cumprimento indiscriminado da norma legislativa pelo Judiciário, uma vez que este poder não pode se manifestar sobre sua inconstitucionalidade. Entretanto, decorrente da diferença que expusemos entre jurisdição constitucional e controle de constitucionalidade, nada impede (a não ser a falta de tradição) que o juiz francês promova a interpretação constitucionalmente adequada. É importante lembrar que na Europa um dos raros países que expressamente confere o controle de constitucionalidade à magistratura é a Irlanda (e mesmo assim apenas às duas cortes superiores).
            A criação de Cortes (tribunais ou conselhos não pertencentes ao judiciário), como alternativa ao auto-controle de constitucionalidade pelo legislativo (o parlamento ou órgão do parlamento) ocorre após a primeira grande guerra. Sob a influência de Kelsen criou-se na Áustria em 1920 um órgão especial de caráter constitucional ou seja uma Corte de caráter jurídico-político, a Corte Constitucional. Órgãos semelhantes encarregados do controle de constitucionalidade foram também criados na Tchecoslováquia em 1920; na Espanha republicana em 1931 e na Espanha democrática de 1978; Itália em 1947; Alemanha Federal em 1949; Chipre, 1960; Turquia, 1961; Iugoslávia, 1963 e 1974; Guatemala, 1965 e Chile, 1925.[2] Interessante ainda lembrar a proibição da Constituição austríaca de 1920 dos tribunais apreciarem a validade de leis regularmente publicadas. A Itália e Alemanha que adotaram sistemas semelhantes no pós segunda guerra inspirados no Austríaco de 1920, no que diz respeito ao limite imposto ao judiciário traz um pequeno avanço: os órgãos do poder judiciário não podem declarar inconstitucionalidade mas qualquer magistrado tendo dúvidas sobre a constitucionalidade de uma lei que devem aplicar em um caso concreto submetido a sua apreciação, deve suspender o julgamento e remeter os autos à Corte (Tribunal) Constitucional, que então decidira a respeito da questão constitucional.[3]
            Quanto ao controle judicial (exercido por um órgão – controle judicial concentrado- ou vários órgãos – controle judicial difuso – do poder judiciário) tem sua principal contribuição retirada da história constitucional do Estados Unidos da América do Norte. Embora os precedentes de controle de constitucionalidade das leis, judicial e difuso, possa ser encontrado na história da Inglaterra, a afirmação desta doutrina se deveu ao Direito Constitucional norte-americano. De forma diferente da tradição inglesa de reconhecimento da soberania do parlamento, a doutrina construída nos EUA desenvolveu a técnica de atribuir um valor superior da Constituição frente as leis ordinárias. Após a independência do EUA em 1776, encontramos a comprovação da afirmação acima na decisão do Chief-Justice Brearley do Supremo Tribunal de New Jersey, em 1780, ficou decidido que a corte tinha o direito de sentenciar sobre a constitucionalidade das leis. No mesmo sentido encontramos decisão do judiciário do Estado de Virginia em 1782; Rhode Island em 1786; na Carolina do Norte em 1787 e em Nova York tribunal refutou lei por ser inconstitucional, pois havia reduzido para seis o número de jurados.[4]
            O controle de constitucionalidade das leis construído na história dos Estados Unidos da América do Norte é muito importante para o Direito brasileiro, que sofreu influência do direito constitucional europeu continental e norte-americano. Os precedentes acima citados servem para compreender como precocemente foi construído o controle judicial das leis mas um caso em especial é fundamental para explicar o controle judicial e difuso da constitucionalidade, onde todo órgão do poder judiciário, do juiz de primeira instância até os tribunais superiores podem se manifestar sobre a constitucionalidade ou não de uma lei: a caso Marbury versus Madison.
            No caso que criou as bases do controle judicial difuso de constitucionalidade das leis, o juiz do caso Marshal tinha interesse direto na solução do caso. O presidente dos Estados Unidos neste momento era Adams e o seu secretário de estado John Marshal, os dois do partido federalista, derrotado por Thomas Jefferson e seus partidários. Antes de deixar o poder o presidente Adams nomeou seus correligionários para diversos cargos inclusive os vitalícios no judiciário superior. Um dos beneficiários foi Marshal, nomeado para a Suprema Corte com a aprovação do Senado. Como secretário de estado, cargo em que permaneceu até o fim do mandato de Adams, ele não conseguiu se desincumbir da missão de distribuir os títulos de nomeação já assinados pelo presidente para todos os indicados a cargos no final de mandato. Um dos títulos não entregues nomeava William Marbury para o cargo de Juiz de Paz no condado de Washington no distrito de Columbia. Com a posse de Jefferson como novo presidente dos EUA, este determinou ao novo secretário de estado James Madison, que não entregasse do titulo da comissão para Marbury por entender que a nomeação estava incompleta por faltar a entrega da comissão, onde o ato jurídico se tornaria completo. Marbury não tomou posse e pediu a notificação de Madison para apresentar suas razões. Madison não respondeu e Marbury impetrou o mandamus. Diante da complexidade política do caso a Corte Suprema não julgou o caso durante dois anos causando reação da imprensa e da opinião pública, aventando-se inclusive a possibilidade de impeachment de seus juízes. Para agravar a situação o executivo expressou que uma decisão favorável a Marbury  poderia causar uma crise entre os poderes, sugerindo que o executivo poderia não cumprir um decisão do judiciário. Marshal (nomeado pelo presidente anterior assim como Marbury o requerente) era presidente da Suprema Corte e que deveria se pronunciar sobre o caso. O problema envolvia uma situação ético-jurídica muito grave. Marshal entretanto decidiu: quanto ao mérito reconheceu o direito de Marbury à posse no cargo, no entanto não concedia a ordem para cumprir a decisão em face de uma preliminar, evitando assim ver descumprida a sua decisão por parte do executivo, evitando a crise maior. Assim julgou inconstitucional a lei que autorizava o pedido diretamente na Suprema Corte pois a Constituição fixou a competência da Suprema Corte e somente a Constituição poderia ampliar esta competência. Assim negou o pedido por incompetência uma vez que só poderia chegar a Suprema Corte em grau de recurso.
