sexta-feira, 29 de abril de 2011

309- Comentários ao filme Crash - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

Crash (2005) – Múltiplas identidades. A cidade cosmopolita perdida em conflitos de micro identidades.

JOSE LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES



Há uma forte diferença entre bandidos e mocinhos no imaginário social e uma ausência desta diferenciação nas práticas sociais diárias. A repressão policial diária é bandida, é expressamente fora do Direito embora muitas vezes dentro da lei. Ela desrespeita a privacidade, a dignidade, a repressão humilha pelo simples fato da condição social ou da cor do sujeito. Dizem: o problema da idéia da ordem constitucional que pretende a democracia é que esta ordem não permite a polícia trabalhar. Com esta justificativa agem então fora do Direito, contra o Direito.

O filme “crash” mostra até onde as nomeações (que tratamos em outros textos) podem chegar em uma sociedade dita cosmopolita. Se a nomeação, dentro do estado moderno, que procura unificar todos os grupos sociais e todos os nomes próprios em uma única denominação, pode justificar privilégios e discriminações excepcionais, a fragmentação da sociedade em pequenos grupos de identidades, em pequenas nomeações pode gerar outros tipos de problemas.

As sociedades cosmopolitas de Los Angeles; Nova York, São Paulo; Londres e Paris não estão além das nomeações ou dos predicados radicais. Ela está multi-fragmentada em diversos predicados radicais.

Negros, asiáticos, coreanos, chineses, árabes, turcos, persas, nordestinos, brancos, góticos, cabeças raspadas, nacionalistas, racistas, mexicanos, hispânicos, caucasianos, católicos, evangélicos, mulçumanos, judeus, darks, emos, punks, metaleiros e mais um monte de nomeações convivem no espaço complexo das grandes cidades. São obrigados pela lei a se suportarem embora os que aplicam a lei pertençam também a grupos fechados e, logo, vejam o mundo, limitados pela compreensão deste seu grupo: juízes, policiais, promotores, advogados entre outros grupos são hoje corporações enclausuradas por nomes coletivos e por uma auto-referência que sustenta o grupo.

O filme mostra que até mesmo os nomes próprios, que deveriam ser a marca da identidade individual única, não funcionam assim, uma vez que carregam a identidade do grupo ao qual pertencem mesmo sem querer pertencer: Shaniqua é um nome negro; Saddam é um nome iraquiano; Hassan é um nome muçulmano; Ezequiel é um nome evangélico; Pedro é um nome cristão; David é um nome Judeu: o nome próprio é abafado pelo nome do grupo. O nome próprio é condicionado pelo predicado radical.

O filme mostra que é possível se libertar do nome grupal e resgatar algo universal, algo humano, além das nomeações de grupos, etnias, cores, países, religiões. Algo humano universal que resgate o nome próprio.

A aposta de Badiou(1) em um estado contemporâneo indistinto em sua configuração identitária depende não da superação das nomeações mas da superação da sacralização de determinados nomes coletivos.

Esta sociedade contemporânea democrática plural, que tenha um sujeito que não ignora os particularismos, mas que ultrapasse estes; que não tenha privilégios e que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários, religiosos ou nacionais ainda não existe. O que o filme mostra é uma realidade fragmentada por nomes grupais sacralizados mas não elimina a esperança de um espaço livre de sacralizações.

Estes nomes grupais sacralizados podem gerar novas guerras tribais. Importante lembrar que a construção de uma identidade nacional ocorre, na história moderna, pela uniformização e posterior negação de identidades étnicas pré-existentes. Desta uniformização e encobrimento depende o reconhecimento do poder do Estado e de sua ordem social e econômica, imposta a todos de forma homogênea. Entretanto, no caso norte-americano, a identidade nacional em um país de imigrantes foi sendo, gradualmente fundamentada nas três ultimas décadas do século XX, sobre o discurso do reconhecimento de identidades múltiplas, unidas por um valor base de cunho liberal econômico e social.

Nos EUA a idéia de identidade nacional, especialmente na segunda metade do século XX, passou a ser construída em boa parte, especialmente nos espaços cosmopolitas das grandes cidades, sobre a idéia de uma pretensa “democracia étnico-racial multidentitária” que se opõe às identidades nacionais intolerantes e uniformes. Neste nome comprido faltou, entretanto, a efetividade da prática democrática.

O problema se complica quando se acredita poder fazer cumprir esta pretensa democracia étnico-racial multidentitária por meio da lei e do controle policial. A polícia também é um grupo corporativo auto-referente e logo com preconceitos, códigos e símbolos próprios que anulam as pessoas quando estes estão fardados, quando estão no meio do grupo. Este grupo que acredita simbolizar a própria lei se sente no direito muitas vezes de ignorar o Direito para se auto-preservar e preservar a imagem construída no grupo para o próprio grupo.

A idéia final que prevalece em Crash é a crença na sobrevivência dos nomes próprios encobertos pelos nomes grupais. O dado humano universal sem nome pode sobreviver ao preconceito e as simplificações.



BADIOU, Alain. Circonstances, 3 – portées du mot “juif”.,Editions Lignes e manifeste, Paris, 2005,15.

307- Artigos - Direito a paz e ao meio ambiente - por José Luiz Quadros de Magalhaes e Tatiana Ribeiro de Souza

DO DIREITO À PAZ E AO MEIO AMBIENTE

José Luiz Quadros de Magalhães
Tatiana Ribeiro de Souza

Introdução. 1- Uma abordagem conceitual. 2- Guerra e meio-ambiente. 3- A Construção da Modernidade: A Era Européia. 4- A guerra como necessidade para a expansão econômica. 5- A ideologia substitui a guerra? 6- Capitalismo e a privatização da guerra. Conclusão e Referências.

INTRODUÇÃO

Paz e meio ambiente são dois temas igualmente amplos, razão pela qual poderiam ser tratados separadamente e sob diversas perspectivas. Neste texto tentaremos demonstrar a relação entre paz e meio ambiente a partir da idéia de que a preservação de ambos está fortemente comprometida pelo sistema econômico vigente. A nossa idéia central é de que tanto a paz como o meio ambiente ecologicamente equilibrado são incompatíveis com as práticas econômicas contemporâneas.

A economia de mercado predominante deste a expansão das grandes navegações no Século XVI é sustentada pela exploração incessante de recursos naturais e por conflitos violentos. Tanto a exploração ambiental, quanto os conflitos foram se tornando cada vez mais intensos e sofisticados, ao ponto de nos preocuparmos com a garantia de dois direitos fundamentais: os direitos à paz e ao meio ambiente. Todavia, apenas a preocupação e a garantia formal a esses direitos, não são suficientes para torná-los preservados para a presente e as futuras gerações.

Para falarmos de paz e meio ambiente optamos pela técnica da oposição, isto é, demonstraremos a interdependência entre os dois temas analisando a relação entre a guerra e a degradação ambiental. Para isto faremos um passeio pela história enumerando alguns episódios indicativos da relação promíscua entre o sistema econômico vigente e a destruição do meio ambiente e do ser humano.

1- UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

Preliminarmente discutiremos o que compreendemos por paz e meio ambiente, considerando que toda palavra, enquanto um significante, pode apresentar diversos significados, conforme a tradição teórica que se esteja levando em conta.

1.1. A paz positiva

Em sentido amplo entendemos como paz(1) a ausência de conflito entre indivíduos ou grupos, tema que interessa tanto aos estudiosos da moral quanto do direito. Para o nosso trabalho interessa a idéia de paz associada à chamada “peace research”, que se tem desenvolvido nos últimos anos, vale dizer, a paz que põe termo ao tipo de conflito particular que é a guerra, em todas as suas acepções(2). Não se trata apenas de uma das formas de se utilizar a palavra paz, mas da forma mais usual como ela é empregada, antônima de guerra.

Uma observação que deve ser feita em relação ao binômio “guerra e paz” é que apenas a paz é oposição em relação à guerra, mas o contrário não acontece. Encontramos um bom exemplo disso em Bobbio(3), quando fala que repouso (ausência de movimento) e movimento (ausência de repouso) só podem ser compreendidos por oposição, o que não acontece com “paz e guerra”, pois se a paz pode ser considerada como ausência de guerra, o mesmo não se pode dizer da guerra, que tem elementos muito mais complexos do que a simples ausência de paz. Por esta razão “guerra” é considerado o termo forte (positivo, isto é, tem um sentido próprio), enquanto “paz” é considerado o termo fraco nesta relação (tem sentido negativo: apenas não-guerra)(4). Talvez isto explique por que a filosofia política se dedica tanto ao tema da guerra enquanto pouco se tem escrito sobre a paz.

Como vimos só é possível entendermos paz a partir da noção do que seja a guerra. Para efeitos deste estudo consideraremos que a guerra é uma espécie de conflito entre grupos considerados independentes cuja solução é confiada ao uso organizado e durável da violência. Isto faz com que reconheçamos a possibilidade de que haja conflito sem que dois ou mais grupos esteja necessariamente em estado de guerra.

Mesmo considerando que o conceito usual de paz seja o do seu sentido negativo (não-guerra), podemos identificar avanços no sentido de se construir uma definição positiva de paz, que pode variar de uma área do conhecimento para a outra. Para o Direito Internacional a paz é considerada como algo mais do que o estado de não-guerra, significa “um estado de coisas juridicamente ordenado, com tendências a uma certa estabilidade”(5), isto é, a conclusão juridicamente regulada de uma guerra. Por outro lado, a teologia e a filosofia levam em conta, para o conceito positivo de paz, a idéia de justiça. Uma boa referência da relação entre paz e justiça, presente na concepção teológico-filosófica do termo pode se ler em um trecho da Gaudium et spes do Vaticano II (nº 78), in verbis:

“A paz não é ausência de guerra; nem se reduz ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas, nem resulta duma dominação despótica. Com toda a exactidão e propriedade ela é chamada «obra da justiça» (Is. 32, 7). É um fruto da ordem que o divino Criador estabeleceu para a sociedade humana, e que deve ser realizada pelos homens, sempre anelantes por uma mais perfeita justiça.” (...)(6)

Como se pode ver, no sentido teologico-filosófico, a paz positiva é mais que um conceito afirmativo, é um valor a ser perseguido e está condicionado aos imperativos da justiça. Por outro lado, o conceito positivo de paz para o Direito Internacional é estritamente técnico e nada tem a ver com a idéia de justiça. Aliás, na medida em que a paz expressa a conclusão juridicamente regulada de uma guerra, ela representa o prevalecimento de um poder superior (militar ou político) e não a conquista dos valores mais virtuosos. Neste sentido, quem está em situação de maior poder na sociedade internacional quer a paz (manutenção do status quo), enquanto quem está em condição desfavorável, quer justiça (seja por meio da guerra ou não).

A filosofia política de Hobbes parte do estado de natureza, considerado como estado de guerra universal e perpétua, em oposição ao estado de paz, que corresponde à sociedade civilizada. Na linha do pensamento hobesiano, que influenciou toda a filosofia política posterior, guerra e paz são compreendidos, respectivamente, como mal e bem absolutos. No entanto, podemos identificar no pensamento político dos últimos séculos duas tendências: 1- a de considerar que nem toda guerra é injusta, assim como nem toda paz é justa; e 2- nem a guerra nem a paz são valores absolutos ou intrínsecos, mas relativos e extrínsecos, vale dizer, o valor do meio depende do valor do fim, de modo que uma guerra pode ser boa, se o fim a que se destina é bom, assim como uma paz pode ser ruim, quando se destina a um resultado de valores duvidosos. O maior problema deste pensamento político é que “qualquer grupo político tende a considerar justa a guerra que faz e injusta a paz que é obrigado a suportar. E quanto ao tribunal da história, seu critério de julgamento não é a justiça ou a injustiça, mas o sucesso.”(7)

1.2. Meio Ambiente

Como prometemos no início deste tópico, faremos também uma abordagem acerca da expressão “meio ambiente” e seus possíveis significados. A primeira observação que podemos fazer é que se trata de mais uma daquelas expressões que caem no gosto popular, virando modismo, e passam a ser utilizadas recorrentemente e muitas vezes até de forma equivocada. Isto se explica, em certa medida, por ser uma expressão relativamente simples e que reforça seu próprio sentido, pois é constituída por duas palavras (meio e ambiente) que expressam o mesmo significado: lugar onde se vive.

A origem da expressão é atribuída ao naturalista francês Geoffroy de Sain Hilaire, que teria usado pela primeira vez a expressão “milieu ambient” em sua obra Études progressives d’um neturaliste, de 1835.(8) Em termos gerais, “meio ambiente” pode ser traduzido como a combinação de toda a complexidade em torno de um indivíduo ou comunidade que esteja sendo analisada, ou mesmo como o lugar onde se desenvolve um ecossistema(9). Dada a sua importância, o meio ambiente torna-se objeto de estudo científico, resultando inicialmente em um ramo das ciências biológicas (a ecologia) e aos poucos vai ganhando contornos de objeto interdisciplinar, passando a ser compartilhada pelas mais diversas áreas do conhecimento científico.

