sábado, 23 de outubro de 2010

84- Teoria do Estado - Técnicas militares na campanha eleitoral.

Cinco Ondas da campanha contra Dilma Rousseff
publicada quarta-feira, 20/10/2010 às 16:48 e atualizada quarta-feira, 20/10/2010 às 19:36

As ondas de uma campanha feita nas sombras
por Rodrigo Vianna

O jornalista Tony Chastinet é um especialista em desvendar ações criminosas. Sejam elas cometidas por traficantes, assaltantes de banco, bandidos de farda ou gangues do colarinho branco. Foi o Tony que ajudou a mostrar os caminhos da calúnia contra Dilma, como você pode ler aqui.

O Tony é também um estudioso de inteligência e contra-inteligência militar. E ele detectou, na atual campanha eleitoral, o uso de técnicas típicas de estrategistas militares: desde setembro, temos visto ações massivas com o objetivo de disseminar “falsa informação”, “desinformação” e criar “decepção” e “dúvida” em relação a Dilma. São conceitos típicos dessa área militar, mas usados também em batalhas políticas ou corporativas – como podemos ler, por exemplo, nesse site.

Na atual campanha, nada disso é feito às claras, até porque tiraria parte do impacto. Mas é feito às sombras, com a utilização de uma rede sofisticada, bem-treinada, instruída. Detectamos nessa campanha, desde a reta final do primeiro turno, 4 ondas de contra informação muito claras.

1) Primeira Onda – emails e ações eletrônicas: mensagens disseminadas por email ou pelas redes sociais, com informações sobre a “Dilma abortista”, “Dilma terrorista”, “Dilma contra Jesus”; foi essa técnica, associada aos sermões de padres e pastores, que garantiu o segundo turno.

2) Segunda Onda – panfletos: foi a fase iniciada na reta final do primeiro turno e retomada com toda força no segundo turno; aqueles “boatos” disformes que chegavam pela internet, agora ganham forma; o povão acredita mais naquilo que está impresso, no papel; é informação concreta, é “verdade” a reforçar os “boatos” de antes;

3) Terceira Onda – telemarketing: um passo a mais para dar crédito aos boatos; reparem, agora a informação chega por uma voz de verdade, é alguém de carne e osso contando pro cidadão aquilo tudo que ele já tinha “ouvido falar”.

4) Quarta Onda – pichações e faixas nas ruas: a boataria deixa de frequentar espaços privados e cai na rua; “Cristãos não querem Dilma e PT”; “Dilma é contra Igreja”; mais um reforço na estratégia. Faixas desse tipo apareceram ontem em São Paulo, como eu contei aqui.

O PT fica, o tempo todo, correndo atrás do prejuízo. Reparem que agora o partido tenta desarmar a onda do telemarketing. Quando conseguir, a onda provavelmente já terá mudado para as pichações.

Há também a hipótese de todas as ondas voltarem, ao mesmo tempo, com toda força, na última semana de campanha. Tudo isso não é por acaso. Há uma estratégia, como nas ações militares.

O que preocupa é que, assim como nas guerras, os que tentam derrotar Dilma parecem não enxergar meio termo: é a vitória completa, ou nada. É tudo ou nada – pouco importando os “danos colaterais” dessas ações para nossa Democracia.

Reparem que essas ondas todas não foram capazes de destruir a candidatura de Dilma. Ao contrário, a petista parece ter recuperado força na última semana. Mas as dúvidas sobre Dilma ainda estão no ar.

Minha mulher fez uma “quali” curiosa nos últimos dias. Saiu perguntando pro taxista, pro funcionário da oficina mecânica, pro vigia da rua de baixo, pra moça da farmácia: em quem vocês vão votar? Nessa eleição, pessoas humildes- quando são indagadas por alguém de classe média sobre o assunto - parecem se intimidar. Uns disseram, bem baixinho: “voto na Dilma”, outros disseram “não sei ainda”. Quando minha mulher disse que ia votar na Dilma, aí as pesoas se abriram, declararam voto. Mas ainda com algum medo de serem ouvidos por outros que chamam Dilma de “terrorista”, “vagabunda”, “matadora de criancinhas”.

O que concluo: as técnicas de contra-inteligência de Serra conseguiram deixar parte do eleitorado de Dilma na defensiva. As pessoas – em São Paulo, sobretudo -têm certo medo de dizer que vão votar em Dilma.

Esse eleitorado pode ser sensível a escândalos de última hora. Não falo de Erenice, Receita Federal, Amaury – nada disso.

Tony teme que as o desdobramento final da campanha (ou seja a “Quinta Onda”) inclua técnicas conhecidas nessa área estratégico-militar: criar fatos concretos que façam as pessoas acreditarem nos boatos espalhados antes.

Do que estamos falando? Imaginem uma Igreja queimando no Nordeste, e panfletos de petistas espalhados pela Igreja. Imaginem um carro de uma emissora de TV ou editora quebrado por “raivosos petistas”.

Paranóia?

Não. Lembrem como agiam as forças obscuras que tentaram conter a redemocratização no Brasil no fim dos anos 70. Promoveram atentados, para jogar a culpa na esquerda, e mostrar que democracia não era possível porque os “terroristas” da esquerda estavam em ação. Às vezes, sai errado, como no RioCentro.

Por isso, vejo com extrema preocupação o que ocoreu hoje no Rio: militantes do PT e PSDB se enfrentaram numa passeta de Serra. É tudo que o que os tucanos querem na reta final: a estratégia, a lógica, leva a isso. Eles precisam de imagens espataculares de “violência”, da “Dilma perigosa”, do “PT agitador” – para coroar a campanha iniciada em agosto/setembro.

Espero que o Tony esteja errado, e que a Quinta Onda não venha. Se vier, vai estourar semana que vem: quando não haverá tempo para investigar, nem para saber de onde vieram os ataques.

Tudo isso faz ainda mais sentido depois de ler o que foi publicado aqui , pelo ”Correio do Brasil”: uma Fundação dos EUA mostra que agentes da CIA e brasileiros cooptados pela CIA estariam atuando no Brasil – exatamente como no pré-64.

Como já disse um leitor: FHC queria fazer do Brasil um México do sul (dependente dos EUA), Serra talvez queira nos transformar em Honduras (com instituições em frangalhos).

Os indícios estão todo aí. Essa não é uma campanha só “política”. Muito mais está em jogo. Técnicas de inteligência militares estão sendo usadas. Bobagem imaginar que não sejam aprofundadas nos dez dias que sobram de campanha.

Por isso, o desespero do PSDB com as pesquisas. Ele precisa chegar à ultima semana com diferença pequena. Se abrir muito, até a elite vai desconfiar das atitudes das sombras, vai parecer apelação demais.

Por último, uma pergunta: por que o “JN” adiou o Ibope – que deveria ter sido divulgado ontem? Porque Serra estava na bancada do jornal.

A Globo não quis constranger Serra com uma pesquisa ruim? Imaginem as pressões sobre Montenegro, de ontem pra hoje? O PSDB precisa segurar a diferença em 8 pontos no máximo.Para que a estratégina de ataque final, na última semana, tenha chance de surtir efeitos.

Estejamos preparados pra tudo. E evitemos entregar à turma das sombras o que ela quer: agressões contra Serra, contra Igrejas, contra carros de reportagem.

O Brasil precisa respirar fundo e passar por esse túnel de sombras em que acampanha de Serra nos lançou.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

83- Técnicas fascistas para a conquista do poder - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