            Como se vê o caso envolve situação de apadrinhamento político e esperteza do juiz que reconheceu o direito mas se julgou incompetente para exigir seu cumprimento evitando conflito com o executivo. Está aí fundamentado o controle judicial difuso de constitucionalidade, mecanismo que se tornou importante para a democracia e para a afirmação do estado democrático de direito hoje adotado no Brasil. Sua origem entretanto não nasce de altas indagações teóricas, mas de um conflito entre grupos políticos pelo poder.
            No Brasil a partir da influência norte-americana na Constituição de 1891, temos uma combinação complexa e extremamente rica e democrática de controle de constitucionalidade e de jurisdição constitucional. Temos um controle misto no aspecto político e judicial, temos um controle misto quando combinamos também o controle difuso, onde todos os órgão do judiciário podem e devem se manifestar sobre a constitucionalidade das leis e atos com os mecanismos de controle direto nas ações diretas declaratória de constitucionalidade e de inconstitucionalidade por ação e omissão e ainda a ação por descumprimento de preceito fundamental, e temos um sistema misto quando combinamos mecanismo um controle prévio com os mecanismos repressivos.
            Uma questão decorrente destas classificações do controle de constitucionalidade surge sobre a natureza do Supremo Tribunal Federal, fortemente inspirado na Suprema Corte norte-americana, especialmente no seu maior defeito, a forma de escolha de seus membros. Como órgão que integra o Poder Judiciário os seus membros são escolhidos por critérios políticos o que faz com que a cúpula do judiciário decida de forma diferente de todo o Poder Judiciário pois inspirado muitas vezes por motivações políticas e não técnico-jurídicas. Em abstrato pode-se dizer que a forma de escolha dos juízes da Suprema Corte nos EUA e dos nossos ministros do STF, é um mecanismo de fortalecimento do equilíbrio entre os poderes. Entretanto a história destes tribunais tem nos demonstrado, com insistência, justamente o contrário.
            Um dos fatores de independência do Poder Judiciário está no democrático método de escolha de seus juízes: o concurso público. A escolha pelo concurso público permite isenção política e independência em relação ao executivo e legislativo. Em países onde membros do Judiciário são escolhidos por outro poder, especialmente pelo executivo, ocorre o comprometimento da independência do Judiciário, que deixa de ser, na prática, um Poder efetivo. Não vamos falar como suposta solução a absurda hipótese de eleição de juízes pelo povo. Isto significa misturar a busca da segurança jurídica e neutralidade do judiciário, com financiamentos de campanha, atendimento de interesses políticos, decisões populistas, decisões ideologizadas, enfim, teríamos o comprometimento do Direito, que seria engolido pela política.
            Portanto nada melhor do que o concurso público, realizado por órgão público externo ao poder Judiciário (as universidades públicas por exemplo), para evitar sua colonização corporativa por parte de um grupo de poder interno e sua estagnação doutrinária.
            Voltamos a questão se o STF deve ser político ou não. Como já dito, a história nos demonstrou[5] o caráter político do órgão de cúpula do judiciário. A história nos mostrou muito mais: o método de escolha dos membros do STF em geral fortalece o executivo, como no Brasil no período Fernando Henrique onde o Executivo abafou o Judiciário e o Legislativo com o excesso de Medidas Provisórias inconstitucionais[6]. O contrário pode também ocorrer com o enfraquecimento ou mesmo comprometimento do governo se as forças políticas no Supremo forem manifestamente contrarias as forças políticas do parlamento e do executivo, como ocorreu no início do governo Roosevelt, onde ao final saiu vitorioso o executivo, em mais um exemplo do comprometimento político da Corte Suprema também nos EUA, desvio este originado justamente pela forma de escolha dos membros da Suprema Corte.
            Diante da história, torna-se urgente repensar o Supremo Tribunal Federal. A primeira pergunta seria se deveríamos conceder a este órgão um caráter essencialmente técnico-jurídico, resgatando o órgão de cúpula do judiciário para o próprio judiciário ou deveríamos aceitar o seu caráter político como forma de controle do Judiciário e assim buscar um método de escolha democrático e logo plural, que evite também fortalecer em demasiado o Executivo, ou por outro lado inviabilizá-lo.
            As duas soluções são melhores que o método existente ressaltando que, diante de tudo que falamos sobre jurisdição constitucional, não nos parece inteligente nem democrático a adoção de mecanismos concentrados políticos ao estilo europeu, como as Cortes e Tribunais na Alemanha e Itália e muito menos o Conselho Constitucional francês. A discussão da mudança da forma de escolha do membros do Supremo com a adoção de mecanismos semelhantes de escolha aos existentes na Europa, não significa adotar o controle concentrado, o que seria um terrível retrocesso autoritário.[7]
            Na solução da questão podemos sim buscar subsídios na experiência européia no que diz respeito a necessidade da adoção de um mandato para os membros da Corte Suprema ou da participação do legislativo e outros órgãos na escolha de seus membros, mas sem jamais abandonarmos o controle judicial difuso e lógico, a jurisdição constitucional difusa.
            Entre as opções acima mencionadas nos parece que manter o acesso ao Supremo somente através da carreira de juízes ou da eleição de magistrados pode ser uma boa solução mas que requer mudanças na estrutura do Judiciário com sua democratização interna e principalmente com mudanças nos concursos públicos para a magistratura, com a participação de órgão técnico externo ao judiciário para a realização das provas de seleção. Nesta hipótese corremos entretanto o risco de fortalecer ainda mais o Judiciário que se nega ao controle externo e que mantém práticas absurdas, algumas até surrealistas, como a manutenção de uma pompa que pertence mais a monarquia do que a um poder republicano.[8]
            A melhor solução talvez seja a mescla de modelos como tem sido comum na experiência constitucional brasileira. Uma sugestão da Ordem dos Advogados do Brasil se mostrou interessante: um STF com 15 membros, com mandato de 9 (nove) anos, onde 3 (três) juízes seriam escolhidos pela magistratura, 3 (três) pela Ordem dos Advogados, 3 (três) pelo Ministério Público e 6 (seis) pelo Congresso entre professores doutores em Direito. Teríamos um órgão técnico-político integrando o Judiciário, democrático na sua escolha e com possibilidade de renovação, mantido o controle difuso misturado aos mecanismo de controle direto já existentes.
           