Para as ciências jurídicas a expressão meio ambiente cresce em importância na medida em que passa a ser reconhecida como objeto, e como tal, um bem a ser tutelado. Considerando os aspectos físicos dos lugares onde vivem as sociedade contemporâneas, não há como negar a convergência de dois meios com características muito distintas: o meio natural e o meio artificial. Desta forma, podemos encontrar nos estudos jurídicos a expressão “meio ambiente natural” (constituído pelo solo, água, ar, energia, fauna e flora) e o “meio ambiente artificial” (formado pelas edificações, equipamentos e alterações produzidas pelo ser humano).

Diante das diversas possibilidades de compreensão da expressão meio ambiente, o Direito brasileiro estabeleceu uma referência conceitual na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº6.938/81), considerando-o como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”(10). Esta foi uma maneira encontrada pelo legislador brasileiro de afastar as ambigüidades da expressão meio ambiente e, ao mesmo tempo, utilizar uma definição suficientemente ampla para permitir a regulação dos fatores capazes de afetar a vida. Mesmo que este conceito não atenda a todos os grupos de interesse na questão do meio ambiente, é no mínimo esclarecedor.

Quando nos colocamos diante da tarefa de refletir sobre o direito ao meio ambiente e à paz, precisamos transpor aos conceitos tradicionais de meio ambiente e acrescentar ao seu significado o atributo de “ecologicamente equilibrado”, pois até mesmo um espaço significativamente degradado pode ser um meio ambiente. A grande questão envolvida na relação entre o meio ambiente e a paz é: “qual meio ambiente?”.

2- GUERRA E MEIO AMBIENTE

Podemos fazer uma ligação imediata entre paz e meio ambiente lembrando diversas passagens de conflitos armados em tempos diferentes da história, e como gradualmente estes conflitos levaram às devastações ambientais crescentes, desde a queima de florestas, contaminação da água dos rios (como na guerra do Paraguai), destruição de plantações, a utilização de armas de destruição em larga escala, até chegarmos à ameaça final da guerra nuclear, passando pelas guerras químicas e biológicas.

As devastações do campo e das cidades comprometem o meio ambiente. Os bombardeios em larga escala desde a Segunda Guerra Mundial até as guerras do Iraque e Afeganistão no século XXI trouxeram, em muitos casos prejuízos irreparáveis. Como exemplos recentes, podemos citar a destruição sádica de Dresden (Alemanha - Segunda Guerra Mundial); de Yroshima e Nagasaki (no Japão, onde pessoas ainda morriam em razão da bomba décadas depois da detonação); a destruição de Bagdá e de um acervo histórico de valor incalculável para humanidade, entre outros episódios lamentáveis.

Entretanto, não é apenas esta a conexão que podemos fazer. Podemos buscar uma conexão menos aparente para o público em geral, mas de capacidade de destruição contínua, pois se trata da necessidade da guerra para a sobrevivência do sistema econômico que vivemos na modernidade.

Respeitando as dimensões deste texto precisamos delimitar a questão da paz, da guerra, do meio ambiente e do sistema econômico aos séculos XX e XXI, ou seja, a construção da sociedade de consumo em que vivemos que nos mergulha em valores que comprometem a vida humana no planeta, e não o planeta como muitos ressaltam.

Parece cada vez mais claro que uma sociedade global fundada em valores individualistas; egoístas; competitivos e materialistas, em uma relação de consumo e de apropriação de tudo (o que é contraditório na essência), não pode prosperar muito tempo (mesmo porque a idéia de prosperidade desta sociedade é material e quantitativa, portanto, inviável do ponto de vista ambiental e humano). Ou mudamos estes valores que hoje sustentam nossas sociedades ou acabamos.

Importante lembrar sempre, que estes valores não são naturais, são históricos. O individualismo, o egoísmo e a apropriação desenfreada são construções históricas capazes de gerar subjetividades que podem e são normalmente naturalizadas. Exemplo disto é a afirmação ainda hoje de direitos naturais, como, por exemplo, o direito de propriedade. O sentimento de propriedade ou a necessidade de apropriação são criações culturais históricas. A nossa percepção da nossa condição de seres históricos é fundamental para enfrentarmos o desafio de construirmos novas percepções do mundo, uma nova subjetividade, desafio fundamental para a preservação da humanidade.

Para compreendermos a relação entre sistema econômico e guerra precisamos relembrar alguns conceitos importantes da Teoria do Estado. Ao recordarmos estes conceitos pretendemos oferecer ao leitor elementos de análise crítica que possam permitir não apenas estabelecer a conexão lógica de um sistema moderno que se alimenta essencialmente da guerra, como também, a necessidade de construção de uma nova sociedade política, que permita a construção de relações internacionais fundadas no diálogo e na diversidade cultural.

Assim, a paz capaz de preservar o meio ambiente é um caminho a ser construído na superação do paradigma moderno.

3- A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE: A ERA EUROPÉIA

Uma data simbólica nos ajuda a compreender a construção da modernidade européia: 1492. Por que esta data? São dois os fatos históricos marcantes que inauguram a modernidade, sendo o primeiro deles a chegada de Colombo, em 1492, à América. Neste momento começa o processo de expansão militar, conquista e exploração sistemática dos que os europeus passaram a chamar de “recursos naturais”, reduzindo esta idéia aos recursos necessários para alimentar a expansão econômica européia. Esta concepção do ser humano separado da natureza e da natureza como fonte de recursos para este ser racional (o único) nos acompanhara até hoje. Esta idéia fundamenta a acelerada e contínua degradação ambiental que hoje, mesmo após todos os alertas sobre as suas conseqüências, continua em ritmo cada vez maior.

Esta invasão que se iniciou na América se estendeu aos outros continentes nos 500 anos de hegemonia militar e cultural européia.(11)

Naquele momento, quando europeus tomavam terras de uso comum de inúmeras comunidades originárias, assistíamos ao primeiro grande genocídio humano com milhões de indígenas assassinados, culturas extintas e o inicio de uma devastação ambiental com precedente na mesma Europa de onde vinham os invasores (que se diziam civilizadores).

O segundo fato histórico importante no ano de 1492 foi a expulsão dos mouros (muçulmanos) e dos judeus da Península Ibérica. Este é o marco para o início da formação do Estado Moderno e do seu direito territorial uniformizador, normalizador e hegemônico.

A fundação do Estado nacional e a expansão européia fundam o universalismo europeu(12) com o qual começamos a romper, lentamente e pontualmente, na contemporaneidade.

Os mitos modernos começam a ajudar a compreender as bases das sociedades de exploração de recursos e pessoas que se constrói a partir de então. Boaventura de Souza Santos(13) menciona os seguintes mitos: o selvagem; o oriental e a natureza separada do ser humano. Como visto, destes mitos, que sustentam a exploração da riqueza das Américas pelos invasores europeus que não consideram os selvagens (os povos originários) como pessoas, a separação do homem da natureza é um dos fundamentos ideológicos do sistema que perdura até hoje: a natureza, vista como algo separado de nós “racionais” serve para ser explorada pelos homens, abastecendo a sociedade humana e sua indústria de todos os recursos que estes necessitarem.

Uma característica essencial do Estado Moderno que deve ser levada em consideração para a compreensão do sistema é o fato deste Estado se constituir a partir da afirmação do poder do Rei diante de dois poderes que ocupam espaços territoriais distintos: o império com grande dimensão territorial e o poder local dos senhores feudais. A lógica que sustenta a idéia de soberania externa (independência) e soberania interna (supremacia de poder) tem uma característica hegemônica uniformizadora que sustenta a extinção de diversos povos e diversas culturas, assim como a submissão (temporária ao que parece) de diversas outras culturas.

Para que o poder do Estado nacional seja reconhecido ele necessita da uniformização de comportamentos da sua população. O Estado Moderno expulsa os mais diferentes(14) e uniformiza valores e comportamentos dos menos diferentes. Assim, para que todos os grupos étnicos do nascente Estado Espanhol reconheçam a autoridade do Rei, este não pode se identificar diretamente com nenhum destes grupos.

O Estado moderno que surge na Europa se pretende hegemônico (superior) em relação ao outro (estrangeiro) e reproduz internamente a lógica hegemônica e intolerante com o diferente uma vez que há sempre a dominação de um grupo étnico sobre os demais.(15)

A lógica que permanece deste Estado e do Direito por ele produzido é logo hegemônica e uniformizadora, subordinando pela força e pela ideologia todos que resistirem à sua supremacia. A ordem internacional também seguiu este modelo o que aparece expresso no Tratado de Versalhes e na Carta das Nações Unidas, no caso desta última quando se refere ao Conselho de Tutela(16). Da mesma forma o Direito Comunitário (que seria uma novidade do pós-guerra) também reproduz o mesmo modelo hegemônico ao impor um sistema econômico específico, fundado em um direito de propriedade uniformizador que ignora as imensas diversidades dos diversos grupos étnicos que habitam o continente europeu.

Em síntese, o processo de proliferação das guerras e de devastação ambiental segue a seguinte lógica:

a) O Estado Moderno, hegemônico e uniformizador é essencialmente violento;

b) Este Estado depende das forças armadas e da polícia para sobreviver, instituições que seguiram sendo desenvolvidas e profissionalizadas nos mais de 500 anos que sucederam à formação do Estado;

c) O modelo hegemônico interno cria as bases da economia capitalista: a moeda nacional, os bancos nacionais e o aparato repressivo do Estado, que sustentam a economia interna; e

d) Este Estado reproduz externamente a lógica hegemônica interna, enquanto a economia interna ultrapassa suas fronteiras em busca de recursos naturais e humanos e consumidores, por meio da conquista militar.

Ou seja, a economia de exploração da natureza e das pessoas ocorrida nos últimos quinhentos anos se baseou na conquista e ocupação militar de todo o planeta pelos europeus. A guerra permitiu a conquista de territórios de onde foram extraídos (e ainda são) os recursos naturais que permitem toda a expansão industrial e tecnológica da Europa. Desde o ouro, a madeira e a prata das Américas, ao coltan(17) da África, o sistema exploratório de recursos naturais por meio da guerra continua em ação, em larga escala.

4- A GUERRA COMO NECESSIDADE PARA A EXPANSÃO ECONÔMICA

A expansão econômica da Europa, iniciada no Século XVI, necessitou (e obviamente ainda necessita) da guerra e da dominação ideológica, para sua expansão.

São vários os exemplos históricos que comprovam a hipótese levantada. Entre eles podemos citar:

a) A exploração da prata, do cobre e do ouro nas Américas Central e do Sul para o financiamento do Império espanhol;

b) A formação do território dos Estados Unidos da América, com a invasão das terras dos povos originários no Norte e a invasão e anexação de parte do território mexicano (rico em petróleo);

c) A exploração do ouro de Minas Gerais enviado para Portugal, que ajudou a financiar a revolução industrial na Inglaterra;

d) A expansão territorial alemã, em busca de recursos naturais negados àquele país e aos seus industriais pelo tratado de Versalhes;

e) A expansão territorial japonesa sobre a Coréia e China, em busca de espaço e recursos naturais para sua indústria;

f) A invasão e repartição da África em muitos Estados artificiais, para a exploração de seus enormes recursos naturais;

g) A invasão e repartição do Oriente Médio em diversos Estados artificiais, títeres da exploração contínua dos seus recursos naturais; e

h) Mais recentemente, a invasão do Iraque em busca do petróleo (que trouxe um enorme peso ambiental com a queima de reservas de óleo).

Poderíamos aqui citar páginas e páginas de relatos de fatos ocorridos nos últimos quinhentos anos de hegemonia européia, que trouxeram consigo a economia capitalista e a acelerada degradação ambiental. Contudo, analisemos pontualmente algumas conseqüências militares da expansão econômica decorrente da Revolução Industrial. Esta expansão não proporcionou uma melhoria uniforme do nível de vida da população. Enormes diferenças sociais criaram cidades industriais inchadas e desiguais. O fruto da expansão foi apropriado por poucos, os mesmos poucos que se utilizaram da estrutura do Estado para garantir a segurança de sua riqueza acumulada, e que agora necessitam do aparato militar estatal para expandir seus negócios (em busca de mão-de-obra barata, novos mercados e recursos naturais). Podemos considerar as Guerras Mundiais do Século passado como resultados da expansão econômica do século XIX, onde as potências econômicas competiam por espaço. Como reflexo desta competição por espaço podemos citar experiências impactantes, tais como o nazismo e o fascismo italiano, bem como seus similares em outros países, especialmente no Japão.

Podemos perceber no início do século XX uma clara competição por espaço entre as seis grandes economias nacionais do planeta (e obvio as empresas nacionais destes países). De um lado Estado Unidos, Reino Unido e França, com muito espaço para exploração de recursos naturais, mão-de-obra e mercados (nas suas muitas colônias), e do outro lado potências industriais importantes, Alemanha (segunda maior economia industrial em 1910), Japão e Itália, em busca do mesmo espaço.

A Primeira e a Segunda Guerra Mundial foram frutos do imperialismo do Século XIX e da acomodação de áreas de influência e exploração das grandes potências industriais. Assim, Alemanha, Inglaterra e Japão (representados pelos interesses de seus empresários e de sua elite política a estes ligados) buscavam os espaços que, por sua vez, Estados Unidos, Reino Unido e França já haviam tomado.(18) Este conflito entre potências industriais capitalistas em nível global é provisoriamente resolvido com o cenário pós Segunda Guerra, aonde “tornou-se necessária” uma Europa ocidental unida, sob o domínio norte-americano, para barrar a expansão do socialismo no leste europeu sob a influência soviética.