O uso do fascismo no processo eleitoral.
José Luiz Quadros de Magalhães


O primeiro grande problema que vivemos de forma acentuada neste segundo turno é gerado pelo sistema de governo adotado pela Constituição Federal. A competição de pessoas para se chegar ao poder em uma democracia concorrencial representativa para um poder unipessoal é uma ficção ideológica. É absolutamente impossível e logo indesejável que uma pessoa governe sozinha uma cidade, quanto mais um país. O processo político democrático em uma democracia de pluralismo partidário deve ocorrer em torno de idéias, projetos, programas e equipes capazes de implementar as políticas amplamente discutidas pela população em uma democracia dialógica e participativa que sustente e influencie os debates e as decisões tomadas no parlamento e no governo.
É absolutamente ridículo o debate político ocorrer em torno de uma pessoa, sua história de vida e sua bondade ou maldade. Conceitos morais simplificados que servem muito bem a manipulação da opinião pública levam a polarização da população que tenderá a se dividir em uma relação amigo-inimigo, primeiro passo para o ódio e suas nefastas conseqüências sociais. Neste sentido, graças aos grandes órgãos de imprensa, especialmente a revista Veja; a Globo e a Folha de São Paulo, o primeiro passo de extremo perigo em direção ao fascismo foi dado.
Pessoas, vítimas da polarização, reagem como esperado pelo projeto fascista: a agressão ao outro, ao considerado inimigo. Uma classe média raivosa esbraveja sua irracionalidade na internet, nos bares e (incrível) nas igrejas. A generalização com fundamento moral superficial. O processo nós X eles foi posto em marcha. Pessoas que não se conhecem se agridem e se odeiam pois são colocadas em lados diferentes. Como estudou o filósofo e psicanalista francês Alain Badiou, a divisão da sociedade entre nós e eles é o primeiro passo para o genocídio.
O segundo passo vem então com maior facilidade: como afirma o pesquisador francês Jacques Sémelin (Purificar e destruir, Editora Difel, Rio de Janeiro, 2009), este “outro” inferior é estigmatizado; rebaixado e anulado. Na Alemanha nazista isto precedeu ao assassinato de fato. Primeiro o outro é animalizado em uma operação do espírito. Assim ouvimos expressões como “petralhas”; “terrorista”; “operário sujo” e muitas outras. Está desperto dentro de muitos brasileiros brancos de classe média e alta sua herança conservadora, escravista, racista e preconceituosa. O contato com a realidade começa a desaparecer. Os discursos são recheados de agressões, o sangue circula mais rápido e o ouvido se fecha.
O terceiro passo também foi dado pela grande mídia com o apoio do candidato e seu grupo de sustentação. A aproximação da política com a religião, e o que é pior, a transformação da política em um espaço religioso. Esta formula esteve presente na Alemanha nazista e na Itália fascista e foi utilizada em outros processos eleitorais pela América, inclusive na eleição de W. Bush. O processo que aqui descrevo e que assistimos atônitos no segundo turno da eleição é estudado por diversos teóricos e pode ser melhor compreendido no livro acima citado. Outro autor muito instrutivo para a compreensão da política fascista é o constitucionalista Carl Schmitt, o jurista do nazismo.
Importante compreender este passo no atual momento da propaganda de José Serra. O problema da confusão entre religião e política é o fato de que a política deveria ser um espaço de discussão racional enquanto a religião é um espaço de fé. Quando as pessoas torcem para um partido político, um candidato à presidente como se fosse um clube de futebol alguma coisa anda muito errado. O pior é quando argumentos de pureza, religiosos, morais, começam a ser utilizados.
Qual o problema com os argumentos de pureza? O problema é que esta pureza é irreal, ela é idealizada. A pureza é realmente inexistente, mas assumida por um grupo como uma pretensão realizada. Assim foi a pureza racial para os nazistas (argumento insustentável do ponto de vista concreto), assim foi a pureza política stalinista, assim será qualquer argumento de pureza. O problema de acreditar que alguns são puros (Serra é do bem, Serra é absolutamente honesto) é que os considerados não puros são animalizados, inferiorizados, estigmatizados, eliminados. O discurso da pureza, a crença de que alguns são puros e outros impuros, a não compreensão (a incompreensão) das pessoas como seres processuais em permanente processo de transformação e que aprendem principalmente com seus erros, será um passo para o extermínio do outro. Este discurso é extremamente perigoso, seja qual for o espaço em que ele seja realizado, especialmente nas Igrejas. A crença na pureza absoluta, a repressão extrema do ser real (impuro, incompleto e complexo em cada um de nós) gera distorções absurdas e afasta ainda mais as pessoas dos seus laços com o real, jogando cada pessoa e o grupo social em uma relação paranóica distante dos fatos e cada vez mais mergulhado no imaginário.
A vivência em um espaço imaginário visto como realidade é reforçada pela experimentação desta paranóia de forma coletiva.
Este processo aumenta o narcisismo. A distinção em relação ao outro é motivo de satisfação, o que reafirma a negação do outro como igual, como portador de argumento que mereça ser ouvido.
O quarto passo também já foi dado por Serra e a grande mídia: o problema da segurança e a destruição do inimigo. O medo antecede o ódio e os discursos se encarregam de estruturar esta transformação do medo em ódio.
Agora é necessário um fato para os próximos passos. Uma situação trágica que faça surgir o desejo de vingança. Não vamos permitir que este passo seja dado. Para se chegar ao poder o candidato José Serra e a grande mídia (Veja; Globo; Folha de São Paulo) estão dando passos muito perigosos para todos nós. Talvez eles não desejem seguir adiante mas precisamos ficar atentos e agir.
Para não sermos inocentemente envolvidos por um poder que representam interesses que não são os nossos precisamos desconfiar, estudar, avaliar, e principalmente pensar sem preconceitos e sem ódio. O fascismo e o nazismo, onde se manifestou, envolveu milhões de pessoas, que inocentemente acreditaram que estavam defendendo seus interesses, que estavam construindo um país melhor, e quando descobriram que eram objeto de manobra ideológica sofisticada, já era tarde demais.
Escrevo isto como um teórico do estado, extremamente assustado com o que alguns são capazes de fazer para chegar ao poder. Assustado como jovens de classe média se deixam contaminar pela raiva e o preconceito. O premio do poder é muito grande. Um país que em breve será a quarta economia do mundo e que tem muita riqueza natural e grande parte da água do planeta. Escrevo para todas as pessoas, todas as pessoas de boa fé, que acreditam na democracia, de qualquer partido político e de qualquer crença religiosa. Por favor, pensem no que está escrito e não permitam que dividam o nosso país. Não permitam o ódio.
Sinceramente, acredito que não terei que escrever sobre os outros passos, pois nós os impediremos. A democracia permanecerá e avançará.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

82- Teoria da Constituição 25

PARECER 2

Interessados: moradores da Rua Desengano, Vila Acaba Mundo, Belo Horizonte.
Processo: Ação Rescisória em curso no Tribunal de Alçada de Minas Gerais, da sentença transitada em julgado na Ação Reivindicatória, Processo n. 0024.02.820.603-5, 20ª Vara cível da comarca de Belo Horizonte.
Assunto: Interpretação conforme a Constituição Federal do art. 82 do CPC.
Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães


DOS FATOS

Em 27 de setembro de 2004, diversos moradores da Rua Desengano, Vila Acaba Mundo, em Belo Horizonte, ingressaram com uma Ação Rescisória no Tribunal de Alçada de Minas Gerais, visando rescindir a sentença transitada em julgado na Ação Reivindicatória, processo n. 0024.02.820.603-5, da 20ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte.
Os principais argumentos dos autores da Ação Rescisória, que ingressaram em juízo como terceiros prejudicados, conforme previsto no art. 485 do CPC, foram:

a) ausência de citação do Ministério Público;
b) inexistência de pedido certo ou determinado;
c) falta de citação dos cônjuges dos réus na sentença rescindenda.

Na verdade, a área, objeto do litígio é um espaço urbano que se tornou extremamente valorizado dada a proximidade da Praça JK, entre os bairros Mangabeiras e Belvedere, em Belo Horizonte. As famílias de baixa renda moram em barracos precariamente construídos e não têm abastecimento de água tratada, energia elétrica, nem mesmo logradouro de acesso que lhes permita possuir um endereço reconhecido. A parte mais antiga da Vila Acaba Mundo já foi urbanizada pela Prefeitura de BH em parceria com as mineradoras que atuam na área - Magnesita e Lagoa Seca -, apesar de não ter havido a regularização fundiária. A Urbel tem feito reuniões com a população local com esse objetivo.
É importante ressaltar que a área, hoje ocupada pelas famílias da Rua Desengano, não estava cercada, conforme determina o Código de Postura municipal. Assim, mesmo tendo algumas faixas de risco, foi sendo ocupada pelos “Sem Teto” sem que os “ditos proprietários” ou o Poder Público tomassem qualquer medida para evitar a ocupação irregular.
O juiz relator concedeu medida liminar suspendendo a execução da sentença que mandava desocupar os barracos de uns poucos moradores, aqueles contra os quais transitou a sentença em 1ª instância. Um fato relevante é que esses moradores contra os quais foi julgada procedente a ação reivindicatória não tiveram em nenhum momento a representação por advogado (art. 133 da CF), apenas a negativa geral por parte do defensor público, nomeado como curador à lide.
Aberta vista ao Ministério Público, o procurador Luiz Antônio de S.P. Ricardo, transcreveu diversas jurisprudências em que fica evidenciada a polêmica criada nos tribunais brasileiros sobre a necessária participação do Ministério Público nos conflitos agrários urbanos. No entanto, quando lemos atentamente o inciso III do art. 82 do CPC, artigo que já teve mudança na redação original, vemos que ele aponta para a necessária participação do Ministério Público quando a qualidade das partes e a natureza da lide o exigirem, e não apenas em questões de posse pela terra. É obvio que os governantes têm de dar uma atenção especial hoje aos diversos conflitos existentes pela posse da terra, não apenas rural, mas também os conflitos urbanos, haja vista as freqüentes mortes como aconteceu recentemente em Goiânia.
Em 25 de fevereiro, foi juntado aos autos da Ação Rescisória petição de especificação de provas protestando-se pela produção de provas testemunhal, documental e pericial.