[1] POLETTI, Ronaldo. Controle de Constitucionalidade das leis, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, pág. 57.
[2] POLETTI, Ronaldo. Ob. Cit. Pág. 63.
[3] PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, 2 edição, pág.135.
[4] PALU, Oswaldo Luiz. Ob.cit.pág.114.
[5] o mesmo ocorre nos EUA e para isto basta lembrar o julgamento do recurso do candidato Al Gore a presidência dos EUA contra a decisão referente a recontagem dos votos no Estado da Flórida governado pelo irmão do outro candidato eleito (Jeb Bush irmão de George Bush), onde os juízes em sua maioria escolhidos por presidentes republicanos votaram a favor do candidato republicano em uma decisão extremamente polêmica e amplamente denunciada inclusive por renomados juristas norte-americanos.
[6] Medidas Provisórias que usurpavam o poder do legislativo e desafiavam o Judiciário que entretanto, por motivações políticas, chamadas de governabilidade, contribuíram para com a continuidade das práticas autoritárias.
[7] Infelizmente no Brasil foram introduzidos elementos de fortalecimento do controle concentrado em detrimento do controle difuso, assim como a absurda sumula vinculante, que sob o pretexto de celeridade compromete o processo desumanizando-o.
[8] Como absurdo exemplo do que eu digo lembramos que ainda hoje (2004) só se pode entrar nos Tribunais Superiores de terno e gravata e juizes federais de primeira instância usam carros com motorista, um motorista e um carro para cada um. O absurdo simbólico de um poder que faz questão de se manter longe do povo para de maneira equivocada manter sua autoridade numa falsa superioridade determinada pela roupa e pelo luxo de suas construções (costume que vem das monarquias) não atinge só o Judiciário mas também o legislativo: você sabia que só se pode entrar no Senado de terno e gravata. 