Os supostos grupos inimigos da Segunda Guerra se encontram até hoje unidos no grupo dos sete grandes. Exatamente os mesmos: Estados Unidos; Reino Unido; França; Alemanha; Itália e Japão, acrescentando o Canadá que na época era formalmente colônia britânica.

Capitalismo, guerra e degradação ambiental na era européia andam juntos e inseparáveis. A paz parece impossível no sistema vigente. Mesmo que os conflitos tradicionais de guerras entre Estados nacionais, com exércitos fardados, tendam a desaparecer, dando lugar a outras formas de guerra, tais como: guerras civis (como na Colômbia); movimentos guerrilheiros (movimento Zapatista no México); ações terroristas (Al Qaeda); guerrilha urbana e conflitos religiosos (Iraque); guerra não convencional (Afeganistão); conflitos urbanos, tráfico de drogas e criminalidade organizada ou não organizada (nas metrópoles do mundo).

Se a mundialização do sistema capitalista sustentada por uma questionável democracia representativa liberal vai tornando desnecessária a guerra por recursos naturais entre Estados nacionais, o sistema econômico global, pela engrenagem demonstrada, necessita do conflito armado para manter os recursos conquistados, obter novos e manter sob controle qualquer indivíduo ou grupo que comprometam seus interesses.

6- A IDEOLOGIA SUBSTITUI A GUERRA?

Como dito acima, os conflitos armados convencionais (entre Estados nacionais) parecem vir diminuindo, contudo, não ocorre o mesmo com a violência (por recursos e poder) no interior dos Estados, o que se explica, em parte, pela expansão da democracia liberal e a globalização da economia. O fato é que, a guerra entre Estados nacionais de democracia liberal e economia capitalista foi substituída por um eficiente controle ideológico fundado na legitimidade de democracias representativas liberais comprometidas pelo financiamento privado de campanha; corrupção generalizada e desinformação gerada por uma imprensa concentrada nas mãos de conglomerados econômicos. As decisões são aparentemente democráticas porque tomadas por governos eleitos que governam com maioria da opinião pública.

Luis Barrios(19) cita dois exemplos entre vários que ilustram o que dissemos acima. O pesquisador aborda no seu artigo a exportação de riscos ambientais para os países economicamente mais frágeis e com democracias liberais representativas, enquanto os vultosos lucros permanecem nos países hegemônicos (especialmente Europa ocidental e o ocidente americano – EUA e Canadá).

O primeiro caso ocorre no Uruguai a partir de 1998. Seguindo o que vem ocorrendo no Chile, Brasil, Paraguai e Argentina, o governo eleito do Uruguai admite receber investimentos de empresas européias (no caso a ENCE espanhola e a METSÄ-BOTNIA finlandesa) para reflorestamento com fins de produção de papel. Entre os argumentos que fundamentam a propaganda, capaz de ganhar a simpatia da opinião pública sustentando assim a tomada de decisão do governo, estão os tratados de proteção de investimentos e o comércio do carbono instalado sob a proteção dos “mecanismo de desenvolvimento limpo” do protocolo de Kyoto. Estes tratados de proteção de investimento, segundo no informa Luis Barrios, tem a força de neutralizar a mobilização social que ocorre com o deslocamento de culturas tradicionais e expulsão de comunidades étnicas para naquelas terras plantar eucaliptos e pinhos. O mais absurdo é o fato destas plantações serem certificadas como bosques pelo Conselho de Manejo Florestal (Forest Stewardship Council), gerando, portanto, autorizações para continuar emitindo gases estufa nos países de origem dos donos das plantações. Em 2005 uma empresa Sueca (STORA-ENSO) iniciou a formação de seu parque florestal no Uruguai com a pretensão de comprar 90.000 hectares para plantar pinho e eucalipto e instalar uma fábrica de papel às margens de um dos principais afluentes do Rio Uruguai.

Esta prática de exportação de risco ambiental transferindo para os países considerados “subdesenvolvidos econômicos” (e para os europeus subdesenvolvidos sociais, culturais e políticos) os processos mais danosos de produção do papel não é o único exemplo:

“Os danos causados pelas explorações mineiras a céu aberto no Peru, Chile e Argentina; a instalação de industrias químicas que lançam seus dejetos contaminadores em rios e terras ou os armazenam na próprias fábricas; a invasão de culturas transgênicas no Brasil, Paraguai e Argentina, seguidas das correspondentes propagandas de presentes de semeadoras de segunda geração; o assédio das reservas de água doce, em particular as do lenços subterrâneo Guarani; a privatização de reservas naturais com o objetivo de criar novas espécies geradoras de patentes nanotecnológicas; a exportação de lixo tóxico de origens distintas. Enfim, uma lista interminável de decisões de risco e de perigosos empreendimentos em curso.”(20)

Todas estas ações são tomadas hoje por governos eleitos que se sustentam em uma opinião pública tomada pela ideologia (crença) de que a prosperidade do mercado com os investimentos estrangeiros impulsionarão a equidade social, proteção ambiental e segurança coletiva.(21) A silenciosa aceitação da opinião pública de constantes ações tomadas por governos eleitos contra os interesses dos eleitores é tema que necessita ser pesquisado e minuciosamente analisado. Os exemplos são muitos.

“Entre 1998 e 1999, 600 toneladas de sementes de algodão contaminadas, uns 4.000 KG de pesticidas e quantidades indeterminadas de uma bactéria fungicida, tudo fora de uso, foram jogadas em uma localidade próxima à cidade de Ybicuí, distante 120 Km da capital do Paraguai. Os dejetos tóxicos provinham dos Estados Unidos e pertenciam à empresa industrial química DELTA & PINE LAND Co. O caso foi relatado e documentado pelo jornalista Carlos Amorim, 2003, “As sementes da morte”. Desde novembro de 1998, o Paraguai era signatário da Convenção de Rotterdam. Além da óbvia toxidade de todo o carregamento, algumas das substâncias trazidas e jogadas nas proximidades de Ybicuí estavam explicitamente na lista de circulação controlada (PIC). O tratamento abertamente cúmplice que as autoridades paraguaias deram ao ilícito depois da primeira morte causada pelos dejetos é revelador da falta de defesa em que se encontram as populações do mundo subdesenvolvido quando se trata de enfrentar ilícitos por contaminação de poderosas tansnacionais que negociam, diretamente com os governos e com particulares sem escrúpulos.”

Importante notar que o Paraguai era, nesta ocasião, mais uma recente democracia liberal representativa com meios de comunicação concentrados como ocorre em muitos outros exemplos.

7- CAPITALISMO E A PRIVATIZAÇÃO DA GUERRA.

A guerra hoje não é apenas uma necessidade do sistema econômico em busca de recursos naturais e de sua manutenção. A indústria armamentista se tornou um grande negócio que se alimenta da guerra. A engrenagem se tornou mais complexa uma vez que a guerra não é apenas uma necessidade para possibilitar acesso a recursos, mas mesmo que não se necessite de recursos, mesmo que estes recursos estejam militarmente ou ideologicamente assegurados, a guerra se justifica pela necessidade de venda de produtos para a guerra. É a guerra pela guerra.

Não só a indústria armamentista se alimenta da guerra, mas todo um setor de serviços privados foi criado para possibilitar a guerra. Neste momento a engrenagem se ajusta: ações militares em busca de recursos; ações militares para manutenção dos recursos conquistados; ações militares para reprimir os excluídos do sistema econômico; ações militares para gastar os produtos da indústria bélica e finalmente ações militares para empregar os serviços privados de guerra.

Os exemplos também são fartos e basta prestar atenção aos jornais diários especialmente nos conflitos constantes no continente africano.


CITAÇÕES:

1 Não nos interessa aqui fazer qualquer abordagem sobre a idéia de paz interna (e sua oposição à paz externa), uma vez que ela está relacionada a conflitos no interior do indivíduo, tem natureza comportamental e não corresponde ao nosso objeto de estudo.

2 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PAQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol 2. 10ª ed. Brasília: Editora UnB, 1997. p. 911.

3 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PAQUINO, Gianfranco. Ob. cit. p. 911

4 Nem sempre o termo forte é o positivo e o fraco o negativo. Por exemplo, o binômio “ordem e desordem” tem como termo forte a “ordem”, que é o assunto de interesse dos estudiosos do Estado. Possivelmente a explicação para a diferença entre os dois binômios (paz/guerra e ordem/desordem) seja a prevalência de cada um dos termos em uma esfera das sociedades políticas: enquanto as sociedades estatais se caracterizam por uma pretensa “ordem”, a sociedade internacional se caracteriza (para a maior parte dos autores) pela anarquia, que se traduz potencialmente em estado de guerra. Logo, a ordem é o termo forte para o estudo do Estado e a guerra o termo forte para o estudo das relações entre os Estados.

5 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PAQUINO, Gianfranco. Ob. cit. p. 912

6 http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em 17/02/2010.

7 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PAQUINO, Gianfranco. Ob. cit. p. 914

8 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: RT, 2000, p.52

9 Compreendido como conjunto de interações entre a flora, fauna e microorganismos de um dado lugar, bem como o seu equilíbrio.

10 Lei nº6.938/81, art.3º, I.

11 Quando nos referimos a Europa hegemônica hoje nos referimos ao ocidente ou a OTAN: Europa ocidental, Estados Unidos e Canadá.

12 WALERNSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Editora Boitempo, 2008.

13 SOUZA SANTOS, Boaventura de. A Gramática do Tempo – para uma nova cultura política. São Paulo: Editora Cortez, 2006, p. 181-190.

14 Tomando como exemplo a Espanha os mais diferentes expulsos são os muçulmanos e judeus e os menos diferentes uniformizados são os diversos grupos étnicos cristãos ibéricos.

15 São vários os exemplos ainda hoje: castelhanos sobre bascos, catalães, galegos e andaluzes, na Espanha; ingleses sobre escoceses, galeses e irlandeses, no Reino Unido. Seguindo-se esta lógica em vários outros Estados (Itália, França, etc). Alguns Estados onde a hegemonia é menos clara as tensões também existem. A Bélgica, tenta solucionar, as hegemonias históricas de franceses e flamengos, com um federalismo assimétrico de grande complexidade.

16 Sobre o tema conferir: SOUZA, Tatiana Ribeiro de. Capítulo XIII – Conselho de Tutela. In: BRANT, Leonardo Nemer Caldeira (org.). Comentário à Carta das Nações Unidas. Belo Horizonte: CEDIN, 2008. p. 1067 a 1096.

17 Mistura dos minerais: Columbita (de onde se extrai o nióbio) e Tantalita (de onde se extrai o tântalo), O interesse em torno desta combinação mineral se deve às suas propriedades, necessárias na maioria dos eletrônicos portáteis (celulares, notebooks, computadores automotivos de bordo). A República do Congo abriga as maiores reservas de tantalita (na forma COLTAN, ou seja, junto com a columbita) e por esta e outras razões (étnicas, territoriais e políticas) se desenrola uma guerra civil há anos em torno da posse das minas. De acordo com a ONU já morreram mais 4 milhões de pessoas na dispusta pelo "ouro azul". Outro dado impressionante é o faturamento de mais de US$250 milhões que teve o Exército de Ruanda, no comércio do caro mineral, sendo que não há mineração de Coltan neste país vizinho do Congo. A falta de medidas protetivas ao meio ambiente, associada às dificuldades de extração destes minerais caros e raros na natureza), vem tornando a mineração de columbita-tantalita complexa, e de alto custo humano e ambiental.

18 http://pt.wikipedia.org/wiki/Coltan

19 Obviamente não ignoramos as potências medianas que também participaram da divisão global dos recursos com força diferenciada em momentos diferentes como Portugal, Espanha, Holanda e Bélgica, entre outros.

20 BARRIOS, Luis. “O difícil diálogo entre estratificação social e a sociedade do risco”. In: VARELLA, Marcelo Dias (org.) Direito, Sociedade e Riscos – a sociedade contemporânea vista a partir da idéia de risco. Brasília: Uniceub e Unitar, 2006.

21 BARRIOS, Luis. ob. Cit. p. 235-236.

22 Trabalhei em diversos textos de minha autoria a questão da ideologia e do encobrimento do real.


REFERÊNCIAS:

BARRIOS, Luis. “O difícil diálogo entre estratificação social e a sociedade do risco”. In: VARELLA, Marcelo Dias (org.) Direito, Sociedade e Riscos – a sociedade contemporânea vista a partir da idéia de risco. Brasília: Uniceub e Unitar, 2006.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PAQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol 2. 10ª ed. Brasília: Editora UnB, 1997.

MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: RT, 2000.