DO DIREITO

O art. 82 do Código de Processo Civil dispõe:
Art. 82. Compete o Ministério Público intervir:

I- nas causas em que há interesses de incapazes;
II- nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de ultima vontade;
III- nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.

O Ministério Público, na Constituição de 1988, recebeu funções de fiscalização e proteção dos direitos humanos e da democracia que projetam, esta instituição, muito além daquelas funções que exercia antes da Constituição em vigor.
O art. 127 da Constituição Federal de forma expressa dispõe que o Ministério Público é instituição permanente essencial à função jurisdicional e responsável pela defesa da ordem jurídica, ou seja, do sistema jurídico que tem como fundamento a Constituição, e deve ser lido e interpretado sempre segundo a Constituição além da proteção do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, ou, em outras palavras, da proteção aos Direitos Humanos, visto que os direitos sociais e individuais são dois dos grupos de direitos fundamentais que compõem os direitos humanos (utilizamos direitos fundamentais como sinônimos de direitos humanos na perspectiva constitucional), aos quais somamos os direitos políticos e econômicos, direitos interdependentes e indivisíveis.
A proteção dos direitos fundamentais não é faculdade mas dever, e o texto confirma ao mencionar a indisponibilidade destes direitos. O Ministério Público, diante do art. 82 do CPC lido sob a lógica do art. 127 da Constituição Federal, tem o dever de intervir para defender direitos individuais e sociais indisponíveis como o direito a uma vida digna, o direito à liberdade, o direito a moradia, o direito à inviolabilidade do domicílio, o direito à integridade física e moral; o direito ao trabalho, além de outros que se encontram direta ou indiretamente envolvidos neste caso.
Não pode o Ministério Público deixar de assumir suas importantes prerrogativas constitucionais que colocam essa instituição com status de poder, de função autônoma não subordinada a nenhum dos três poderes tradicionais.

O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO FUNÇÃO
AUTONOMA DE FISCALIZAÇÃO E DEFESA
DE DIREITOS CONSTITUCIONAIS

Um dos princípios fundamentais da democracia moderna é o da separação de poderes. A idéia da separação de poderes para evitar a concentração absoluta de poder nas mãos do soberano, comum no Estado absoluto que precede as revoluções burguesas, fundamenta-se nas teorias de John Locke e de Montesquieu. Imaginou-se um mecanismo que buscasse evitar essa concentração de poderes, em que cada uma das funções do Estado seria de responsabilidade de um órgão ou de um grupo de órgãos. Esse mecanismo será aperfeiçoado posteriormente com a criação de mecanismo de freios e contrapesos, em que esses três poderes que reúnem órgãos encarregados primordialmente de funções legislativas, administrativas e judiciárias pudessem se controlar. Esses mecanismos de controle mútuo, se construídos de maneira adequada e equilibrada, e se implementados e aplicados de forma correta e não distorcida, permitirá que os poderes sejam independentes (a palavra correta é autônomo e não independente), não existindo a supremacia de um em relação ao outro.
Com a evolução do Estado moderno, percebemos que a idéia de tripartição de poderes se tornou insuficiente para dar conta das necessidades de controle democrático do exercício do poder, sendo necessário superar a idéia de três poderes para se chegar a uma organização de órgãos autônomos reunidos em mais funções do que as três originais. Essa idéia vem se afirmando em uma prática diária de órgãos de fiscalização essenciais à democracia como os Tribunais de Contas e, principalmente, o Ministério Público. Ora, por mais esforço que os teóricos tenham feito, o encaixe desses órgãos autônomos em um dos três poderes é absolutamente artificial e, mais, inadequado.
O Ministério Público recebeu na Constituição de 1988 uma autonomia especial que lhe permite proteger, fiscalizando o respeito à lei e à Constituição, e, logo, aos direitos fundamentais da pessoa, ao patrimônio público, histórico, ao meio ambiente, aos direitos humanos, etc. Para exercer de forma adequada suas funções constitucionais, o Ministério Público não pode estar vinculado a nenhum dos poderes tradicionais, especialmente porque sua função preponderante é fiscalizar e proteger a democracia e os direitos fundamentais e não de legislar, administrar, governar, ou jurisdicizar.

Embora o constituinte de 1987-1988 não tenha dito expressamente tratar-se o Ministério Público de um quarto poder, o texto constitucional imprime força semelhante ao conceder-lhe autonomia funcional de caráter especial. Qualquer tentativa de subordinar essa função de fiscalização e defesa de direitos fundamentais típica do Ministério Público a qualquer outra função é tentativa de reduzir os mecanismos de controle democrático e, logo, inconstitucional.

DA OBRIGATORIEDADE DA INTERPRETAÇÃO
DA NORMA INFRACONSTITUCIONAL SEGUNDO
A NORMA CONSTITUCIONAL: O SISTEMA
JURÍDICO INTEGRAL E COERENTE

O Direito Constitucional tem evoluído com grande velocidade nesses anos, e com esta evolução a compreensão do significado do que é Constituição muda a partir de exigências de um mundo dinâmico e complexo. Constituição não é texto e Direito não é regra, e não pode ser assim considerado, como ocorria no passado, sob pena de se tornar obsoleto. É inimaginável a possibilidade de o parlamento acompanhar e prever todas as possíveis situações fáticas decorrentes das mudanças sociais rápidas, e muitas vezes, radicais.
Diante deste mundo surpreendente, o desafio é perceber sua complexidade, sua diversidade e sua relatividade. Diante disso uma nova consciência jurídica se afirma. A superação de um legalismo simplificador é exigência do nosso tempo. O Direito não pode ser resumido a regra, pois não há a possibilidade de previsão de regras para solucionar todos os conflitos de um mundo complexo. O Direito principiológico vinculado à história, vinculado ao caso concreto, tornou-se uma exigência democrática.
Para compreender o que foi dito, é importante lembrar que Constituição não é texto. O texto é um sistema de significantes aos quais atribuímos significados. Nesse sentido, um texto significa atribuir sentidos e atribuir sentidos significa atribuir valores, os quais mudam com a sociedade. A sociedade muda por meio das contradições e conflitos internos e externos. Logo, quando a sociedade muda, mudam-se os valores, logo, mudam os conceitos das palavras (significantes), aos quais, portanto, passamos atribuir novos significados.
Esse é o ponto que nos interessa de perto para a construção da idéia de jurisdição constitucional ampla ou, melhor, o fato de que toda a jurisdição tem de ser uma jurisdição constitucional, uma vez que não se pode ler a lei infraconstitucional contra a Constituição, o que seria uma interpretação inconstitucional.
A interpretação, a atribuição de sentido ao texto, é fato que sempre ocorre. O texto por si só não existe; ele só passa a existir quando alguém lê, e quando isso ocorre, necessariamente, quem lê e atribui sentido o faz a partir de suas compreensão dos significantes ali apresentados, jogando na compreensão do texto os valores, as pré-compreensões adquiridas do decorrer de sua vida. Podemos afirmar que é impossível não interpretar.
Pode-se imaginar a partir daí que a relatividade e as variações das compreensões são muito grandes, e isso também é fato. O que cabe ao operador do direito buscar é a segurança jurídica possível diante do universo de compreensão que se abre com essa compreensão. A segurança que se buscou no legalismo extremado, gerador de injustiças, não é de forma nenhuma a solução. A inflação normativa, com a criação de regras para tudo é uma ilusão que não gera segurança, mas gera, sim, injustiça e imobilismo autoritário.
Vivemos inseridos em sistemas de valores, em universos de compreensão que se inserem uns dentro dos outros. Quanto maior o espaço de abrangência do sistema de compreensão, menor a sintonia fina existente, menores os recursos de comunicação. O sistema jurídico constrói um universo de compreensão não uniforme, mas que oferece maior segurança se o compreendermos em sua dimensão histórica e em sua dimensão sistêmica e teleológica.
O que vem ocorrendo em termos de jurisdição constitucional ampla em nossos tribunais reforça a idéia de uma Constituição dinâmica, viva, que se reconstrói diariamente diante da complexidade das sociedades contemporâneas. Uma Constituição presente em cada momento da vida. Uma Constituição que é interpretação, e não texto. Essa compreensão nos revela uma nova dimensão da jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas mais diversas funções, dizer a Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente adequadas de todas a normas e fatos. A vida é interpretação; não há texto que não seja interpretado. A interpretação do mundo, dos fatos, das normas é inafastável.