sexta-feira, 26 de julho de 2013

1349- "Mais Médicos", o bolsa família da Saúde? - Saul Leblon


26/07/2013

‘Mais Médicos’, o Bolsa Família da Saúde?

por Saul Leblon 
O sucesso delineado na ampla adesão dos municípios ao programa ‘Mais Médicos’ deve ser analisado exaustivamente.

Talvez represente mais que um alívio pontual no cerco conservador anabolizado pelas manifestações de junho, cujo impacto nos índices de aprovação ao governo tem sido reiterado, em meticuloso rodízio, pelos institutos de pesquisa. 

A análise do programa lançado pelo ministério da Saúde, há menos de um mês, poderá inspirar uma bem-vinda reconciliação com a dimensão política da luta pelo desenvolvimento, esgarçada nos últimos anos por um certo viés economicista.

Desde 2010, sabia-se que a substituição do ativismo visceral de Lula pela racionalidade administrativa de Dilma implicaria em mudanças de ênfase.

Que pareciam adequadas, diga-se. 

O Brasil necessitava consolidar as múltiplas frentes abertas desde 2003, ademais de retificar flancos estruturais que emergiram no processo. 

Para listar apenas os da agenda econômica: a valorização cambial desindustrializante, o obsceno custo financeiro, a carência de detalhamento para grandes projetos de infraestrutura etc.

A combinação entre a ênfase administrativa do novo governo e a retaguarda política do antecessor parecia perfeita.

Dilma era a chefe de governo. Lula, o chefe político.

A doença do ex-presidente acendeu o farol amarelo. As manifestações de junho piscaram o vermelho.

O blend teórico entre o político e o administrativo mostrou sua vulnerabilidade quando submetido à pressão contundente das ruas.

A interação entre os canais emperrou na ausência de mecanismos de resposta rápida.

Não só.

A inexistência de quadros intermediários capazes de reunir uma versatilidade dissociada na cúpula fez o resto.

Em lugar de criatividade e prontidão, emergiu a face apática de uma equipe pautada pelo engessamento administrativo e o timming burocrático.

Um arquipélago desprovido do oceano político capaz de uni-lo.

Não se trata de desdenhar o que é fundamental.

O planejamento público de longo prazo, de que sempre se ressentiu a economia brasileira.

O governo Dilma veio preencher essa lacuna histórica. 

O que tem feito com sucesso, em parte. 

A emergência política instaurada a partir de junho evidenciaria, no entanto, a insuficiência da especialização quando o relógio político é ajustado pelas ruas.

Uma rotina engessada no labirinto de licitações e licenciamentos, subordinada ao desafio da engenharia financeira, refém de uma enervante sucessão de postergações de prazos e obras, mostrou que um governo não pode se reduzir a um escritório de acompanhamento de projetos. 

Não qualquer governo em qualquer época: mas o do Brasil, sob cerco conservador e em meio às turbulência de uma transição de ciclo econômico internacional.

Intuitivamente, o ‘Mais Médicos’ ataca esses flancos.

Seu desenho resgata um modelo de ação engajada cuja cepa remete às premissas da política de segurança alimentar, combate à fome e à miséria, lançada em 2003, com o nome fantasia de ‘Fome Zero’.

Atacar o emergencial e o estrutural, ao mesmo tempo e com igual intensidade, era o cerne da estratégia contra o intolerável.

Fixar prazos críveis e benefícios visíveis no horizonte imediato da sociedade, um ingrediente mobilizador. 