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Lei nº6.938/81, art.3º, I.

http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em: 17/02/2010.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Coltan. Acesso em: 17/02/2010

306- Artigos - Direito internacional fragmentado e proteção aos direitos humanos: as repercussões para o desenvolvimento dos estados nacionais por Jose Luiz Quadros de Magalhães e Henrique Weil

Direito internacional fragmentado e proteção aos direitos humanos: as repercussões para o desenvolvimento dos estados nacionais




Fragmented international law and the protection of human rights: the repercussions in the development of the states



Jose Luiz Quadros Magalhaes

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

ceede@uol.com.br

Henrique Weil

Pontificia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil

Faculdade de Direito UNIFEMM, Minas Gerais, Brasil



Resumo

O presente artigo pretende investigar a possibilidade de um diálogo construtivo em torno dos Direitos Humanos, tendo em vista uma ordem jurídica global contemporânea que se encontra em processo de fragmentação. A marca essencial desse processo é a consolidação de regimes autossuficientes, que se afastam das normas gerais de Direito Internacional, de modo a comprometer sua unidade. Tais regimes buscam tutelar disciplinas de elevada especificidade técnica, exigindo do operador legal o desenvolvimento de mecanismos capazes de compreender as peculiaridades das relações internacionais. Nesse contexto, a busca por um elemento capaz de conferir certa unidade em meio à fragmentação revela-se tarefa primordial.

Palavras-chave: Direito Internacional, fragmentação e unidade, políticas públicas.



Abstract

The present essay intends to investigate the possibilities of a constructive dialogue concerning Human Rights. The starting point of this task is the comprehension of the fragmentation process of the contemporary global legal system. The most important mark of this process is the consolidation of the self-contained regimes, which deviates from general norms of International Law, in a way that threatens its unity. Such regimes seek to regulate disciplines of particularly high degrees of technical expertise. It demands legal lawyers to develop mechanisms capable of understanding the peculiarities of international relations. In such a context, the search for an element capable of granting certain unity amidst fragmentation becomes paramount.

Key words: international law, fragmentation and unity, public policy.







Introdução



O fenômeno da globalização e a diversificação das relações internacionais imprimem variados desafios à ordem jurídica internacional. Novos sujeitos de Direito Internacional lutam por reconhecimento e por um papel mais ativo na consecução dos objetivos da agenda internacionalista: a lógica mercadológica, o liberalismo econômico e o ceticismo acerca da disposição dos Estados em reforçarem a aplicação das normas do Direito Internacional, os quais reduzem o potencial transformador do mesmo, que se modifica e se redefine aos moldes das forças atuantes no cenário mundial.

Muitos são os elementos que retiram o caráter unitário do Direito Internacional – que se fragmenta –, mas este deve ser analisado sob óticas mais condizentes com as estruturas e discursos presentes nas diversas racionalidades que competem pelos mesmos espaços normativos no plano global. Tais disputas, em seu turno, incidem de forma direta na autonomia dos Estados relativa ao planejamento de políticas públicas – em especial, políticas de saúde pública cuja qualidade e eficiência consistem na realização de Direitos das pessoas.



A unidade do Direito Internacional



Surgido no momento de consolidação (1) do moderno Estado-nação na Europa do século XVII, o sistema jurídico internacional teve como função principal a regulação das relações entre os mais importantes sujeitos de Direito em nível global.

É interessante notar que o predomínio do Estado-nação como o legítimo ator em nível global deveu-se ao desenvolvimento de algumas importantes formulações teóricas. Primeiramente, o conceito de soberania estatal inaugurou as noções fundamentais do monopólio do uso da força por parte das instituições estatais e o império do Direito no âmbito doméstico. A partir da noção de soberania estatal visualizou-se outro importante marco teórico para o plano jurídico internacional: a ideia de igualdade soberana entre os Estados.

A ampla aceitação destes conceitos pelos Estados republicanos do século XVIII foi essencial para o projeto de enfraquecimento do poder monárquico e consequente consolidação do Estado-nação moderno. O princípio da não intervenção em assuntos internos dos Estados – hoje positivado na Carta da Organização das Nações Unidas – seria, nesse contexto, desdobramento e corolário da igualdade soberana entre os Estados.

Com efeito, o mesmo processo histórico que caracterizou a formação do postulado da soberania estatal marcou também a consolidação de um “Estado de Natureza” em nível internacional. De um lado, o império do Direito no âmbito doméstico resultou da emergência do Estado como paradigma de organização social. De outro lado, a materialização de um mundo dividido em entidades soberanas culminou na legitimação do recurso à força armada como extensão da atividade política estatal e, não menos importante, na inviabilidade de formulação de uma entidade capaz de conferir ordem ao sistema global.

Destarte, o século XIX marca a consolidação de uma estrutura conceitual básica de Estado de Direito – influência da Revolução Francesa e da promulgação da Constituição dos Estados Unidos da América –, e sua gradual inserção no modelo de Estado-nação moderno produziu um Direito Internacional de coordenação: ao Direito Internacional competia fundamentalmente viabilizar as relações entre Estados independentes e autônomos (Rosenne, 2002), tomando a forma de um Direito meramente procedimental e que estaria a serviço dos Estados soberanos. Marcado primariamente pela unidade e sistematização, era, por assim dizer, um Direito voltado para a defesa do absolutismo nacional.



A fragmentação da ordem jurídica global



A função coordenativa do Direito Internacional em face dos Estados foi objeto de profundas alterações(2) no decorrer da segunda metade do século XX. A esse respeito, um importante marco toma forma: a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) no cenário resultante da Segunda Guerra Mundial, assim como os desafios de uma realidade internacional cambiante, representando a emergência de um novo momento para o Direito Internacional.

Para além da coordenação das relações entre os Estados, ao Direito Internacional são incorporados uma série de objetivos cuja realização integra uma nova agenda para a sociedade internacional. O sistema jurídico internacional reconhece o importante papel desempenhado pelas organizações intergovernamentais e, em certa medida, pelo ser humano como sujeito de Direito em nível global. A restrição das hipóteses de recurso ao uso da força armada(3), o amplo respaldo estatal à ONU e a codificação de um conjunto de direitos referente a todos os seres humanos são elementos que muito bem ilustram os novos desafios do Direito Internacional.

O processo de internacionalização(4) dos Direitos Humanos assume status de verdadeira cruzada (Cançado Trindade, 2006). Por conseguinte, representa tarefa de todos os Estados, com o auxílio das organizações internacionais, assegurar a realização desses direitos ao maior número de pessoas.

Desse modo, o Direito Internacional contemporâneo regula uma gama muito ampla de temas – merecendo atenção especial os Direitos Humanos, o comércio internacional e o meio ambiente. Para tanto, novas fontes produtoras de normas ganham força, regulando matérias de elevada complexidade e especificidade, dando origem a regimes próprios – fragmentados – e que vêm se tornando cada vez mais independentes das normas de Direito Internacional geral.(5)

A fragmentação da ordem jurídica global consiste na emergência de regimes autosuficientes cujo objetivo é regular disciplinas de elevada especificidade técnica e normativa. O fenômeno compreende, conforme o entendimento de Simma e Pulkowsky (2006), uma tendência de especialização funcional da ordem jurídica internacional por meio da elaboração de normas especiais que, por sua vez, afastam a aplicação das normas gerais de Direito Internacional, tais como as normas destinadas à responsabilização dos Estados: “A característica principal dos regimes ‘autossuficientes’ é a sua intenção de excluir totalmente a aplicação das sanções legais gerais de atos ilegais [...] em particular a aplicação de contramedidas por Estados prejudicados” (Simma e Pulkowsky, 2006, p. 493, tradução nossa).(6)

As instâncias fragmentadas – cujos exemplos mais notórios são a Organização Mundial do Comércio, o Direito da Diplomacia e os diversos regimes de proteção aos Direitos Humanos – empregam racionalidades específicas, isto é, apresentam modus operandi voltados para a realização dos objetivos de cada regime. De acordo com Gunther Teubner (1997, p. 5, tradução nossa)(7):



O novo direito do mundo é informado não por conjuntos de tradições e sim por uma autorreprodução contínua de redes globais altamente técnicas, especializadas, por vezes organizadas e vagamente definidas, de natureza econômica, cultural, acadêmica ou tecnológica.



Burke-White (2004) enfatiza que o crescimento no número de normas criadas desde o fim da Segunda Guerra Mundial – originadas de tratados bilaterais e multilaterais – representa uma tendência da elevada densidade do Direito Internacional. Conforme destacado pelo autor, não apenas eleva-se o número de matérias disciplinadas, como também a intensidade desta regulação é objeto de transformação: “A criação de tantas novas obrigações legais sugere que áreas anteriormente abarcadas no alcance da política nacional estão passando por um processo de legalização” (Burke-White, 2004, p. 968, tradução nossa).(8)

Não apenas no âmbito normativo a ordem jurídica internacional se transforma: as últimas décadas também foram marcadas por uma proliferação de tribunais e cortes internacionais destinados à resolução de uma miríade de conflitos internacionais. Teubner e Fischer-Lescano (2004) contabilizam cerca de 125 instituições internacionais que se enquadram nos requisitos de tribunais ou cortes, isto é, instituições nas quais autoridades independentes proferem decisões de cunho legal.(9)

Em um contexto de rompimento com a unidade do Direito Internacional, a teoria voluntarista(10) perde força e cede espaço a doutrinas que militam por uma conjugação de esforços de entidades não estatais na governança da sociedade internacional, com impactos diretos na formatação do próprio Estado contemporâneo.(11) Relativiza-se, portanto, o princípio da soberania estatal em face do papel desempenhado por organizações internacionais e entidades supraestatais no trato de questões globais, que irradiam consequências no nível do Estado-nação.

Especialistas apontam para diversos problemas práticos resultantes da adoção da ótica da fragmentação. Eventuais conflitos advindos da superposição de jurisdições de diferentes tribunais representam um sério obstáculo para a manutenção de uma configuração estável para a ordem jurídica internacional. Como consequência, as formas tradicionais de resolução de conflitos de normas parecem ser insuficientes diante da emergência desta ampla variedade de relações interracionais e interjurisdicionais, devendo os esforços voltar-se ao âmbito do desenvolvimento de novos modos de superação de conflitos (Burke-White, 2004). A disputa por espaços normativos, com a consequente imposição de um modo de pensar único, erradia efeitos não apenas para o Direito Internacional: a autonomia de governos e poderes locais é reduzida, minando sua capacidade de responder às demandas por programas políticos adequados às necessidades da população.



Comércio Internacional e Direitos Humanos



Os desafios advindos da abordagem fragmentária do Direito Internacional são observados no cotidiano da prática legal em nível internacional, cujos efeitos repercutem para a formação de políticas publicas pelos poderes locais. A disputa comercial em sede da Organização Mundial do Comércio (OMC), envolvendo os Estados Unidos e o Brasil, – centrado em torno da quebra de patentes por parte do governo brasileiro na produção de medicamentos para o tratamento da AIDS – consiste em um exemplo paradigmático desta nova realidade para o Direito Internacional, sendo, portanto, indispensável sua investigação.

O Artigo 68 da Lei de Patentes Brasileira (Lei n. 9279/96, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial) permite a produção doméstica de medicamentos por meio de cópias – os denominados medicamentos genéricos(12) – nos casos em que a população é ameaçada por determinada epidemia e os preços do medicamento no mercado mundial sejam excessivamente altos. O mesmo Artigo 68 estabelece a produção doméstica de medicamentos patenteados na hipótese de uma firma internacional que venha vendendo tais drogas por um período superior a três anos, sem, contudo, estabelecer uma linha de produção no país.

O programa brasileiro de tratamento da AIDS consumiu, em 1997, cerca de trezentos milhões de dólares com a compra de medicamentos. Dois medicamentos apenas – o Efavirenz e o Nefinalvir – representavam um terço desta despesa e eram patenteados pela multinacional norte-americana Merck e pela suíça Roche.

Uma vez que nem uma nem outra empresa estava engajada na produção dos medicamentos no Brasil, o Ministério da Saúde anunciou a produção genérica destes por meio do mecanismo “licença compulsória”. O governo norte-americano considerou tal ação potencialmente discriminatória para detentores de patentes deste país, vindo a solicitar consultas bilaterais perante a Organização Mundial de Comércio no ano 2001 (WTO, 2001a).

Em princípio, a questão deveria ser tratada como mais um caso envolvendo uma pendência tipicamente comercial, passível de ser submetida à OMC, conforme fizeram os EUA. No entanto, um exame mais detido da controvérsia traz à tona diferentes modos de se conceber a disputa: (i) um conflito entre a lei brasileira de patentes e os direitos dos donos das patentes (empresas norte-americanas); (ii) um conflito entre a Organização Mundial do Comércio e a Organização Mundial de Saúde (OMS), isto é, uma disputa entre jurisdições diversas; e (iii) um conflito envolvendo diferentes racionalidades que competem pelo mesmo espaço normativo.

O referido embate que, em uma interpretação superficial seria enquadrado como tipicamente comercial, resultou na elaboração de uma Resolução por parte da Comissão de Direito Humanos da ONU (United Nations Comission On Human Rights, 2000) no sentido da facilitação de acesso a medicamentos essenciais ao tratamento de pandemias – como a AIDS – e de assegurar o direito dos Estados em promover melhores condições de vida aos seus cidadãos.