CONCLUSÃO

1. Mencionamos, em primeiro lugar, o texto do Código de Processo Civil que menciona expressamente a previsão de intervenção do Ministério Público nas causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade das partes.
2. Os fatos que originaram o processo demonstram com clareza o interesse público e a ameaça a diversos direitos fundamentais de diversas pessoas, o que reforça o enquadramento no artigo 82 do Código de Processo Civil.
3. Demonstramos que a Constituição de 1988 criou um Ministério Público que vai muito além de suas funções históricas passadas, pois é uma instituição autônoma de fiscalização e defesa de direitos indisponíveis.
4. A defesa de direitos indisponíveis não é uma faculdade, mas uma obrigação.
5. Demonstramos, posteriormente, que a norma infraconstitucional, seja ela qual for, deve ser lida de acordo com a Constituição sempre. Toda jurisdição é constitucional; pois o ordenamento jurídico é um sistema íntegro e coerente cujo fundamento é a Constituição.
6. A integridade desse sistema e sua coerência é condição fundamental para permitir que o direito responda às mudanças rápidas e às complexidades sociais contemporâneas.

Tudo exposto, podemos perceber, com clareza, que o art. 82 do Código de Processo Civil, lido corretamente de acordo com os mandamentos constitucionais, especialmente o art. 127 e os diversos artigos que dispõem sobre os direitos sociais e individuais fundamentais, impõe como obrigatória a intervenção o Ministério Público na defesa do interesse público, claramente expresso no conflito social que gera a necessidade de proteção dos direitos fundamentais ameaçados no caso que gerou o processo mencionado.

Professor Doutor
José Luiz Quadros de Magalhães

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

79- Entrevistas - Fascismo à brasileira - com Maria Rita Kehl

A campanha eleitoral assumiu um tom fascistóide, diz Maria Rita Kehl
Celso Marcondes

15 de outubro de 2010 às 16:02h

Em entrevista a CartaCapital, a psicanalista responsabiliza Serra pelo nível do debate eleitoral, fala de aborto e corrupção.

O fim da coluna da psicanalista Maria Rita Kehl no O Estado de S.Paulo foi um dos assuntos da semana, em particular na internet. Seu artigo “Dois Pesos” foi pesado demais para os donos do diário paulista. Neste espaço, publicamos vários artigos a respeito. A repercussão enorme gerou até um abaixo-assinado que corre pela rede em sua defesa. Passado o impacto, Rita Kehl conversou com CartaCapital a respeito das eleições presidenciais, que ela acompanha de perto, com o olhar da profissional conceituada em sua área e também com a visão de cidadã e jornalista, carreira que seguiu nos tempos da ditadura. Ela se diz escandalizada com os temas que tomaram conta do debate eleitoral e responsabilizou a campanha do PSDB por isso.

CartaCapital: Teu artigo no Estadão discutia a disseminação de um grave preconceito através da rede. Essa parece ter sido uma característica do uso do veículo nestas eleições, em particular entre a chamada classe média.Você acredita que a internet, pelas suas especificidades, ajuda a este tipo de comportamento?
Maria Rita Kehl: Ajuda de fato. A internet, pela facilidade de acesso, pelas características que só ela tem, apresenta este potencial terrível de ser lugar da fofoca, de blábláblá. Mesmo quando não é um uso irresponsável, como são os casos destes tuites para dizer ”olha, eu estou aqui”, “eu existo”, “olha a foto do meu filho”, “do aniversário do fulano”. Mas tem também um potencial incrível, como a possibilidade de convocar uma passeata da manhã para a tarde, como aconteceu antes da guerra do Iraque, em vários países do mundo, e reunir milhões de pessoas. Então, eu não condenaria a internet, ela tem grande potencial, é um veiculo que dá justamente a possibilidade de você se incluir, de você escrever, pelo menos para quem é da classe média ou que tem acesso a uma lan house. Ela serve a essas duas coisas. Talvez com o tempo os leitores comecem a criar sua própria capacidade de discriminar.

CC: O preconceito que você identifica no teu artigo, este incomodo com a ascensão dos mais pobres, e por consequência com um governo mais identificado com eles, não é uma marca das nossas elites que aparece muito na rede?
MRK: Veja, a internet divulgou essas correntes preconceituosas, apócrifas, que sempre começavam assim: “uma prima minha”, “um parente meu”, “um amigo da minha empregada”, sempre assim. Mas por outro lado, o que tem de legal, é que, por exemplo, este meu artigo foi mais lido que qualquer outra coisa que eu jamais tenha escrito. Se ele tivesse ficado apenas no Estadão, ele teria sido lido, mas jamais deste jeito. Isso é uma coisa muito legal.

CC: Falemos de ética: você acha que o caso Erenice atingiu eleitoralmente esta classe média?
MRK: Eu acho que sim. Eu li um artigo dizendo que o caso Erenice foi mais decisivo para exigir o segundo turno que essa “fofocaiada” toda sobre o aborto. E, infelizmente, está certo. O governo para o qual eu voto e continuo votando tem uma leniência com a questão da corrupção, que deixa até difícil um petista defender, tenho que dizer isso. Lula naturalizou a corrupção, como sendo parte do jogo político. E aí, está bom, quando fica mais escandaloso, demite. Mas “deixa acontecer”, entendeu? Renan Calheiros, Sarney, são vergonhas que a gente tem que engolir, fica parecendo que é culpa da oposição agitar isso. Claro que ela vai agitar. Nós agitaríamos isso se aparecesse uma coisa tão escandalosa na outra campanha. A diferença aí – que é a favor da atitude do governo Lula, mas que ao mesmo tempo não o torna vítima – é que o governo Lula não consegue blindar a imprensa como o governo do PSDB consegue, porque tem a imprensa na mão. Então, quando surge alguma coisa, surge como fofoca que desaparece no dia seguinte. Como a coisa do Paulo Preto, que o Serra não respondeu no debate e ficou por isso mesmo. A gente sabe que é um governo que blinda. O Alckmin, como a candidatura dele estava bem, teve a campanha toda em céu de brigadeiro, do começo ao fim, não tinha ninguém que pudesse pegar alguma coisa e contestar. E se pegasse, não ia sair na imprensa. De fato, a grande imprensa se encarrega de censurar quaisquer denúncias sobre os governos que ela apoia. Mas mesmo que a imprensa seja parcial ao denunciar um caso como o da Erenice, o caso em si está errado, não poderia aparecer.

CC: O governo não poderia ficar surpreso com a “escandalização” feita pela grande imprensa, certo?
MRK: Claro! Ele sabe qual é o jogo e não era para ter corrupção deste jeito. Uma coisa ou outra você não controla, uma coisa pequena, mas para mim é difícil responder quando as pessoas dizem: “mas, como? Estava no nariz dela! Era uma coisa que estava a família inteira metendo a mão”. Coloca os petistas numa situação difícil.

CC: Esta eleição está sendo marcada também pela discussão de temas no campo da moral: aborto, religião. O que te parece isso?
MRK: Eu acho que isso mostra o atraso da sociedade brasileira. Porque, claro, nenhum candidato vai ser eleito se estiver em descompasso com a maioria da sociedade. O Plínio foi um exemplo ótimo, de um cara que falava tudo o que tinha na cabeça, tudo o que ele pensa de verdade, de uma forma consistente, porque ele não tinha compromisso de se eleger. O que me espanta é o atraso da sociedade brasileira. E a ignorância aí é apoiada pelo Serra de misturar questões religiosas com questões políticas. Como é que as igrejas começam a pautar a lei agora? Uma coisa é eles decidirem o que é pecado e o que não é, outra coisa é eles decidirem o que é ilegal e o que não é.

CC: E isso acabou virando pauta de campanha presidencial, não é?
MRK: Vira pauta e vira motivo de constrangimento. A campanha do PSDB tem responsabilidades sim, de acirrar esta intolerância religiosa neste momento da campanha. A Dilma respondeu duas vezes no debate da Band que neste País não tem intolerância religiosa. Fica esta irresponsabilidade feia do PSDB estar acirrando isso, mas ao mesmo tempo a sociedade mostra neste ponto como é atrasada. Aparecem comentários de que a Dilma é a favor do aborto como se ela tivesse o poder de decidir, se ela apoia o aborto, vai ter aborto. Como se isso não tivesse que passar pelo Congresso. Além de tudo joga muito com a ignorância do povo.