Outro: estabelecer metas de apelo popular que colocavam sob pressão instancias políticas e administrativas, de cuja adesão dependia o sucesso da política. 

No caso da política de combate fome e à miséria, o carro-chefe foi o benefício do cartão-alimentação (hoje Bolsa Família).

A dimensão estrutural incluía a ampliação do crédito à agricultura familiar; as aquisições diretas do pequeno produtor; o ganho real do salário mínimo; a urbanização das favelas; o Fundeb, etc.

Mas, sobretudo, o pano de fundo político merece ser resgatado.

Ele envolve uma determinação férrea de libertar a ação pública da morosidade incremental, incompatível com os ponteiros da urgência brasileira.

Transferir recursos aos pobres, diretamente, no Brasil de 2003, em meio ao terceiro turno declarado pelo cerco conservador, significava para o governo abrir um atalho de respaldo político indispensável.

Para o conservadorismo era o anátema.

E assim foi tratado. 

A palavra fome nunca teve trânsito livre num vocabulário político dominado pela conveniência do dinheiro grosso. 

Em 1946, quando lançou o seu ‘Geografia da Fome, o médico, comunista e diplomata, Josué de Castro, foi pressionado a trocar o título do livro por algo mais palatável às vergonhas seculares de nossas elites.

Não o fez. A obra tornar-se-ia um clássico de decifração das estruturas reprodutoras da exclusão condensadas na palavra incômoda. 

Quando lançou o ‘Fome Zero’, o governo Lula sofreria idêntico constrangimento. 

A mídia derrotada nas urnas ergueu um cinturão de asfixia em torno do programa, contando com o obsequioso auxílio de parte da academia.

Os argumentos utilizados, então, lembram muito a fuzilaria atual contra o ‘Mais Médicos’.

Ineficaz, inconstitucional e eleitoreiro foram alguns mísseis disparados na primeira hora. Esgotada a munição para o abate em pleno voo, recorreu-se ao clássico artifício da sensatez protelatória – ‘são problemas estruturais, é preciso uma discussão mais profunda’.

A exemplo da fome, quão mais profunda terá que ser a discussão sobre uma notória, documentada e intolerável ausência de atendimento médico nas áreas mais pobres do país? 

O governo dispõe de números convincentes. E tem alternativas ao boicote esperado.

À falta de candidatos para ocupar vazios no interior do país, profissionais serão requisitados no estrangeiro.

Ao carimbo de ‘remendo’, a dimensão emergencial do programa responde com iniciativas estruturais: R$ 15 bilhões de investimentos em obras e equipamentos de saúde; reforma no currículo da medicina, vinculando-o à prestação de serviços ao SUS.

Prazos curtos de implantação atropelam o cerco conservador criando um calendário sensível, capaz de disputar a atenção de uma opinião pública exaurida pelo bombardeio midiático.

O Ministério da Saúde deu prazo até esta 5ª feira para os prefeitos interessados manifestarem a adesão ao programa. 

Utilizou rádios no interior para chegar à população e furar a sabotagem dos grandes veículos de comunicação.

Como um prefeito tucano explicaria, à fila no posto de saúde, sua recusa em inscrever a cidade no programa que promete elevar o padrão de atendimento local?

O insustentável se refletiu no perfil suprapartidário das adesões: mais de 40% dos prefeitos do PSDB se juntaram a um programa desdenhado por Aécio e assemelhados. Mas que teve a receptividade inicial de 46% dos municípios. brasileiros. 

Nesta sexta-feira, dia 26, o governo divulgará o total de vagas para médicos, conforme as solicitações das prefeituras.

A partir da próxima segunda-feira, profissionais brasileiros que aderiram ao programa serão chamados a escolher os municípios onde querem atuar.

Terão até 3 de agosto para faze-lo.

Quarenta e oito horas depois, as escolhas serão validadas no Diário Oficial da União.

Vagas não preenchidas serão divulgadas no dia 6 de agosto: profissionais estrangeiros serão convidados a preenche-las até 8 de agosto. 

Ou seja, apenas 30 dias depois de anunciado, o programa emitirá sinais concretos de mudança na vida de cidades e cidadãos, até então condenados a uma combinação perversa de precariedade e incerteza no acesso a um serviço vital.

A vitória no emergencial amplia o chão firme do governo para ousar em ações de caráter estrutural, a exemplo do financiamento fiscal do setor, bem como da reforma no ensino da medicina.