Também na esfera comercial, o conflito teve repercussões que exorbitam a racionalidade meramente econômica: em novembro de 2001, a Rodada Doha (WTO, 2001b) afirmou o compromisso da OMC(13), facilitando a implementação de medidas de proteção à saúde pública por parte dos Estados membros. A este respeito, ponderam Teubner e Fisher-Lescano (2004, p. 1032, tradução nossa)(14):



Medidas como a do programa brasileiro de AIDS devem, portanto, ser excetuadas da lógica econômica na medida em que o padrão normal de proteção às patentes não deve ser aplicado nestes casos. Os conflitos críticos seriam uma das colisões identificáveis entre normas de racionalidade econômica e normas formadas no contexto da proteção da saúde.



Desse modo, constata-se a utilização de argumentos referentes à proteção a Direitos Humanos em sede de um órgão voltado para a resolução de disputas comerciais. Uma vez que “[...] não é mais possível resolver, por exemplo, questões referentes ao comércio de modo independente do problema da proteção ao meio ambiente ou a busca pelos direitos humanos” (Pauwelyn, 2004, p. 904)(15), as bem-sucedidas formulações de políticas públicas de saúde dependem, em muitos casos, da prevalência de uma racionalidade que privilegie a realização de Direitos Humanos, afastando argumentos que possam desvirtuar a disputa e enquadrá-la na esfera de aplicação de normas de comércio internacional.



Considerações finais



A força normativa e dissuasiva das variadas racionalidades atuantes no plano internacional mitiga o papel do Estado e reduz o âmbito da aplicação das doutrinas tradicionais do Direito Internacional. Com especial relevância, o poder desempenhado pelos interesses políticos e econômicos de empresas e governos, elites, ideologias e discursos cada vez mais sedutores enfraquecem, fragilizam e colocam em xeque o potencial emancipador do Direito Internacional em um mundo cada vez mais complexo, em que interesses muitas vezes conflitantes almejam sucesso.

Entretanto, a crise das doutrinas tradicionais não deve ser vista de forma negativa. O aprendizado com a experiência fragmentária pode ensejar a construção de um novo sistema internacional. Conflitos como os analisados neste texto são reveladores da impossibilidade de se reduzirem todas as questões a uma racionalidade meramente econômica e matematizada. O que pode ser analisado como crise pode ser finalmente compreendido como possibilidade de superação de um discurso ideológico que se tornou hegemônico nas ultimas décadas.

As transformações ocorrem a partir de conflitos que são reveladores de impossibilidades. A compreensão destas impossibilidades empurra os atores do jogo internacional, obrigatoriamente, para a construção de novas alternativas que, no caso, exigem a construção de um novo sistema capaz de religar saberes e construir discursos coerentes e integrais. A superação da redução do mundo a um mero discurso econômico, desta forma, não surge apenas de construções e embates teóricos, mas de práticas políticas no espaço institucional fragmentado internacional. O que se revela aí é o obvio das práticas políticas, novas soluções surgem de novos problemas. Discutir estas questões, revelando impossibilidades ideológicas permitirá novas configurações para um mundo integrado que se pretende que seja justo.



CITAÇÕES:

1 A este respeito, deve-se enfatizar que a construção do Estado-nação como ente abstrato deu-se de forma desigual ao redor do mundo, tendo sua consolidação ocorrida primeiramente na Europa – Portugal, Espanha, França e Inglaterra, em especial – a partir do domínio do poder da nobreza sobre os senhores feudais, para, em um momento posterior, afirmar-se perante o poder do Império e da Igreja do século XVII (Creveld, 2004).

2 De forma mais específica, as referências à iniciativa de criação da Liga das Nações – em 1919 – apontam para as profundas mudanças que marcaram o século por começar. O fato de o Senado dos Estados Unidos da América ter declinado de ratificar o Pacto das Ligas das Nações, em 1920, é visto como o principal motivo para o fracasso da Liga, uma vez que a falta de respaldo de um dos mais importantes Estados da época culminou no desmantelamento da organização. O Pacto Kellogg-Briand de 1928, que proibia o recurso à guerra como meio de solução de controvérsias também fracassou, pois dependia dos mecanismos de aplicação previstos no Pacto da Liga das Nações (Byers, 2007).

3 Assim dispõe o Artigo 2 (4) da Carta da ONU: “Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas”.

4 Dentre os tratados internacionais de Direitos Humanos de maior relevância, merecem destaque: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que até 2003 contava com 149 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que conta com 149 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura, que conta com 132 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial, que conta com 167 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, que conta com 170 Estados-partes; e a Convenção sobre os Direitos da Criança, que apresenta a mais ampla adesão, contanto com 191 Estados-partes.

5 “[...] constata-se a criação de novos regimes ‘às margens’ das normas de Direito Internacional geral, isto é, regimes que repudiam a estrita obediência ao texto legal, preconizando a realização dos objetivos mais específicos. Nesta seara, Martti Koskenniemi [...] aponta para os tratados de Direitos Humanos” (Afonso, 2009, p. 62).

6 “The principal characteristic of a self-contained regime is its intention to totally exclude the application of the general legal consequences of wrongful acts […] in particular the application of countermeasures by an injured state” (Simma e Pulkowsky, 2006, p. 493).

7 “The new living law of the world is nourished not from stores of tradition but from the ongoing self-reproduction of highly technical, highly specialized, often formally organized and rather narrowly defined, global networks of an economic, cultural, academic or technological nature” (Teubner, 1997, p. 5).

8 “The creation of so many new legal obligations suggests that areas previously within the exclusive purview of national politics are becoming legalized” (Burke-White, 2004, p. 968).

9 “Dentre outros, esta jurisdição internacional compreende a Corte Internacional de Justiça (CIJ), a Corte Internacional para o Direito do Mar, vários tribunais para reparações, cortes e tribunais penais internacionais, instâncias nacionais-internacionais híbridas, órgãos judiciais para comércio e investimento, tribunais regionais de direitos humanos e instituições derivadas de convenções, assim como outras cortes regionais, como a Corte Europeia de Justiça [...]” (Teubner e Fischer-Lescano, 2004, p. 1000-1001, tradução nossa). “Amongst others, this international jurisdiction comprises the International Court of Justice (ICJ), the International Tribunal for the Law of the Sea, various tribunals for reparations, international criminal courts and tribunals, hybrid internationa-national tribunal instances, trade and investment judicial bodies, regional human rights tribunals and convention-derived institutions, as well as other regional courts, such as the European Court of Justice […]” (Teubner e Fischer-Lescano, 2004, p. 1000-1001).

10 Boson (1994, p. 85) explica que a doutrina voluntarista repousa na ideia central de que o Estado soberano não se submete a nenhuma autoridade. Seu poder alcança a alcunha de ‘poder jurídico’ no momento em que esta entidade abstrata se impõe voluntariamente à observância de uma obrigação internacional: “Esta limitação voluntária é uma manifestação de seu poder, pela qual o Estado demonstra ser livre”.

11 Neste particular, importante tendência vem se observando na questão da segurança doméstica. Abrahamsen e Williams (2007, p. 241), em interessante estudo acerca da privatização da segurança pública na África do Sul, apontam para novas evoluções na questão do monopólio do uso da força pelo Estado e a participação de entidades não estatais no desempenho desta função. Nesse sentido, conferir Abrahansem e Williams (2007).

12 Decreto n. 9787, de 11 de fevereiro de 1999.

13 Também merece atenção a declaração da OMC quanto ao tema: “Nós enfatizamos a importância que conferimos à implementação e interpretação do Acordo de Comércio relativo a aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual (Acordo TRIPS) de forma a apoiar a saúde pública, através de promoção tanto do acesso a medicamentos existentes e pesquisa quanto o desenvolvimento de novos medicamentos [...]” (WTO, 2001c, p. ?, tradução nossa). “We stress the importance we attach to implementation and interpretation of the Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS Agreement) in a manner supportive of public health, by promoting both access to existing medicines and research and development into new medicines […]” (WTO, 2001c).

14 “Measures such as the Brazilian AIDS program must thus be exempted from economic logic to the degree that the normal standard for patent protection is not to be applied in such cases. The critical conflict issue would thus be one of identifying collisions between the norms of economic rationality and norms formed within the context of the protection of health” (Teubner e Fisher-Lescano, 2004, p. 1032).

15 “It is no longer possible to resolve, for example, trade questions de-linked from the problem of environmental protection of the pursuit of human rights. […] What must be avoided, however, is this fragmentation leading to self-contained islands of international law, de-linked from other branches of international law” (Pauwelyn, 2004, p. 904).





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305- Artigos - A lógica de exclusão moderna no Pacto de Imigração e Asilo da União Européia: nada de novo. por José Luiz Quadros de Magalhães e Carolina dos Reis

A lógica de exclusão moderna no Pacto de Imigração e Asilo da União Européia: nada de novo.


José Luiz Quadros de Magalhães

Carolina dos Reis

RESUMO

O presente artigo aborda a evolução da política européia de imigração e sua contradição com textos europeus e mundiais de proteção aos direitos humanos. Analisa o início da formação da Comunidade Européia e as decisões que conduziram a comunitarização do “problema” da liberdade de circulação de pessoas no território da União, e suas restrições contemporâneas.



Palavras chaves: União Européia. Imigração. Novo pacto europeu de imigração.




1. INTRODUÇÃO



A livre circulação de pessoas no território da União Européia é um desafio que a comunidade européia tenta superar desde o início da construção do projeto de integração econômica.

Inicialmente, a competência para decidir em matéria de entrada e permanência no território era exclusivamente dos Estados-membros. Contudo, o mercado unificado passou a exigir que os países abordassem a questão da circulação de pessoas de forma conjunta. Foram criados diversos grupos intergovernamentais cuja função era, seguindo o acordo de vontades estabelecido entre os Estados participantes, regularizar os critérios para entrada, permanência, concessão de asilo, cooperação civil e outros assuntos relacionados, de forma uniforme.

Somente em 1986 a comunidade européia percebeu a necessidade de conferir uma abordagem comunitária ao tema. Assim, o Ato Único Europeu determinou que a circulação de todos os fatores produtivos era elemento essencial da integração regional.

A partir daí uma série de diretivas, resoluções e tratados foram adotados para inserir o tema na esfera comunitária. As normas mais recentes sobre o tema foram assinadas no ano de 2008 e geraram grande repercussão na mídia, diversos organismos vinculados a proteção dos Direitos Humanos, assim como ativistas em todo o planeta, denunciaram a incompatibilidade destas normas com o sistema de proteção de direitos. Os bens de consumo são bem-vindos, as pessoas não.

Violadoras de direitos ou não, fato é que a União Européia evidenciou na diretiva de retorno e no pacto de imigração e asilo uma política há muito tempo por ela adotada, a de fechamento de suas fronteiras. Este o tema central deste artigo.

2. ORGANIZAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS EUROPÉIAS



Após a Segunda Guerra Mundial ressurgiu a idéia de construir uma unidade européia. A Europa encontrava-se mergulhada em problemas estruturais, econômicos e sociais. Os países precisavam ser reconstruídos e temia-se a expansão da proposta socialista para a Europa ocidental. A União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS) já tinha em sua área de influência diversos países da Europa oriental, e a situação social e econômica da Europa ocidental era terreno fértil para a expansão do socialismo.

Representa perfeitamente o ideal (da elite econômica e política da Europa) de construir uma unidade européia, o discurso proferido por Winston Churchill, no dia 19 de setembro de 1946, na Universidade de Zurique, onde esse conclamou os países europeus a se unirem para reconstruir a Europa e evitar novos conflitos.



“Contudo, é da Europa que nasce esta série de terríveis desavenças nacionalistas desencadeadas pelas nações teutônicas na sua ascensão ao poder a que assistimos no século XX. (...) Alguns pequenos estados conseguiram recuperar bem, mas vastas regiões da Europa apresentam o aspecto de uma massa de seres humanos atormentados, famintos, inquietos e infelizes, que vivem nas ruínas das suas cidades e das suas casas e perscrutam os castelos de nuvens escuras, tirania e terror que se acumulam e obscurecem os seus horizontes, receosos da aproximação de novos perigos. (...) Contudo, existe um meio de o impedir e que, se fosse aceite espontaneamente pela grande maioria da população dos vários estados, transformaria todo este cenário como por milagre e em poucos anos toda a Europa, ou pelo menos a maior parte do continente, viveria tão livre e feliz como os suíços o são hoje.

Em que consiste este remédio soberano? Consiste em recriar a família européia, na medida do possível, e oferecer-lhe uma estrutura que lhe permita desenvolver-se em paz, segurança e liberdade. Temos que construir uma espécie de Estados Unidos da Europa. Só assim é que centenas de milhões de seres humanos terão a possibilidade de recuperar as pequenas alegrias e esperanças que tornam a vida digna de ser vivida. Podemos chegar lá da maneira mais simples. Só precisamos da determinação de centenas de milhões de homens e mulheres em fazer o bem em vez do mal, para receber bênçãos em vez de maldições. (Discurso - Winston Churchill (19/09/1946, Zurique – Suíça).Conselho da Europa. Disponível em: http://www.coe.int/t/pt/com/About_CoE/POR_disc_Churchill.asp. Acesso em: 17 de dezembro de 2008).