CC: E os candidatos chegam a “endireitar”, fazer campanha nas igrejas e citarem Deus à exaustão. Não acha que isso tem um papel deseducador, em particular para crianças e adolescentes?
MRK: Isso é o pior. Por um lado, eu acho que o problema da corrupção não é da responsabilidade do PSDB, eles vão extrair o máximo de vantagens que puderem arrancar deste caso da Casa Civil. Por outro lado, é responsabilidade sim, do PSDB e da campanha Serra o tom fascistóide que estas coisas estão adquirindo. É horrível que os candidatos tenham que aparecer ajoelhados comungando, dizendo que são a favor da vida…claro que são a favor da vida, quem é que não é?Agora, é a Igreja que não é a favor da vida. Aí é uma opinião minha. A ONG Católicas pelo Direito de Decidir me convidou para debater e elas pensam assim: a criminalização do aborto é uma questão contra a liberdade sexual da mulher, ponto.Não pode usar camisinha, porque a Igreja também é contra. Então é uma questão de dizer: sexo só dentro do casamento e só para ter filho. É isso, que não está escrito assim, mas é o que está dito. Se não pode usar preservativo, não pode evitar filho, não pode nem evitar infecções, epidemias como o HIV que mata milhões na África, que “a favor da vida” é esse?

CC: O Dafolha divulgou uma pesquisa que diz que a posição contra o aborto na sociedade aumentou depois destas semanas de discussão na campanha, veja o efeito nocivo.
MRK: Claro, porque o que circula é uma desinformação, “coitadinha da criancinha”, “eu poderia ter sido abortado” e “porque eu não fui abortado eu estou aqui”, não é neste grau. E a Marina tem responsabilidade nisso. Mesmo que a Dilma ganhe, a sociedade retrocedeu muito e isso é responsabilidade da campanha. É terrível.

77- Noticias - Fascismo à brasileira

Fascismo à brasileira

Enviado por luisnassif, qua, 13/10/2010 - 23:15
Há tempos alerto para a campanha de ódio que o pacto mídia-FHC estava plantando no jogo político brasileiro.

O momento é dos mais delicados. O país passa por profundos processos de transformação, com a entrada de milhões de pessoas no mercado de consumo e político. Pela primeira vez na história, abre-se espaço para um mercado de consumo de massa capaz de lançar o país na primeira divisão da economia mundial

Esses movimentos foram essenciais na construção de outras nações, mas sempre vieram acompanhados de tensões, conflitos, entre os que emergem buscando espaço, e os já estabelecidos impondo resistências.

Em outros países, essas tensões descambaram para guerras, como a da Secessão norte-americana, ou para movimentos totalitários, como o fascismo nos anos 20 na Europa.

Nos últimos anos, parecia que Lula completaria a travessia para o novo modelo reduzindo substancialmente os atritos. O reconhecimento do exterior ajudou a aplainar o pesado preconceito da classe média acuada. A estratégia política de juntar todas as peças – de multinacionais a pequenas empresas, do agronegócio à agricultura familiar, do mercado aos movimentos sociais – permitiu uma síntese admirável do novo país. O terrorismo midiático, levantando fantasmas com o MST, Bolívia, Venezuela, Cuba e outras bobagens, não passava de jogo de cena, no qual nem a própria mídia acreditava.

À falta de um projeto de país, esgotado o modelo no qual se escudou, FHC – seguido por seu discípulo José Serra – passou a apostar tudo na radicalização. Ajudou a referendar a idéia da república sindicalista, a espalhar rumores sobre tendências totalitárias de Lula, mesmo sabendo que tais temores eram infundados.

Em ambientes mais sérios do que nas entrevistas políticas aos jornais, o sociólogo FHC não endossava as afirmações irresponsáveis do político FHC.

Mas as sementes do ódio frutificaram. E agora explodem em sua plenitude, misturando a exploração dos preconceitos da classe média com o da religiosidade das classes mais simples de um candidato que, por muitos anos, parecia ser a encarnação do Brasil moderno e hoje representa o oportunismo mais deslavado da moderna história política brasileira.

O fascismo à brasileira

Se alguém pretende desenvolver alguma tese nova sobre a psicologia de massa do fascismo, no Brasil, aproveite. Nessas eleições, o clima que envolve algumas camadas da sociedade é o laboratório mais completo – e com acompanhamento online - de como é possível inculcar ódio, superstição e intolerância em classes sociais das mais variadas no Brasil urbano – supostamente o lado moderno da sociedade.

Dia desses, um pai relatou um caso de bullying com a filha, quando se declarou a favor de Dilma.

Em São Paulo esse clima está generalizado. Nos contatos com familiares, nesses feriados, recebi relatos de um sentimento difuso de ódio no ar como há muito tempo não se via, provavelmente nem na campanha do impeachment de Collor, talvez apenas em 1964, período em que amigos dedavam amigos e os piores sentimentos vinham à tona, da pequena cidade do interior à grande metrópole.

Agora, esse ódio não está poupando nenhum setor. É figadal, ostensivo, irracional, não se curvando a argumentos ou ponderações.

Minhas filhas menores freqüentam uma escola liberal, que estimula a tolerância em todos os níveis. Os relatos que me trazem é que qualquer opinião que não seja contra Dilma provoca o isolamento da colega. Outro pai de aluna do Vera Cruz me diz que as coleguinhas afirmam no recreio que Dilma é assassina.

Na empresa em que trabalha outra filha, toda a média gerência é furiosamente anti-Dilma. No primeiro turno, ela anunciou seu voto em Marina e foi cercada por colegas indignados. O mesmo ocorre no ambiente de trabalho de outra filha.

No domingo fui visitar uma tia na Vila Maria. O mesmo sentimento dos antidilmistas, virulento, agressivo, intimidador. Um amigo banqueiro ficou surpreso ao entrar no seu banco, na segunda, é captar as reações dos funcionários ao debate da Band.

A construção do ódio

Na base do ódio um trabalho da mídia de massa de martelar diariamente a história das duas caras, a guerrilha, o terrorismo, a ameaça de que sem Lula ela entregaria o país ao demonizado José Dirceu. Depois, o episódio da Erenice abrindo as comportas do que foi plantado.

Os desdobramentos são imprevisíveis e transcendem o processo eleitoral. A irresponsabilidade da mídia de massa e de um candidato de uma ambição sem limites conseguiu introjetar na sociedade brasileira uma intolerância que, em outros tempos, se resolvia com golpes de Estado. Agora, não, mas será um veneno violento que afetará o jogo político posterior, seja quem for o vencedor.

Que país sairá dessas eleições?, até desanima imaginar.

Mas demonstra cabalmente as dificuldades embutidas em qualquer espasmo de modernização brasileira, explica as raízes do subdesenvolvimento, a resistência história a qualquer processo de modernização. Não é a herança portuguesa. É a escassez de homens públicos de fôlego com responsabilidade institucional sobre o país. É a comprovação de porque o país sempre ficou para trás, abortou seus melhores momentos de modernização, apequenou-se nos momentos cruciais, cedendo a um vale-tudo sem projeto, uma guerra sem honra.

Seria interessante que o maior especialista da era da Internet, o espanhol Manuel Castells, em uma próxima vinda ao Brasil, convidado por seu amigo Fernando Henrique Cardoso, possa escapar da programação do Instituto FHC para entender um pouco melhor a irresponsabilidade, o egocentrismo absurdo que levou um ex-presidente a abrir mão da biografia por um último espasmo de poder. Sem se importar com o preço que o país poderia pagar.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

76- Teoria da Constituição 24 - parecer viaduto Silva Lobo

6 CASOS BRASILEIROS: A APLICAÇÃO DO DISCUTIDO

PARECER 1

Consulentes: Moradores do Viaduto Silva Lobo
Interessados: Pastoral de Rua e Programas Pólos Reprodutores de Cidadania
Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães

PRESSUPOSTOS FÁTICOS E TEÓRICOS:
O CASO E SEU CONTEXTO

1. A questão da moradia tem sido um problema que se agrava a cada ano, acompanhando o processo crescente de exclusão social, fruto de modelo econômico neoliberal de desregulamentação de mercados, privatizações e empobrecimento do Estado, o que tem favorecido o processo, hoje global, de concentração econômica. Importante notar que, com o processo de concentração econômica e o fortalecimento das corporações, um modelo econômico que valorize o ser humano, a geração de empregos dignos e a geração de oportunidades iguais se torna mais distante. Com o fortalecimento do poder econômico privado e o enfraquecimento do Estado, o Estado Social, que apresentou no seu início uma alternativa de assistencialismo para depois significar a possibilidade de inclusão em alguns países, também entra em crise, para alguns quase irreversível, principalmente pelas armadilhas que representam as constantes renúncias fiscais e modelos tributários que, no lugar de tributar quem pode pagar, isentam o grande capital e tributam o assalariado, o pequeno e médio empreendedor, justamente os setores que mais geram empregos. Quase todos os países que adotaram esse modelo a partir da década de 1980, hoje, buscam abandoná-lo, o que, no entanto, não é fácil.