O ‘Mais Médicos’ tem fôlego para se transformar no ‘Bolsa Família’ da saúde pública brasileira.

O governo não pode desperdiçar o potencial dessa experiência. Nem as lições que ela encerra para iniciativas em áreas às voltas com desafios de gravidade e apelo similares.

A presidenta Dilma teria muito a ganhar com isso. 

O país mais ainda.

Postado por Saul Leblon às 07:32

quarta-feira, 24 de julho de 2013

1348- Médicos para todos: do corporativismo à democracia - leia artigo de Márcio Mello Casado

Política| 24/07/2013 | Copyleft 

SUS: A Formação Médica no Brasil a partir da MP 621/2013

O segundo ciclo da MP 621/2013 não poderia estar mais confortável no sistema jurídico nacional. Ele se adapta à Constituição Federal e tem perfeita afinidade com o art. 43, da LDB. O acadêmico terá contato direto com os problemas e dificuldades do exercício da medicina e estabelecerá com a sociedade a necessária relação de reciprocidade. Por Márcio Mello Casado

Trabalho Forçado?
Muito se tem ouvido acerca da inclusão no curso de medicina de um período de treinamento na atenção básica à saúde, urgência e emergência no âmbito do SUS (art. 4º, II, da MP 621/2013), para aqueles que ingressarem nos cursos de medicina a partir de 1º de janeiro de 2015 (art. 4º, caput, da MP 612/2013).

O primeiro grito que se ouviu é de que seria inconstitucional a inclusão de tal segundo ciclo na grade curricular do curso de medicina, porque seria um trabalho forçado.

Com todo o respeito às opiniões dissonantes, mas esse argumento é dos mais pobres. A leitura ao art. 5º, inciso XIII, da Constituição Federal (É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer) já desmistifica essa ideia.

De acordo com a MP 621/2013, só atingirá a condição de médico aquele que passar por esse segundo ciclo. Pode-se até discordar política ou filosoficamente com a inclusão desse segundo ciclo de treinamento no SUS, mas o fato é que não serão médicos que estarão lá. Serão estudantes de medicina que devem alcançar o grau de qualificação necessário nesse período de treinamento para que possam se tornar médicos.

Ademais, a regra é para aqueles que ingressarem na medicina a partir de janeiro de 2015. Trata-se de grade curricular nova que será colocada à disposição do candidato. Ele pode ou não escolher a profissão de médico, levando em consideração o tempo e o conteúdo do curso. A escolha da carreira médica não é compulsória e nenhum serviço forçado será imposto ao acadêmico. Mas ele deverá, nos termos da Constituição Federal, atingir à qualificação profissional que a lei estabelecer para se tornar médico. E a lei vigente, hoje, determina que ele realize o segundo ciclo junto ao SUS.

Piso Vital Mínimo – Discriminação Positiva
O sistema constitucional brasileiro é antropocêntrico. A pessoa humana é o foco inicial do nascimento e desenvolvimento de direitos e obrigações no âmbito da interpretação e declaração de incidência das normas positivadas no sistema pátrio. O sistema educacional e a saúde tem como meta constitucional atender ao ser humano.

Ao ter como objetivo do Estado a garantia do desenvolvimento nacional e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, CF), com respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) a Constituição Federal revela o seu caráter antropocêntrico. O desenvolvimento nacional, em uma interpretação sistemática da Carta Maior, só pode ser atingido com a elevação do nível de vida dos cidadãos (prova disso é o art. 3.º, III), por meio da promoção do bem de todos ( art. 3.º, IV).

A aplicação do direito deve andar a par dos objetivos da República, até porque qualquer outra interpretação conduz à inconstitucionalidade do ato de concreção das normas aos fatos. O processo de interpretação deve ser, sem exceção, de cima para baixo, isto é, da Constituição Federal em direção à legislação ordinária, jamais o inverso.

A Constituição Federal, no art. 6º, estabelece um piso vital mínimo, qual seja: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Educação e saúde estão inseridas em primeiro lugar no dispositivo. E isso não ocorre à toa. Trata-se de uma opção de hierarquia criada pelo constituinte. Não se constrói uma sociedade livre, justa e solidária, com foco na dignidade da pessoa humana, sem se atender, em primeiro lugar, a tais direitos fundamentais.

A Constituição Federal, no que concerne à saúde não é só antropocêntrica. Ela é DISCRIMINATÓRIA. Ela escolhe um lado. Ela se propõe a CUIDAR, DEFENDER, PROTEGER E INTERVIR em se tratando de questão que envolva a saúde.