Além disso, o plano de ajuda oferecido pelos Estados Unidos da América, conhecido como Plano Marshall influenciou a unidade européia. Esse plano exigia que os Estados europeus estabelecessem conjuntamente os procedimentos de utilização e investimento do auxílio concedido.

O processo de união da Europa começou de forma elitista, forjado por interesses econômicos europeus e norte-americanos e com a participação de lideranças políticas e empresariais distantes do dialogo com a população, que naquele momento sofria com as perversas conseqüências da segunda-guerra mundial. O déficit democrático até hoje incomoda a sociedade e os estudiosos da União européia, não só pela estrutura fechada e distante da população de suas instituições, como também pela reiterada desconsideração das decisões populares em plebiscitos como os ocorridos em relação à Constituição da Europa e o Tratado de Lisboa. A Constituição da Europa foi rejeitada por franceses e holandeses, Constituição esta que se transformou no Tratado de Lisboa, em um claro desrespeito a vontade popular expressa no referendo. O Tratado de Lisboa foi também rejeitado pela única população ouvida sobre sua aprovação: a irlandesa. Mesmo assim as lideranças políticas e econômicas européias insistiram no projeto até sua aprovação.

Na década de 1940 surgiram vários planos de cooperação no âmbito político, econômico e de defesa.

No plano econômico, em 1947, os dezesseis países que aceitaram a ajuda dos Estados Unidos da América se reuniram para estudar a proposta de auxílio (Plano Marshall). No ano seguinte, em Paris, no dia 16 de abril, esses países assinaram uma convenção que criou uma organização intergovernamental cujo objetivo principal era gerenciar e distribuir os recursos provenientes do Plano Marshall, que denominou-se Organização Européia de Cooperação Econômica (OECE). A OECE foi substituída pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Europeu (OCDE) em 14 de dezembro de 1960.

No plano da defesa, foi ratificado no mesmo ano (1948) o Tratado de Bruxelas que instituiu a União Ocidental, que foi alterado em 1954 pelos acordos de Paris, criadores da União da Europa Ocidental (UEO) . Essa organização estabelecia um “compromisso de assistência automática, em caso de agressão armada na Europa” (MARTINS, 2004, p.49).

Ainda no âmbito da defesa, foi assinado no dia 04 de abril de 1949, o Tratado de Washington que fundou a Organização do Tratado Atlântico Norte (OTAN). A função dessa organização é, assim como a da União da Europa Ocidental, segurança mútua entre os Estados em caso de agressão ou ameaça de agressão por países terceiros.

Contudo, a atuação da União Ocidental Européia foi muito limitada. A OTAN assumiu um papel preponderante no plano da defesa.

No âmbito político, foi criado também em 1949, em Estrasburgo, o Conselho da Europa com o intuito de assegurar e proteger os Direitos Humanos na Europa.

Em 1950 foi elaborada no seio do Conselho a Convenção para proteção dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais. Além disso, três instituições garantiam o cumprimento das disposições da Convenção: a Comissão Européia de Direitos Humanos, a Corte Européia de Direitos Humanos e o Comitê de Ministros do Conselho da Europa.

Nota-se, portanto, que em que pese os esforços para a construção de uma unidade européia, o que se alcançou nos primeiros anos do pós- segunda guerra mundial foram acordos internacionais entre Estados soberanos, estabelecidos em conformidade com o direito internacional clássico, ou seja, sem traços de comunitariedade ou de possível construção de um Estado europeu à semelhança do federalismo.





3. FORMAÇÃO DA UNIÃO EUROPÉIA



O ministro dos negócios estrangeiros francês, Robert Schuman, em uma conferência de imprensa realizada em 09 de maio de 1950 propôs ao governo da Alemanha Ocidental, representado pelo ministro Konrad Adenauer a criação de um mercado comum para integrar as indústrias de carvão e de aço dos dois países, uniformizando, assim, o controle da produção.

O convite representou um grande avanço na construção da unidade européia, pois sinalizou a necessidade de superar rancores e desavenças em prol da conservação de espaço econômico, “seu anúncio renovou o abalado convívio diplomático franco-alemão, ao transformar as matérias primas da guerra em instrumento a serviço da fraternidade e do progresso”. (VIAL, 2006, p.21). O romantismo da frase anterior representa o discurso ideológico que se constrói como justificativa da conformação de um espaço comum econômico, projeto que, como visto, contou com o decisivo apoio norte-americano. A construção de uma união econômica e política era tarefa essencial para enfrentar o mundo bipolar do pós segunda guerra mundial. Um forte espaço de economia capitalista na Europa era necessário para enfrentar o desafio da expansão do projeto socialista. O projeto de União da Europa não é um projeto democrático; não é um projeto da sociedade civil européia: é um projeto econômico das elite econômicas européias e do poder norte-americano.

No dia 18 de abril de 1951, foi assinado o Tratado de Paris que fundou a Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), que entrou em vigor em 1952 e expirou em 2002 (50 anos depois). A criação de uma comunidade que visava controlar, por meio de uma autoridade comum, todo um setor produtivo auxiliou a construção do que hoje conhecemos como União Européia. A cooperação econômica entre as potências capitalistas, que se impunha no pós guerra, em um mundo bipolar, pode ser expressa nos seguintes termos:



“(…) é sobretudo no plano político que se pode avaliar a dimensão inovadora da CECA. Com efeito, foi ela que lançou um processo original baseado na convicção da partilha de um destino comum e com uma visão a longo prazo. A colaboração serena e estruturada entre parceiros pôde assim sobrepor-se à confrontação rancorosa e por vezes violenta entre inimigos. A CECA encontra-se na base do modo de organização original que caracteriza hoje a União Européia, que consiste na criação de um sistema regulamentar autônomo, animado por instituições independentes dotadas dos poderes e da autoridade necessários para fazer funcionar o sistema. Neste contexto, a CECA contribuiu grandemente para a situação de paz, estabilidade, prosperidade e solidariedade que conhecemos hoje na União Européia.(Balanço Gerald a CECA. Disponível em http://europa.eu/ecsc/results/index_pt.htm, acesso em 28 de fevereiro de 2009).”


Os resultados alcançados pela CECA inspiraram a assinatura, na cidade de Roma em 1957, dos tratados constitutivos da Comunidade Econômica Européia (CEE) e da Comunidade Européia de Energia Atômica (EURATOM). Essas comunidades visavam estabelecer uma área de livre comércio que possibilitasse além da diminuição de obstáculos econômicos, a liberdade de circulação de pessoas e serviços.

A década de 1960 é marcada por um grande crescimento econômico. Em 1962, lança-se na CEE uma política agrícola comum (PAC) que conferiu aos Estados membros o controle da produção agrícola, em primeiro de julho de 1968 suprimem-se todos os direitos aduaneiros e cria-se uma zona de livre comércio européia.

Porém, na década de 1970 ocorreu uma retração nos negócios da comunidade em virtude da crise do petróleo. Com o intuito de evitar o desmantelamento do novo mercado regional, em 1979, é criado o Sistema Monetário Europeu cuja finalidade era auxiliar os Estados membros e impedir que esses adotassem medidas protecionistas.



“(...) foi necessário desenvolver novos mecanismos para impedir o déficit orçamental e, ao mesmo tempo, incentivar as subvenções comunitárias e os programas de investimentos nacionais, sem olvidar a justa distribuição econômica, em respeito ao ideal de solidariedade presente nos atos fundadores das Comunidades. (VIAL, 2006, p.23).”



O primeiro alargamento das Comunidades Européias ocorreu em 1973. Inglaterra, Dinamarca e Irlanda se unem a Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Holanda (Países Baixos), formando a comunidade dos nove. Em janeiro de 1981, ocorre o segundo alargamento, a Grécia aderiu a Comunidade após o término do seu regime militar em 1974 .

Em 28 de fevereiro de 1986 foi assinado o Ato Único Europeu (AU) que visou relançar o projeto integracionista europeu, segundo René Vial (2006) o objetivo desse relançamento era pôr fim ao “euroceticismo” que travava o crescimento do projeto de unificação. Foi necessário, portanto, rever a estrutura da comunidade para garantir efetivamente a implementação das liberdades fundamentais.

Neste sentido, tem-se que:



“ O Ato Único Europeu (AUE) revê os Tratados de Roma com o objetivo de relançar a integração européia e concluir a realização do mercado interno. Altera as regras de funcionamento das instituições européias e alarga as competências comunitárias, nomeadamente no âmbito da investigação e desenvolvimento, do ambiente e da política externa comum.(Ato único europeu. Disponível em: http://europa.eu/scadplus/treaties/singleact_pt.htm, acesso dia 28 de fevereiro de 2009).



Em fevereiro de 1992, a União Européia é formalmente instituída por meio da assinatura do Tratado de Maastricht. Ela funda-se nas comunidades européias já existentes (CECA, CEE, EURATOM) e em dois pilares intergovernamentais, quais sejam, na política externa e de segurança comum (PESC) e na cooperação judiciária em matéria de assuntos internos (CJAI), também denominada terceiro pilar.

O terceiro pilar tem por objetivo desenvolver a cooperação no domínio da justiça e dos assuntos internos; construir um mercado sem fronteiras internas e evidencia a necessidade de regras comuns em matéria de asilo, imigração, controle de fronteiras externas, luta contra a criminalidade internacional.

Neste período fica evidente o avanço econômico e político do processo de unificação europeu, mas ao mesmo tempo, e como conseqüência desse avanço, surgem debates sobre a necessidade de ampliar a participação do cidadão europeu nas tomadas de decisão, com uma ponderação de votos mais adequada à integração econômica e social.

Após Maastricht foram assinados outros tratados com o intuito de tornar a união mais efetiva. Assim, em 1997 foi assinado o Tratado de Amsterdã que entrou em vigor dia primeiro de maio de 1999 com o discurso oficial de criar um espaço de liberdade, segurança e justiça. Em 26 de fevereiro de 2001 assina-se o Tratado de Nice que tentou corrigir o déficit democrático da UE e estabelecer um processo de votação mais igualitário, antiga exigência dos cidadãos europeus. E em 2002 lança-se o Euro.

Dessa forma, resultou formado um processo de união entre Estados nacionais. As relações no âmbito da União Européia não são regidas pelo Direito Internacional clássico, essencialmente voluntarista e conseqüentemente sujeito à vontade soberana dos Estados, mas sim por um Direito Comunitário e supranacional, vinculador da vontade do Estado desde o momento em que este consente em integrar a união monetária.


3. POLITICA DE IMIGRAÇAO NA UNIÃO EUROPEIA



3.1 Antecedentes



A história européia está estreitamente ligada à circulação de pessoas. Por volta do século XIII as atividades comerciais eram realizadas em grandes feiras que duravam em media sete semanas. Comerciantes de várias regiões se reuniam para negociar produtos provenientes do oriente. Constantinopla e Alexandria eram os portos responsáveis pelo envio das mercadorias e Gênova e Veneza eram as portas de entrada européia.

Nos fins da idade média ocorreram mudanças que contribuíram para o surgimento de um novo período sócio-econômico na Europa, quais sejam o surgimento gradativo de uma nova classe econômica que nas palavras de A. Souto Maior “era possuidora de imensos capitais investidos em poderosas casas comerciais na Itália, Flandres e na Alemanha” (1996). Ocorre a substituição do sistema feudal por uma monarquia absoluta que centralizou o poder trazendo o progresso da marinha que incentivou novas viagens além mar. Portugal e Espanha apoiados por ricos comerciantes europeus desenvolveram audaciosos planos de navegação, expandiram o comércio com o oriente e lançaram os olhos sobre o oceano Atlântico.

Não tardou para que os portugueses, espanhóis e posteriormente outros estados nacionais, recém constituídos, conquistassem a América que se mostrava como um universo novo e intocado, cheio de riquezas. Muitos europeus migraram para o novo mundo em busca de riqueza ou de um novo lar e de lá extraíram muitas riquezas e deixaram, forçosamente, o modo de pensar e agir dos europeus. Segundo J. Höffner citado por Arthur J. Almeida Diniz:



“(...) o europeu foi ao encontro dos povos conquistados com a consciência de uma superioridade total, mesmo nos casos em que aqueles povos contassem com um passado de milênios... Esse processo foi tão poderoso e indelével que, uma vez terminada a dominação colonial, se tornou impossível o retorno às condições anteriores.” (DINIZ, 1996, 106).