2. Este é o pano de fundo de que administradores públicos, legisladores e magistrados não podem se esquecer quando constroem normas, que devem ser justas e só podem ser se partirem do caso concreto, levando em consideração, obviamente, o contexto histórico e socioeconômico em que ocorrem os fatos e compreendendo o Direito como um sistema de princípios e regras integral, portanto coerente. Não é possível construir uma solução justa sem compreender o contexto e sem manter a unidade e a coerência do sistema jurídico. Não pode o intérprete, bem como todos que seguem a ordem jurídica, achar que o Direito é mera receita de bolo na qual se aplica a lei esquecendo-se todo o seu entorno, seja jurídico seja histórico, bem como de sua finalidade e coerência. E, quando menciono que todos os acima citados constroem normas, quero dizer que a norma surge da interpretação, e a interpretação é inevitável, pois quando lemos a norma para aplicá-la ao caso concreto, inevitavelmente, a interpretamos. Essa idéia da hermenêutica pós-positivista é fundamental para a correta idéia de jurisdição constitucional e será o fundamento teórico da única solução justa que o caso comporta. Vamos, portanto, ao caso concreto.

3. Sob o viaduto Silva Lobo, em área de domínio público (Belo Horizonte), moram catadores de papel, lavadeiras, faxineiras, carroceiros, desempregados, seres humanos que exerceram durante sua vida de exclusão atividades as mais variadas, alguns deles há mais de quatorze anos. Para essas pessoas, foram negados quase todos os direitos fundamentais previstos na Constituição, como trabalho, saúde, educação, moradia, justa remuneração, pressupostos básicos para o exercício das liberdades públicas e individuais, uma vez que não há liberdade concreta sem meios para seu exercício, e os meios de exercício das liberdades são os direitos sociais e econômicos.

4. Essas pessoas, como muitas outras em nosso país, nos grandes centros urbanos, além de vitimas da exclusão, foram vítimas das violências do Poder Público, muitas delas em nome do interesse público. Inexplicavelmente, perante a lógica constitucional, essas pessoas as quais tudo foi negado ainda recebem a intolerância de quem diz agir em nome do Direito. De outro lado, muitas vezes receberam também políticas assistencialistas ineficazes, humilhação final, principalmente quando para recebê-las são obrigados a fazer o que não querem. Nesse momento, a última liberdade que lhes resta é arrancada: a liberdade de escolher se querem ou não continuar na rua.

5. Uma política pública para a população de rua que leve em consideração os direitos constitucionais não pode ser resumir ao assistencialismo, e isso implica a necessidade de dar voz a essas pessoas. Elas precisam mais do que voz, precisam ser parte na construção da solução do seu problema. De nada adianta removê-las do local onde se encontram e onde construíram seu referencial de vida, onde seus filhos freqüentam a escola e onde conseguem algum sustento para o alimento, oferecendo um terreno longe ou oferecendo-lhes dinheiro para o aluguel. Trata-se de simplificação que retira dessas pessoas o seu último direito, destruindo de vez sua dignidade que ainda pode sobreviver nas últimas escolhas que conservaram.

6. Os moradores do viaduto Silva Lobo, juntamente com organizações da sociedade civil, buscaram a solução para o seu problema. Trata-se de uma solução pública, encontrada de forma dialógica e, portanto, democrática. Com base em projeto concebido com a participação dos moradores, da Escola de Arquitetura da UFMG, do programa Pólos Reprodutores de Cidadania e da Pastoral de Rua, apresentaram proposta para ordenação daquele espaço urbano com a construção de habitações, uma cozinha coletiva e espaço para cuidar de animais.

7. O Município, representado pelo Secretário da Coordenação de Política Urbana e Ambiental, Murilo Valadares, inicialmente aceitou a idéia, segundo depoimento dos consulentes, prometendo, ainda, a doação de material para a edificação. Entretanto, como a doação não ocorreu a Pastoral de Rua, providenciou algum material de construção, iniciando-se a obra descrita no item anterior.

8. Agora, sem nenhuma explicação, o Município ameaçou destruir as construções iniciadas no local, sob o viaduto, sendo que recentemente ocorreu uma visita de agentes da Prefeitura e da Polícia Militar para a destruição da moradia dessas pessoas. Segundo a Constituição, esse espaço é o asilo inviolável dessas pessoas, sendo, portanto, essa ação da Prefeitura e da Polícia flagrantemente contrária ao ordenamento jurídico e, conseqüentemente, contra lei e a Constituição.

9. Depois de novas negociações, os representantes do povo do Município no Poder Executivo se mostraram dispostos a conversar, desde que recebessem formalmente o projeto arquitetônico e apresentassem uma avaliação jurídica bem fundamentada, para que então possam construir sem violar a Constituição e as leis, ou seja, o sistema normativo vigente.

10. Importante verificar que no local, entre os moradores do viaduto Silva Lobo, não há casos de violência ou qualquer outro tipo de crimes, bem como de consumo ou tráfico de drogas ou de pequenos furtos.

11. Finalmente, é necessário acrescentar que há na moradia sob o viaduto água ligada pela Copasa e os Correios forneceram o número do CEP.

SOLUÇÃO JURÍDICA
CONSTITUCIONALMENTE POSSÍVEL

1. O segundo passo para solucionar o caso, descritos os fatos e assentadas as bases teóricas e o pano de fundo histórico, é o de verificar quais princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais regulam a situação e deverão ser observados quando da construção da norma de conduta justa para o caso.

2. No plano constitucional, encontramos vários princípios que regulam o caso e são, obviamente, de observância obrigatória. É importante lembrar que, hoje, nenhum doutrinador sério, no Brasil e no mundo, nega o caráter normativo dos princípios e sua supremacia perante as regras constitucionais e infraconstitucionais, e isso se reflete na jurisprudência dos tribunais.

3. Os princípios constitucionais de observância obrigatória e que regulam o caso são os seguintes:

a) dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III);
b) construção de uma sociedade livre, justa e solidária como objetivo da República e, portanto, de todos os poderes públicos (art. 3º, I);
c) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III) (art. 170, VII);
d) promover o bem de todos sem qualquer preconceito ou discriminação (art. 3º, IV);
e) proibição de tratamento desumano e degradante (art. 5º, III);
f) inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI);
g) inviolabilidade da intimidade, honra e imagem das pessoas (art. 5º, X);
h) a função social de toda e qualquer forma de propriedade (art. 5º, XXIII), (art. 170, III);
i) o amparo às crianças e adolescentes carentes e a promoção da integração ao mercado de trabalho (art. 203, II e III);
j) política urbana que ordene o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garanta o bem-estar de seus habitantes (art. 182).

4. As regras constitucionais que regulam o caso são as seguintes:

a) A Constituição Federal estabelece a competência administrativa comum da União dos Estados e dos Municípios para zelar pela guarda e observância da Lei Maior;
b) combater a pobreza e os fatores de marginalização promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;
c) promover programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, I, IX e X).

5. É fundamental lembrar que a ordem jurídica não pode ser parcialmente observada, tampouco pode o intérprete escolher os princípios ou regras que mais lhe agradem, abandonando outros que não se ajustem ao seu desejo.

6. Importante lembrar também que a diferença entre regra e prin¬cípio, segundo a doutrina atual, está centrada em dois aspectos principais:

a) a regra tem um enunciado mais detalhado e específico para uma situação, enquanto o princípio tem um enunciado genérico;
b) a regra, portanto, se aplica a uma situação específica, enquanto o princípio tende a ser aplicado a todas as situações, pois seu grau de abrangência no ordenamento jurídico é bem maior (ex: princípio da igualdade, liberdade, soberania, dignidade devem, entre outros, ser permanentemente observados);
c) em caso de conflitos de regras, uma anula a outra (a lei no tempo e espaço, a hierarquia das leis); já no caso de conflito entre princípios a solução só é encontrada no caso concreto, não havendo revogação de um pelo outro, mas o afastamento do princípio, que, se aplicado, comprometerá a integridade e, portanto, a coerência do sistema. O afastamento desse princípio não implica sua revogação; ele continua válido e aplicável a todas as outras situações;
d) no caso de conflito entre regras e princípios, esses se sobrepõem às regras sem, necessariamente implicar na revogação destas.

7. Isso posto, temos que o caso em análise, ao ser solucionado, tem que levar em consideração a obrigatória observância de todos os princípios constitucionais, mesmo que isso implique o afastamento ou a não-aplicação de uma regra que, diante do caso, se fosse aplicada, poderia contrariar um ou mais princípios.

8. Postas as bases constitucionais e hermenêuticas, devemos trazer essas reflexões para a realidade do caso antes de analisarmos finalmente a legislação infraconstitucional.

9. Temos, portanto, que as pessoas que hoje habitam sob o viaduto Silva Lobo são amparadas pela Constituição e têm direitos perante o Estado, seja em nível federal, estadual e municipal, e por terem negados direitos básicos e fundamentais recebem atenção especial da Constituição no sentido de criação de políticas públicas includentes.