É o que ocorre nos artigos:

- 23, II (É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência);

- 24, XII (Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XII - previdência social, proteção e defesa da saúde);

- 34, III (A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: III - não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde).

Pasmem os liberais de plantão (há duzentos anos), mas a Carta Constitucional do país é discriminatória. Ela confere privilégios a grupos especiais de pessoas (consumidor, art. 170, V, por exemplo) ou direitos (saúde) na medida em que busca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Este fenômeno é denominado por Jorge Miranda de discriminação positiva, em que se estabelece uma vantagem fundada a alguém. Tratam-se de “desigualdades de direito em consequência de desigualdades de facto e tendentes à superação destas”

A Saúde na Constituição Federal
A partir do art. 196 há a seção destinada à saúde na Constituição Federal. E o primeiro dispositivo que lá se encontra é o seguinte: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

A discriminação positiva lá está, de novo, no caput do artigo. O Estado deve promover medidas para melhorar a situação do país. É uma diretiva constitucional. É também o reconhecimento que o país tem muito a caminhar em se tratando de saúde. O texto constitucional reconhece que as coisas não estão – mas estavam piores em 1988 – boas e que merecem melhorias, tudo para adimplir à obrigação de construir uma sociedade livre, justa e solidária, focada na dignidade da pessoa humana.

O texto é bonito. Até mesmo poético. Mas tem o seu lado trágico. Trata-se da Lei Maior de um país dizendo que o Estado em que ela vige está bem longe de oferecer ao seu povo condições ideais de vida.

Mas há que se melhorar. A MP aqui em discussão não resolverá o problema da saúde. Mas é certo que ela encaminhará acadêmicos de medicina para atender quem mais precisa de saúde. E isso é um passo relevante. Isso é adimplir, ainda que em parte, o sistema DISCRIMINATÓRIO do direito à saúde no Brasil.

Os estudantes poderão até não gostar. Achar que já estavam prontos dois anos antes. Mas quem escolhe o conteúdo do curso não são eles. O Estado optou pelos pacientes do SUS, pelo direito à saúde. 
Vale lembrar que o treinamento do SUS também está previsto na Constituição Federal, no art. 200, III e V (Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico).

A Educação Universitária
A Constituição Federal, no art. 207, determina: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

O ensino, a pesquisa e a extensão são indissociáveis. Logo, o segundo ciclo previsto pela MP 621/2013 não contém nada de tão novo, estranho ou inconstitucional. Ao contrário, ele está contido em princípio constitucional, eis que é em parte ensino, pesquisa e extensão, desde 1988.

O plano nacional de educação, previsto no art. 214, deve conduzir à formação para o trabalho (inciso IV) e à promoção humanística do País. 

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9394/1996), no capítulo destinado à educação superior, determina: “Art. 43. A educação superior tem por finalidade: I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; II - formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua; III - incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive; IV - promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação; V - suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração; VI - estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade; VII - promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição”.

Isto é, a educação superior, dentre outros objetivos, deve estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente e prestar serviços especializados à comunidade. O segundo ciclo do curso de medicina, no SUS, atende exatamente ao objetivo da Constituição Federal e está de pleno acordo com as diretrizes e bases da educação nacional.

Educar, participar e estabelecer com a sociedade uma relação de reciprocidade
O segundo ciclo da MP 621/2013 não poderia estar mais confortável no sistema jurídico nacional. Ele se adapta à Constituição Federal e tem perfeita afinidade com o art. 43, da LDB. O acadêmico terá contato direto com os problemas e dificuldades do exercício da medicina e estabelecerá com a sociedade a necessária relação de reciprocidade.

Do ponto de vista constitucional, político e social parece-nos inquestionável o valor positivo da medida provisória. 

A nós parece que a MP 621/2013 abre um debate bastante interessante sobre a grade curricular dos cursos superiores.

Talvez seja o momento de se examinar não só a importância do atendimento à saúde da população como um conteúdo do curso universitário. 

A relação de reciprocidade que o estudante universitário tem de estabelecer com a sociedade deve ocorrer em todas as áreas do conhecimento. Os acadêmicos de direito, engenharia, odontologia, para ficar em exemplos onde a reciprocidade social fica evidente, também poderiam ter as grades curriculares modificadas.