O inicio da modernidade, marcada pela formação dos estados nacionais, fundou-se em três matrizes ideológicas poderosas, que por isto permanecem, em certa medida, até hoje, embora não oficialmente. Embora o discurso de igualdade tenha se afirmado lentamente no final do século XX, a ordem internacional e as relações entre os estados ainda se funda em mitos (idéias falsas) que sustentam ideologias (encobrimentos) como, por exemplo, o mito do selvagem, do oriental e da natureza. Conforme nos lembra Boaventura de Souza Santos , estas três matrizes justificaram, e ainda justificam crimes cometidos pelo invasor europeu nas Américas, África e Ásia. A presença destes mitos ainda hoje e bastante clara:

a) O selvagem como ser inferior, não humano. Assim eram vistas as populações originarias das Américas desde a época da invasão européia nos século XV, XVI e seguintes. A repercussão disto ocorre até hoje, quando finalmente as populações originárias começam a assumir seu próprio destino de forma democrática na Bolívia, Equador (com governos democráticos e novas Constituições) e Paraguai com a eleição de Lugo como Presidente da Republica em 2009.

b) O oriental e o oriente como uma cultura rica que ficou no passado. O inimigo perigoso, pois diferente dos selvagens americanos, tem forte cultura que, entretanto, foi superada pela civilização européia. Os crimes de guerra comuns contra os povos islâmicos pode ser um dos exemplos deste mito, ainda hoje.

c) A natureza como algo a ser domado e explorado, fundamenta toda a relação que ainda temos com o meio ambiente. A natureza é selvagem e nós, humanos, somos postos fora deste espaço. Não somos parte integrante da natureza. A natureza nos oferece recursos a serem explorados. Este mito fundamenta o sistema econômico vigente e nos leva de forma acelerada para a destruição da “espécie” humana no planeta.


3.2- Para a compreensão do Estado moderno como projeto excludente e hegemônico.


A formação do Estado moderno a partir do século XV ocorre após lutas internas onde o poder do Rei se afirma perante os poderes dos senhores feudais, unificando o poder interno, unificando os exércitos e a economia, para então afirmar este mesmo poder perante os poderes externos, os impérios e a Igreja. Trata-se de um poder unificador numa esfera intermediária, pois cria um poder organizado e hierarquizado internamente, sobre os conflitos regionais, as identidades existentes anteriormente a formação do Reino e do Estado nacional que surge neste momento e de outro lado se afirma perante o poder da Igreja e dos Impérios. Este é o processo que ocorre em Portugal, Espanha, França e Inglaterra.

Destes fatos históricos decorre o surgimento do conceito de uma soberania em duplo sentido: a soberania interna a partir da unificação do Reino sobre os grupos de poder representados pelos nobres (senhores feudais), com a adoção de um único exército subordinado a uma única vontade; a soberania externa a partir da não submissão automática à vontade do papa e ao poder imperial (multi-étnico e descentralizado).

Um problema importante surge neste momento, fundamental para o reconhecimento do poder do Estado, pelos súditos inicialmente, mas que permanece para os cidadãos no futuro estado constitucional: para que o poder do Rei (ou do Estado) seja reconhecido, este Rei não pode se identificar particularmente com nenhum grupo étnico interno. Os diversos grupos de identificação pré-existentes ao Estado nacional não podem criar conflitos ou barreiras intransponíveis de comunicação, pois ameaçarão a continuidade do reconhecimento do poder e do território deste novo Estado soberano. Assim a construção de uma identidade nacional se torna fundamental para o exercício do poder soberano.

Desta forma, se o Rei pertence a uma região do Estado, que tem uma cultura própria, identificações comuns com a qual ele claramente se identifica, dificilmente um outro grupo, com outras identificações, reconhecerá o seu poder. Assim a tarefa principal deste novo Estado é criar uma nacionalidade (conjunto de valores de identidade) por sobre as identidades (ou podemos falar mesmo em nacionalidades) pré-existentes. A unidade da Espanha ainda hoje está, entre outras razões, na capacidade do poder do Estado em manter uma nacionalidade espanhola por sobre as nacionalidades pré-existentes (galegos, bascos, catalães, andaluzes, castelhanos, entre outros). O dia que estas identidades regionais prevalecerem sobre a identidade espanhola, os Estado espanhol estará condenado a dissolução. Como exemplo recente, podemos citar a fragmentação da Iugoslávia entre vários pequenos estados independentes (estados étnicos) como a Macedônia, Sérvia, Croácia, Montenegro, Bósnia, Eslovênia e em 2008 o impasse com Kosovo.

Portanto a tarefa de construção do Estado nacional (do Estado moderno) dependia da construção de uma identidade nacional, ou em outras palavras, da imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para que assim todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano. Assim, na Espanha, o rei castelhano agora era espanhol, e todos os grupos internos também deveriam se sentir espanhóis, reconhecendo assim a autoridade do soberano.

Este processo de criação de uma nacionalidade dependia da imposição e aceitação pela população, de valores comuns. Quais foram inicialmente estes valores? Um inimigo comum (na Espanha do século XV os mouros, o império estrangeiro), uma luta comum, um projeto comum, e naquele momento, o fator fundamental unificador: uma religião comum. Assim a Espanha nasce com a expulsão dos muçulmanos e posteriormente judeus. É criada na época uma polícia da nacionalidade: a santa inquisição. Ser espanhol era ser católico e quem não se comportasse como um bom católico era excluído.

A formação do Estado moderno está, portanto, intimamente relacionado com a intolerância religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões e limites. O Estado moderno nasce da intolerância com o diferente, e dependia de políticas de intolerância para sua afirmação. Até hoje assistimos o fundamental papel da religião nos conflitos internacionais, a intolerância com o diferente. Mesmo estados que constitucionalmente aceitam a condição de estados laicos têm na religião, uma base forte de seu poder: o caso mais assustador é o dos Estados Unidos, divididos entre evangélicos fundamentalistas de um lado e protestantes liberais de outro lado. Isto repercute diretamente na política do Estado, nas relações internacionais e nas eleições internas. A mesma vinculação religiosa com a política dos Estados podemos perceber em uma União Européia cristã que resiste a aceitação da Turquia e convive com o crescimento da população muçulmana européia.

O Estado moderno foi a grande criação da modernidade, somada mais tarde, no século XVIII, com a afirmação do Estado constitucional.

Ao contrário do que alguns apressadamente anunciam, o Estado nacional não acabou, ainda será necessário por algum tempo, assim como a modernidade está aí, com todas as suas criações, em crise sim, mas sem podermos ainda visualizar o que será a pós-modernidade anunciada e já proclamada por alguns. Estamos ainda mergulhados nos problemas da modernidade.



3.3- Migração.



O fluxo migratório Europa –América se manteve durante muitos anos, mesmo depois do fim da colonização. A América “oferecia condições propícias para inovações econômicas, como, por exemplo, a possibilidade de se tentar uma nova estrutura fundiária e agrícola” (VIAL, 2006, p.49).

Porém, no pós-Segunda Guerra Mundial ocorreu uma drástica inversão na corrente migratória. A Europa destruída pela guerra necessitava de mão de obra barata para auxiliar em sua reconstrução. Surgiu, portanto, a figura dos guest workers – trabalhadores braçais, com baixo nível de instrução e provenientes de vários continentes.

Na década de 1960, a Europa sofria como um aumento demográfico causado pela permanência dos guest workers no continente, pela chegada de seus familiares e pelo aumento do número de refugiados que, com fundamento na Convenção de Genebra de 1951 buscavam refúgio na Europa. Em decorrência disso houve uma mudança drástica no padrão das migrações. A oferta de mão de obra passou a ser maior que o número de vagas de trabalho.

Durante a crise econômica de 1970, o número de imigrantes aumentou, várias pessoas deixaram seus países em busca de melhores condições de vida. A taxa de desemprego cresceu e esse se tornou o maior desafio para as recém criadas comunidades européias. A solução encontrada foi estabelecer uma política de trancamento das fronteiras externas. Dessa forma, aqueles trabalhadores estrangeiros antes bem vindos ao território europeu foram considerados os responsáveis pela crise econômica, eram, portanto, figuras indesejáveis.

Não obstante as políticas para impedir a imigração nas fronteiras externas, o número de pessoas que chegavam a Europa na década de 1990 era cada vez maior, o que preocupava sobremaneira os governos. Por outro lado, certos setores privados demandavam a contratação de mão de obra estrangeira altamente especializada para suprir o déficit existente na Europa em virtude do envelhecimento da população economicamente ativa e da queda na taxa de natalidade.

A alternativa foi entreabrir as fronteiras externas para aqueles trabalhadores especializados requisitados pelos setores privados. Assim podemos visualizar dois “tipos” básicos de trabalhadores estrangeiros na Europa: os legalizados, requisitados pelo alto nível de formação e os clandestinos que deixaram seu país de origem em busca de melhores condições de vida.



3.4 Desenvolvimento da política de imigração na União Européia.


3.4.1 Organismos intergovernamentais


As primeiras formas de regulamentação do processo de migração interna e externa nos países europeus do ocidente eram elaboradas individualmente por cada país ou conjuntamente por meio da criação de grupos intergovernamentais, ou seja, sem a participação das instituições da Comunidade Européia. Cada país prefere decidir individualmente quais são os efeitos da migração em seu país.

O distanciamento das instituições da Comunidade Européia na solução das questões relativas à circulação de pessoas propiciou o aparecimento de organismos intergovernamentais, como por exemplo, o Grupo Trevi- Terrorismo; Radicalismo e Violência internacional; Ad Hoc da Imigração; Coordenadores para a livre circulação de pessoas e o Grupo Schengen.

O Grupo Trevi foi criado em 1975 e visava combater o terrorismo e demais crimes internacionais – tráfico de drogas, tráfico de armas e de seres humanos e coordenar cooperação policial entre os Estados participantes.

O Grupo Schengen, principal grupo destinado ao controle de migrantes na Comunidade Européia, foi criado em 14 de junho 1985 por um acordo entre Alemanha, França e os Países do Benelux e entrou em vigor em 1995, com o convênio de Aplicação. Os cincos Estados signatários fixaram regras comuns em matéria de vistos; direito de asilo; de controle nas fronteiras externas; de cooperação entre serviços policiais e aduaneiros. Foi, ainda, instalado um sistema de informação para a troca de dados relativos à identidade das pessoas.

O sistema Shengen vai se tornando aos poucos, um monstro tecnológico de controle sobre as pessoas. Este sistema procura integrar em um arquivo central as fotografias; as impressões digitais; o DNA; e os dados biométricos que serão ligados aos sistemas de reconhecimento facial e de íris dos olhos (SIS II), permitindo com isto uma melhor identificação das pessoas controladas. Este sistema considera, por exemplo, os militantes “altermundialistas” como “pessoas potencialmente perigosas que devem ser impedidas de participarem de encontros internacionais”.

Segundo informações de final de 2001, a base de dados Shengen continha então mais de dez milhões de registros, entre os quais 15% sobre pessoas. Destas pessoas, 90% dos dados são sobre “estrangeiros indesejáveis”.

O Ato único Europeu (1986) conferiu uma nova redação ao artigo 8 -A do Tratado da Comunidade Européia considerou a circulação de pessoas como um dos principais elementos do Mercado único e transferiu para a esfera comunitária os assuntos relativos a essa questão.

“Com efeito, o Ato Único Europeu introduziu dispositivos que possibilitava aproximar a cooperação entre as diversas instâncias nacionais, para, de tal modo, fortalecer o mercado unificado, através da livre circulação de pessoas. Por imperativo metodológico, os organismos da União Européia seriam avisados dos projetos que os Estados-membros continuavam desenvolvendo, preferencialmente, de maneira concertada, evitando, assim, uma prejudicial dispersão de energias. (VIAL, 2006, p.56).”

De tal modo, os grupos intergovernamentais criados após a assinatura do Ato único passaram a contar com observadores da Comissão em sua estrutura.

O grupo Ad Hoc da Imigração, criado em 1986, constituído por Ministros de Estado encarregados das questões da imigração, estabeleceu seu secretariado junto ao secretariado do Conselho da Comunidade Européia para facilitar a comunicação entre sua estrutura e a da Comunidade.

O Grupo Intergovernamental de coordenadores para a livre circulação de pessoas (1988), por sua vez, foi encarregado pelo Conselho Europeu de Rhodes de apontar medidas que permitissem conjugar a livre circulação de pessoas e segurança, depois de suprimido o controle nas fronteiras internas. Propôs, em 1989, um programa de trabalho (documento de Palma) que preconizava uma abordagem mais coordenada dos diferentes aspectos da cooperação em matéria de justiça e de assuntos internos.

Em contrapartida, em que pese a evolução da atuação da comunidade nesses grupos após o ato único europeu, o parlamento europeu e os parlamentos nacionais não exerciam qualquer controle sobre as ações devido a natureza intergovernamental dos grupos.

O tratado de Maastricht estabeleceu que as questões relativas a imigração seriam, dentre outras matérias, tratadas pelo terceiro pilar, ou seja, a Cooperação judiciária e em matéria de Assuntos Internos (CJAI), o qual se baseia na aplicação uniforme das normas dos Estados membros. As soluções tomadas neste pilar não fazem parte do Direito Comunitário, não gozam de primazia, nem efeito direto sobre os ordenamentos jurídicos estatais, são decisões tomadas entre os Estados-membros e aplicadas de forma uniforme.

“No Tratado de Maastricht ficou ajustado que os Estados-membros deveriam buscar informações e cooperarem mutuamente, sob orientação do conselho, que poderia elaborar convenções e recomendá-las aos Estados - membros, levando em conta o processo de reparação adotado por suas normas constitucionais. O Conselho de Ministros poderia aprovar também, outros documentos que refletissem o interesse estatal, sobretudo perante organismos internacionais, mas somente quando os governos não pudessem agir melhor de forma separada (posições e ações comuns)”. (VIAL, 2006, p.57).