10. Essas políticas, quando elaboradas, devem respeitar as regras e princípios constitucionais e infraconstitucionais simultaneamente. Levando em consideração os princípios e regras acima enumerados, podemos concluir, por exemplo, que a única hipótese de retirar essas pessoas do local é oferecendo-lhe outro local para moradia onde possam conseguir sustento igual ou melhor, onde as crianças possam freqüentar escola igual ou melhor e desde que a solução seja uma solução dialógica em que seja respeitada a vontade, a opinião e, logo, a dignidade das pessoas envolvidas. Políticas meramente assistencialistas que tratam as pessoas como objetos sem vontade não tem amparo nos fundamentos do Estado Democrático de Direito que a Constituição cria.

11. Podemos concluir, parcialmente, que se houvesse regra infraconstitucional que autorizasse a retirada imediata dessas pessoas do local, essa regra deveria ter sua aplicação afastada, só podendo ser observada quando satisfeitas as exigências dos princípios constitucionais obrigatórios acima citados. A solução justa expressa na norma de conduta da Prefeitura deverá ser construída observando a integridade do sistema jurídico constitucional e a sua coerência.

12. Passando à análise da legislação infraconstitucional, devemos encontrar a resposta para uma última pergunta final, já claramente respondida no parecer da Dra. Liana Portilho Mattos: o Município pode permitir o levantamento de construções no local?

13. Para responder a essa questão, é necessária a análise da legislação infraconstitucional, que deve ser interpretada observando-se os princípios e regras que integram o sistema jurídico constitucional em um sistema coerente e com finalidade clara.

14. Como já analisado pela Dra. Liana Portilho, e por esse motivo não vou repetir, a questão deve começar a ser respondida pelo Estatuto da Cidade, presente na Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. O Estatuto, nos seus objetivos e finalidades, já facilita a fundamentação da resposta positiva da pergunta quando oferece ao Município instrumentos para a implementação de políticas urbanas que levem em conta os princípios nele contidos e que consagram o direito à cidade, ao desenvolvimento sustentável, à gestão democrática da cidade, à justa distribuição dos benefícios e do ônus decorrentes da urbanização e a garantia da posse de milhares de indivíduos cujo acesso ao solo urbano e à moradia é obtido informalmente, num habitat autoconstruído, vulnerável, precário e inseguro.(cito o parecer da Dra Liana Portilho).

15. A Medida Provisória n. 2.220 de 4 de setembro de 2001, oferece a garantia da posse de imóvel público para aquelas pessoas que até 30 de junho de 2001 possuiu como seu, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, até 250 metros quadrados de imóvel público situado em área urbana para moradia, desde que não seja proprietário ou concessionário de outro imóvel urbano ou rural. Importante notar que a medida provisória não faz nenhuma distinção quanto ao tipo de imóvel, o que é óbvio diante do objetivo da norma e da realidade da moradia nos grandes centros urbanos.

16. O art. 5º da referida Medida Provisória reforça o que dito quando faculta ao Poder Público assegurar o exercício do direito a concessão de uso especial para fins de moradia quando se tratar de ocupação de imóvel de uso comum do povo. Esse dispositivo confirma a possibilidade de aplicação dos arts. 1º e 2º da Medida Provisória n. 2.220/2001, ao caso que estudamos. Por outro lado, autoriza a negociação de outro local nesse caso. Para essa situação aplica-se o que foi estudado neste parecer no que diz respeito à integridade e à coerência do sistema de princípios do nosso sistema jurídico constitucional, ou seja, o Município só poderá retirar essas pessoas respeitados os princípios constitucionais conforme mencionamos no item 11 desse parecer, acrescentando que não há nenhum motivo para a agressão da destruição da moradia em processo de construção, uma vez que não há criminalidade no local, não há drogas, não há, enfim, nenhum prejuízo ou comprometimento de nenhum direito dos cidadãos da cidade de Belo Horizonte que fundamente a retirada daquelas pessoas. Aliás, são fartas as motivações de sua permanência.


CONCLUSÃO

Diante de toda a argumentação aqui desenvolvida, posso concluir com tranqüilidade que:

a) os moradores do Viaduto Silva Lobo não podem ser simplesmente retirados de seu domicílio inviolável (sua moradia) por ser ato atentatório a diversas normas constitucionais;
b) na hipótese de aplicação do art. 3º da Medida Provisória n. 2.220/2001, só poderão ser retirados com a concordância de todos os moradores e desde que oferecida condição de renda e sobrevivência, educação e moradia igual ou superior;
c) é possível, diante da Constituição, do Estatuto da Cidade e da Medida Provisória 2.220/2001, o Município autorizar a construção e a habitação do local sob o Viaduto Silva Lobo. Aliás, não é só possível, mas é a única conduta constitucional e legal a ser adotada neste momento;
d) finalmente, não reconhecendo o Município o direito ao título de concessão de uso especial aos moradores, esse direito poderá ser reconhecido pelo Poder Judiciário, com a responsabilização do Município em caso de ação administrativa precipitada e inconstitucional.

Belo Horizonte, 15 de abril de 2002.

JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES
Professor Doutor em Direito Constitucional
UFMG - PUC-MG

75- Teoria da Constituição 23

HERMENÊUTICA
CONSTITUCIONAL


Jose Luiz Quadros de Magalhães


5 A QUESTÃO DO CONFLITO DE PRINCÍPIOS

A construção da norma justa aplicável ao caso concreto necessita enfrentar, diante das complexidades da vida social, o conflito de princípios, que ocorre, não a priori, no texto, mas sempre diante do caso concreto. Para compreendermos o problema posto é necessário, primeiramente, identificar as diferenças entre regras e princípios. Alguns autores ressaltam o enunciado de uma e de outra norma. Enquanto a regra é extraída de um enunciado detalhado, minucioso por vezes, contendo mais palavras que buscam explicitar, explicar a situação que a norma regula, o princípio decorre de enunciados mais simples, genéricos, abertos, muitas vezes contendo uma palavra. Essa diferenciação procede, entretanto não se esgota aí, o que seria demasiado simplificador e, portanto, não poderia esclarecer todos os aspectos que envolvem a importante diferenciação.
Podemos dizer que de um enunciado (texto) podemos extrair um princípio ou uma rega, um principio e uma regra, e de uma serie de regras podemos deduzir princípios, não expressos, mas deduzidos com clareza do texto.
Podemos falar ainda que da leitura sistêmica do texto podemos extrair modelos, como o modelo econômico originariamente previsto na Constituição Federal de 1988, que privilegiava (e de certa forma ainda privilegia) as formas de ganho com trabalho como o salário, os vencimentos, os proventos de aposentadoria, o lucro, desde que decorrente da livre iniciativa e livre competição e que limita e condiciona as formas de ganho sem trabalho como a renda (função social da propriedade rural e urbana), os juros (os 12% ao ano que estava previsto no art. 192 § 3º e foi suprimido pela emenda 40) e o lucro com o controle de mercados e abuso de poder econômico como previsto no artigo 173. Já cuidamos dessa questão no tomo I do nosso Direito Constitucional e, portanto, retomamos a discussão que nos interessa no momento.
A principal diferença entre princípios e regras reside, entretanto, no grau de abrangência de um e de outro. A regra é uma norma que regula uma situação específica enquanto o princípio é uma norma que regula diversas situações, sendo que alguns princípios fundamentais tendem a ser aplicados a todas as situações ou, pelo menos, ao maior número de situações possíveis, uma vez que é impossível fazer qualquer afirmativa definitiva em relação à complexidade da vida social. Não vamos aqui adotar a diferenciação proposta por Rober Alexy no sentido de que, enquanto a regra se aplica ou não, os princípios podem ser aplicados em parte ou no todo. Ficamos com a idéia de que, assim como as regras, os princípios se aplicam ou não, residindo sua principal diferença no grau de abrangência muito superior do principio em relação as regras que regulam de forma específica situações específicas.