A educação não vem em primeiro lugar de forma aleatória no art. 6º, da Constituição Federal. Ela é o motor de uma sociedade. E o acadêmico que tem o mérito pessoal e o privilégio de usufruir da educação superior há que saber que ela deve ser útil não só a quem a recebe, mas à sociedade.

*Márcio Mello Casado, advogado, é mestre e doutor pela PUC/SP.

domingo, 21 de julho de 2013

1346- Desnazificação do Brasil por Henrique Napoleão Alves

Desnazificação do Brasil


banalizaçao da morte
Tirinha de André Dahmer – http://www.malvados.com.br

Por Henrique Napoleão Alves

Desnazificação” (em inglês, Denazification) é o termo que designa a política promovida pelos países vencedores da Segunda Guerra Mundial – dentre eles os Estados Unidos – após a vitória contra a Alemanha Nazista, cujo objetivo era o de varrer o nazismo das relações sociais, práticas culturais,  imprensa, justiça e política na Alemanha e na Áustria – um processo amplo, que envolveu milhões de pessoas, inclusive com a responsabilização jurídica de centenas de milhares de colaboradores do nazismo além ou à parte daqueles julgados como criminosos de guerra pelos tribunais respectivos.
Em 1968, o Museu de Ciência de Chicago montou uma exibição na qual crianças poderiam entrar num helicóptero militar e simular  tiros de metralhadora contra uma vila rural do Vietnã, com luzes piscando quando acertavam os “alvos”. Isso se deu apenas um ano depois da advertência de um notório historiador militar e especialista em Vietnã, o Sr. Bernard Fall, que disse que o Vietnã estava literalmente ameaçado de extinção em virtude da destruição causada pelo poderio militar estadunidense.
Algumas mães protestaram contra a iniciativa do Museu, e foram reprimidas pelo próprio New York Times, que alegou que as mães não deveriam privar suas crianças do divertimento, o que levou o professor Noam Chomsky, à época, a questionar se os Estados Unidos não precisariam vivenciar, também, um processo de desnazificação.
Hoje, tomei conhecimento, por meio de uma reportagem da revista Carta Capital (“Mate o Mc DaLeste – o perigo da intolerância cultural“, 20/07/2013), que alguém aproveitou a notícia recente da morte do MC DaLeste, artista de funk da periferia de São Paulo, para criar um jogo na internet em que o “herói”, em meio a um cenário com logotipos do Partido dos Trabalhadores, do Programa Bolsa Família e da Rede Globo, precisa caminhar com arma em punho e matar jovens sem camisa portanto fuzis (representando traficantes favelados do varejo da droga), a Regina Casé (artista da Rede Globo identificada com as periferias do Brasil) e Tati Quebra-Barraco (famosa artista de funk da periferia do Rio de Janeiro), até alcançar o palco e assassinar também, ao final, o jovem MC Daleste.
Conforme reportou a revista Carta Capital, o vídeo que divulga o jogo “Mate o MC DaLeste” já conta com milhares de acessos e comentários, dentre eles: “Jogo bom, merece ganhar o jogo no ano 2013”; “Sacanagem não terem criado ainda outros níveis com outros funkeiros”; “FUNKEIRO BOM É FUNKEIRO MORTO”; “Ja baixei e joguei é divertido! :D zerei 3 vezes ja! Muita alegria matá esse verme!!!!! hehehe”.
Antes fossem comentários incomuns. Quantas vezes nos deparamos com discursos de ódio e intolerância, na internet e fora dela? Quantos comentários maldosos e agressivos contra funkeiros, pagodeiros, mulheres, gays, negros e pardos, militantes sociais, indígenas, nordestinos, praticantes de religiões afro-brasileiras (candomblé, umbanda, macumba) etc. são diariamente proferidos nos mais diversos espaços de socialização? E além desta violência simbólica brutal, quanta violência física não é praticada contra todos os grupos mencionados? Dez mil páginas poderiam ser gastas reportando apenas algumas delas, e ainda assim seria pouco.
Enquanto uns tantos se divertem atirando no MC DaLeste num cenário virtual, mais de 53 mil pessoas são assassinadas no Brasil a cada ano, em sua maioria jovens e pardos… como o MC Daleste. Quem puxa o gatilho?
Não somos o paraíso tropical onde convivem harmoniosamente as diferentes raças. Estamos e sempre estivemos longe, muito longe de sermos cordiais. A verdade é que seguimos sendo uma das sociedades mais violentas, injustas e desiguais do mundo. E já passou da hora de pensarmos na nossa própria desnazificação.