As instituições da União possuíam uma atuação limitada nestas questões, o Tribunal de Justiça poderia interpretar as convenções se expressamente previsto no texto do acordo, pacto ou convenção. Não era necessário consultar o Parlamento Europeu. A Comissão Européia possuía direito de iniciativa limitado a certas matérias e partilhado com os Estados-membros. E a atuação do conselho dependia de unanimidade.

O Tratado de Amsterdã assinado em 2 de outubro de 1997, entrou em 1 de maio de 1999 criou um espaço de “liberdade, segurança e justiça” e assim transferiu as questões relativas à circulação de pessoas, controle das fronteiras externas, asilo, imigração, proteção dos direitos dos nacionais de países terceiros e cooperação judiciária em matéria civil para o domínio da Comunidade, ou seja, essas questões serão regulamentadas pelas instituições da União Européia.

O papel do Tribunal de Justiça Europeu é reforçado. O Tratado de Maastricht não previa a atuação do Tribunal em matéria de justiça e assuntos internos (os quais envolvem circulação de pessoas), portanto não era competente para controlar as decisões adotadas pelo Conselho. Sua atuação, como dito anteriormente, se restringia a interpretação caso um acordo ou convenção o previsse previamente.

Assim, o Tratado de Amsterdã, no título IV, (que trata essencialmente sobre circulação de pessoas, do asilo, da imigração e da cooperação judiciária civil) prevê que o Tribunal de Justiça detém competência nas seguintes circunstâncias:

“Uma jurisdição nacional de última instancia poderá requerer que do Tribunal se pronuncie sobre uma questão de interpretação do titulo em causa ou sobre a validade e a interpretação dos atos das Instituições da Comunidade fundamentados neste Titulo se for necessária uma decisão do Tribunal de Justiça para que a jurisdição nacional possa emitir o seu parecer;

Do mesmo modo, o Conselho e a Comissão ou qualquer outro Estado-membro poderão solicitar-lhe que se pronuncie sobre uma questão de interpretação deste Titulo ou de quaisquer actos adoptados com base neste. Contudo, o Tribunal de Justiça não será competente se pronunciar sobre as medidas ou decisões tomadas para garantir a supressão de qualquer controlo das pessoas (cidadãos da União Européia ou nacionais de países terceiros) quando transpõem as fronteiras internas.”

(TRATADO de Amsterdã: liberdade, segurança e justiça. Disponível em http://europa.eu/index_pt.htm acesso em 25/11/2009).

3.2.2. O Espaço de “Liberdade, Segurança e Justiça”.


Após a assinatura do Tratado de Amsterdã o Conselho Europeu de Viena (1998) decidiu convocar uma reunião extraordinária para orientar as instituições comunitárias nos cinco anos seguintes sobre a efetivação do espaço de “liberdade, segurança e justiça”.

É impressionante como as palavras se desconectam de seu sentido originário. Isto é um perigoso anuncio de uma forma mais sofisticada de totalitarismo. Como afirma o filósofo esloveno Slavoj Zizek, vivemos uma luta internacional pela construção do senso comum. Quem é capaz de dizer o que é “liberdade”, “justiça”, “segurança” e “desenvolvimento”, entre outras “palavras-chave” deterá o poder sobre as pessoas e suas consciências.

O Conselho Europeu se reuniu em outubro 1999, na cidade de Tampere, Finlândia para definir quais os elementos necessários à implementação de uma política de imigração da União Européia. Nesta reunião formularam uma Agenda (denominada Agenda de Tampere) destinada a estabelecer os contornos da política de imigração, a qual, em suma, deveria levar em consideração: 1) o fluxo migratório para alcançar o equilíbrio entre admissões humanitárias e econômicas; 2) tratar de forma justa os nacionais de terceiros Estados e na medida do possível lhes atribuir os mesmos direitos e obrigações dos nacionais do Estado em que vivem; 3) desenvolver parcerias com os países de origem.

Em 2004, data limite para a implementação do programa de Tampere, o Conselho Europeu aprovou o Programa Quadro de Haia, em que estabeleceu como objetivo o fortalecimento do espaço de liberdade, segurança e justiça no período de 2005-2010.

Conclui-se que o tratado de Amsterdã ao criar um espaço de liberdade, segurança e justiça reafirma e reforça a idéia (anteriormente descrita no Ato Único Europeu) de que a circulação dos fatores produtivos é elemento essencial da integração regional.

4. DIRETIVA DE RETORNO E PACTO DE IMIGRAÇAO E ASILO

Ana Maria Guerra Martins em seu livro Curso de Direito Constitucional da União Européia (2004) ensina que a diretiva é vinculante quanto aos fins a serem alcançados, porém cabe as instituições nacionais definirem quais os meios para alcançar os resultados nela expressos. Além disso, se destinada a todos os Estados membros deve ser imediatamente implementada, “apresenta-se como um processo de legislação indirecta e é um acto de alcance geral”.(MARTINS, 2004, p.396).

Todavia, não é diretamente aplicável aos nacionais, uma vez destina-se somente aos Estados-membros. Deve ser, portanto, internalizada na legislação nacional para que tenha efeitos sobre os nacionais.

Contudo, ainda, segundo Ana Maria Guerra Martins (2004), se o Estado não proceder a internalização da diretiva no prazo previsto, essa poderá, em certas circunstâncias, ser diretamente aplicável para resguardar os direitos dos nacionais que não podem ser prejudicados pela inércia do Estado.

A diretiva de retorno, aprovada em 18 de Junho de 2008, visou estabelecer um conjunto de normas horizontais aplicáveis aos nacionais de países terceiros que não preencham ou tenham deixado de preencher as condições de entrada, permanência ou residência num Estado-Membro.

Neste sentido, entende-se por nacional de país terceiro uma pessoa que não seja cidadão da União e que não beneficie do direito comunitário à livre circulação.

A diretiva, portanto, prevê uma série de normas para a expulsão de imigrantes ilegais do território da União Européia e evidência uma tendência, há anos iniciada, de considerar o estrangeiro como responsável pelos problemas sócio-econômicos da região. Esqueceram que a Europa explorou recursos de todo o planeta, exportou cidadãos em momento de crise interna, e importou pessoas em momentos de expansão econômica, para depois expulsá-los, como faz em 2009, nos momentos de crise econômica.

Dentre as normas estabelecidas tem-se: 1) os Estados-Membros devem assegurar que seja posto termo à situação irregular de nacionais de países terceiros através de um procedimento eqüitativo e transparente; de acordo com os princípios gerais do direito comunitário, as decisões baseadas na diretiva devem ser tomadas caso a caso e ter em conta critérios objetivos sendo a análise não limitada ao mero fato da residência ilegal; necessários acordos de readmissão comunitários e bilaterais com os países terceiros para facilitar o procedimento de regresso; o regresso voluntário deveria ser privilegiado; é conveniente conferir uma dimensão européia aos efeitos das medidas nacionais de regresso, mediante a introdução de uma interdição de entrada e permanência no território de todos os Estados-Membros, essa interdição não deveria ser superior a cinco anos; o recurso à detenção para efeitos de afastamento deveria ser limitado e sujeito ao princípio da proporcionalidade no que respeita aos meios utilizados e aos objetivos perseguidos.

Sob a luz da diretiva de retorno o Conselho Europeu adotou o Pacto Europeu sobre Imigração e asilo, em 24 de setembro de 2008, que prevê cinco compromissos para o controle das imigrações.

O primeiro compromisso trata sobre a organização das imigrações legais, conforme as prioridades, necessidades e capacidade de recepção do Estado-membro. A reunificação familiar dos imigrantes legais será incentivada desde que os familiares estejam aptos a se integraram à cultura do país e este tenha condições de acolher os familiares.

Ademais, as políticas de imigração serão implementadas para satisfazer as demandas do mercado de trabalho, dar-se-á preferência a profissionais altamente qualificados. Serão implementados programas de informação aos imigrantes sobre seus direitos e deveres e programas que permitam a integração desses ao Estado em que trabalharão.

O segundo compromisso é controlar as imigrações ilegais, neste ponto a União Européia adotou uma postura bem menos tolerante.

Os imigrantes clandestinos deverão deixar o território, o retorno será realizado preferencialmente de forma voluntária, mas em caso de resistência adotar-se-á o retorno forçado, podendo haver restrição da liberdade, por prazo não superior a seis meses.

Cada Estado-membro adotará medidas para garantir o retorno dos imigrantes ilegais. E se comprometerá a receber seus nacionais que estejam ilegais em outros países e deverão reconhecer a decisão de retorno de outro Estado-membro.

O novo pacto prevê, ainda, como terceiro compromisso um controle mais efetivo das fronteiras externas através de maiores investimentos dos Estados-membros nessa área, além de destinarem recursos para “Frontex Agency” .

Deverão, também, ampliar as trocas de informações entre si e gradualmente, de forma voluntária, unir os serviços consulares. Além de auxiliarem, em espírito de solidariedade, as dificuldades daqueles Estados-membros sujeitos a um desproporcional fluxo de imigrantes.

E por fim, o pacto estipula a intensificação da cooperação com os Estados de origem e de trânsito, por meio de: 1) aumento de auxílio financeiro para que estes países invistam em equipamentos e treinamento de pessoal responsável pelo controle do fluxo de migração; 2) celebração de acordos entre a União Européia e estes países para criar oportunidades de migração legal conforme as necessidades do mercado de trabalho europeu; 3) desenvolvimento de mecanismos de imigração temporária, de acordo com o mercado de trabalho interno, para desta forma, promover trocas de experiências entre países a fim de levar ao crescimento de ambos.

Há, portanto, em 2008 um recrudescimento da política de controle da imigração na União Européia, os europeus agora mais do que antes declararam que há um espaço de “liberdade, segurança e justiça” na União, porém este espaço funcionará prioritariamente para os cidadãos europeus. Os estrangeiros serão convidados a compartir desse espaço quando puderem oferecer alguma vantagem para o país que o recebe.


CONCLUSÃO



A Europa ocidental é para muitos um mundo cheio de possibilidades e riquezas. Os habitantes dos países que foram fontes de recursos para as potencias coloniais européias sonham ter acesso a este universo maravilhoso, construído em grande parte pela riqueza explorada de seus países. Porém, sua entrada é altamente limitada. Por que? O que os torna diferentes dos nacionais dos países desenvolvidos?

Bem, a resposta é simples, a pobreza. A mesma pobreza que os Europeus ajudaram a construir através da colonização.

Durante muitos anos os países, hoje, pobres foram explorados pelo velho mundo. Os europeus se lançaram ao mar, ansiosos por mais conhecimento, fortuna e poder. Encontraram terras desconhecidas e cheias de riquezas. Ali habitavam imensas comunidades, com um modo de vida, religião, costumes próprios.

Os recém chegados não se importaram. Os habitantes daquelas terras primitivas eram como animais e deveriam ser educados ao modo europeu. Dessa forma, com a mesma velocidade em que destruíram a identidade do povo, extraíram todos os recursos.

Interessante observar que atualmente são os descendentes destes habitantes escravizados que buscam prosperidade na Europa. Entretanto as portas européias estão fechadas para eles.

A Europa tem o poder que os países conquistados não tinham, o poder de dizer não. O poder de dizer: estrangeiro, aqui você não é bem vindo, sua presença sobrecarrega meu sistema social e aumenta a criminalidade. A Europa não tem qualquer débito com vocês pelos anos de exploração.

Porém, aquele imigrante ultra qualificado, que possa contribuir para o desenvolvimento do continente europeu é bem vindo. Dizem: Você não é um de nós, mas será tratado como tal. É essa a mensagem da política de controle de imigração da União Européia, uma mensagem que vem sendo construída desde o início do projeto de integração política da Europa.

O pacto europeu de imigração e asilo, assinado em 2008, é recente no tempo, seu conteúdo, por outro lado, é muito antigo: estrangeiro, você algumas vezes é o inimigo e outras um mal necessário.





REFERÊNCIAS

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BADIOU, Alain. Lê Siécle, Editions du Seuil, Paris, 2005.

BATISTA, Vanessa Oliveira. União Européia: livre circulação de pessoas e direito de asilo. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

MAIOR, A. Souto. História Geral. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1996.

MARTINS, Ana Maria Guerra. Direito Constitucional da União Européia. Coimbra: Aldemina, 2004.

VIAL, Renê. Política Comunitária de Imigração: A situação jurídica dos trabalhadores extracomunitários no espaço de liberdade, segurança e justiça da União Européia. Belo Horizonte, 2006.

WILLIAMS, Raymond. “Palavras-chave (um vocabulário de cultura e sociedade)”, Boitempo editorial, São Paulo, 2007.

ZIZEK, Slavoj. “Plaidoyer em faveur de l’intolerance”, Éditions Climats, Castelnau-le-lez, 2004.

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ORGANIZAÇÃO para a cooperação econômica européia. Disponível em Wikipedia.http://pt.wikipedia.org/wiki/Organiza%C3%A7%C3%A3o_para_a_Coopera%C3%A7%C3%A3o_Econ%C3%B3mica_Europeia. Acesso em: 16 de dezembro de 2008.

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