Dessa forma, toda vez que aplicamos uma regra a um caso concreto, não podemos nos esquecer de que devemos aplicar aquela regra de forma coerente com o sistema constitucional, pois devem ser aplicados simultaneamente à regra ou regras que regulam o caso todos os princípios constitucionais que compõem coerentemente o sistema constitucional. Assim, quando aplicamos uma regra do Código Penal ou do Código Civil, ou qualquer outra norma, o que fazemos não é mera aplicação do texto ao caso, mas, sim, uma construção, pois buscamos primeiramente as regras e princípios constitucionais e infraconstitucionais que regulam o caso, e a partir daí temos de construir uma norma específica para o caso a partir das normas gerais e abstratas dos textos legais constitucional e infraconstitucional. Logo, o trabalho do intérprete é de busca no ordenamento jurídico, a partir do caso concreto, das normas que o regulam; construção de uma norma específica para o caso a partir exclusivamente das normas gerais e abstratas e posterior aplicação conforme a situação.
É justamente a partir dessa compreensão que afirmamos sempre que toda jurisdição será necessariamente uma jurisdição constitucional, uma vez que não se pode aplicar as regras infraconstitucionais ignorando as regras e princípios constitucionais, e mesmo os modelos por acaso existentes.
Logo uma solução de um conflito pelo Judiciário que meramente transcreva norma escrita, mal interpretada porque descontextualizada, ignorando o sistema constitucional, suas regras e princípios, é uma interpretação e aplicação inconstitucional, logo injusta.
Alguns casos podem ilustrar a prática legalista, reducionista, do direito a regras, e como essa prática gera injustiça, pois não permite a adequação coerente do sistema jurídico ao caso.17
Certo dia, chegando a um delicioso hotel em Sete Lagoas, Minas Gerais, uma antiga fazenda mineira, no balcão onde fazia o ritual de entrada havia um aviso pendurado na parede escrito o seguinte: “Proibido entrar com animais domesticados”. Uma criança de cinco anos que chegava com a família pediu ao pai que lesse o cartaz. Após a leitura, perguntou: “Pai, quer dizer que animais selvagens podem entrar no hotel?”
Li no Jornal do Brasil, em uma das muitas viagens para o Rio de Janeiro uma notícia a respeito do meu time do coração ao lado do Cruzeiro de Belo Horizonte: o glorioso Botafogo de Futebol e Regatas. A notícia contava um caso interessante de uma briga entre o técnico do time de juniores do Botafogo e o juiz da partida. Um jovem jogador do time não tinha uma parte do braço direito, o que, entretanto, não impedia que ele jogasse muito bem como atacante do time. Naquele jogo, entretanto, toda vez que o jogador ia cobrar lateral, o juiz mandava reverter o lateral para o outro time invalidando a cobrança feita pelo jovem jogador sem uma mão. Indagado com indignação pelo técnico sobre o porquê das repetidas invalidações das cobranças de lateral, o juiz respondeu: “A regra do jogo é clara: o lateral tem de ser cobrado com as duas mãos.”
Inspirado em Perelman, podemos adaptar para o nosso espaço outro caso ilustrativo. Em uma estação de metrô limpa, clara e bem conservada, uma senhora passeava com o seu cachorro que, apertado, fez cocô. A senhora, apressadamente, não limpou a sujeira de seu animal, deixando no chão aquela coisa desagradável e meio mole. Pouco tempo depois, passou outra senhora distraída pisou naquela coisa, escorregou e se machucou. O incidente rendeu um processo e uma indenização paga pela administração do metrô. Após o fato a administração baixou uma regra muito clara: “É proibido entrar com cachorro no metrô”. Muitos dias depois, passava pela cidade um circo, e o treinador de animais saiu para passear pela cidade levando na coleira um simpático urso panda filhotinho. No mesmo momento que entrava no metrô, entrava também um cego levando seu cachorro, um belo labrador branco que o conduzia. O guarda de plantão, vendo a cena e olhando a regra “proibido entrar com cachorro no metrô” abordou o cego e disse: “O senhor não pode entrar com o cachorro no metrô”. O treinador passou tranqüilamente com o seu urso, pois urso não é cachorro.
Qual o problema recorrente nos casos acima? A leitura gramatical descontextualizada que deturpa o sentido da norma. Ora, no último exemplo, a norma, embora mencione um cachorro, tem a finalidade de impedir que animais que não façam xixi e cocô no banheiro o façam no chão e nos carros do metrô. No que diz respeito ao cego, ele tem um direito constitucional maior, a liberdade de locomoção, superior à regrinha da administração do metrô, e como ele necessita do cachorro para se locomover não pode ser impedido de entrar com o cão no metrô.
Ainda sobre legalismos e interpretações literais e gramaticais descontextualizadas, recordo-me de um recurso de um aluno em uma prova de Direito Constitucional de uma professora colega de trabalho. O art. 5º da Constituição no caput dispõe o seguinte:
Artigo 5

Como professora de Direito Constitucional I, sua primeira prova avaliava o conhecimento dos alunos a respeito dos direitos individuais. Uma das questões estava assim proposta:
“Os direitos individuais relativos à vida e à liberdade no Brasil são assegurados pela Constituição Federal para as seguintes pessoas:

a) apenas para os brasileiros natos e naturalizados;
b) para os brasileiros e estrangeiros residentes no país;
c) para todas as pessoas que se encontram no território brasileiro;
d) nenhuma das respostas anteriores.”

Note-se que a questão b) transcreve parte do texto do art. 5º da Constituição Federal de 1988. A maior parte dos alunos que assistiu às aulas e leu os textos indicados pela professora respondeu corretamente à questão assinalando a letra c). Entretanto, um aluno relapso e criador de caso assinalou a questão b) e, alegando estar a professora errada, recorreu e xingou até a última instância acadêmica, perdendo, obviamente, o recurso e a razão. Ora, como dissemos, Constituição não é texto, e uma leitura literal não sistêmica e descontextualizada do texto pode sugerir então que, como a Constituição expressamente se refere à garantia dos direitos individuais para brasileiro e estrangeiros residentes no Brasil, os estrangeiros, turistas, não residentes, não têm assegurado o seu direito à vida e à liberdade, o que é errado.
Passamos, agora, a análise do conflito de regras, de princípios e regras e de princípios.
A regra, pela sua especificidade, regula uma situação, logo, não pode haver duas regras regulando a mesma situação de forma contraditória. Nesse caso, a solução é simples e estudada há muito tempo, podendo ser encontrada em três aspectos:

a) a lei no tempo: regra posterior revoga a anterior;
b) a hierarquia das leis: lei hierarquicamente superior se impõe sobre a lei hierarquicamente inferior (esta discussão no federalismo já foi feita e não é tão simples quanto num estado unitário).
c) a regra contida em lei específica em face da regra contida em lei de caráter geral.

Não pode haver duas regras regulando a mesma situação de forma diversa no ordenamento jurídico - uma deve ser expulsa.
Podem ocorrer situações em que uma regra se confronte com princípios, e isso, em um ordenamento em que há excessos de regras, é muito comum ocorrer. Nesse caso dois aspectos devem ser ressaltados:

a) regra infraconstitucional que confronte principio constitucional é inconstitucional e não pode continuar sendo válida no orde¬namento jurídico;
b) o conflito pode ocorrer diante do caso concreto e, neste caso, a regra continua existindo e podendo ser aplicada em outras situações, exceto aquela em que se caracterizou o conflito. O princípio sempre prepondera sobre a regra

Finalmente, chegamos à situação de maior complexidade: o conflito de princípios. Como dito, os princípios regulam diversas situações e têm como característica principal o grau de abrangência maior. Os princípios tendem a ser aplicados ao maior número de situações possível. Logo, em cada momento que aplicamos ou buscamos no ordenamento jurídico uma regra que regule uma situação, com ela devemos trazer diversos princípios que condicionam a aplicação da regra e que determinam a construção da norma aplicável ao caso concreto. Essa é a situação do Judiciário, ou deveria ser sempre, assim como deveria ser para a Administração Pública no cumprimento das leis e da Constituição.
Não existe, portanto, um conflito ou contradição a priori de princípios. Os conflitos de princípios a priori só existem quando não se considera o ordenamento um sistema lógico que produz seu próprio referencial de compreensão. Não se pode ler a Constituição com pré-compreensão outra senão aquela gerada pelo próprio sistema constitucional. O professor Washington Peluso Albino de Souza já afirma isso há mais de trinta anos.
Portanto, o conflito de princípios (não é uma mera tensão, pois a visão lógico-sistêmica tem efeito de um ansiolítico, evitando ansiedades e tensões) só ocorre diante do caso concreto, diante da complexidade da vida social.
Para compreendermos o conflito de princípios, vamos exemplificar, primeiramente, com um exemplo moral e depois jurídico, para demonstrar que a solução do conflito não pode estar no plano dos valores pessoais do julgador, mas, sim, da razão argumentativa fundada sobre o texto legal e constitucional e sua compreensão jurisprudencial.
Inspirados por um caso reportado, ocorrido com o grande Kant, adaptamos o caso ao Brasil contemporâneo.
Em 1970, um professor brasileiro, sobrevivente do fundamentalismo violento da direita autoritária, lecionava em uma sala de aula de uma universidade pública, quando um rapaz entrou em sua sala correndo, assustado, e pediu para se esconder. O rapaz vestia camisa vermelha e saiu por aí. Encontrou a polícia da ditadura. O rapaz tinha cavanhaque (naqueles tempos sinal de ser um trotskista ou leninista), o que, aliado ao fato de estar com a camisa vermelha e sua juventude, o condenava certamente à tortura e, provavelmente, à morte. O professor, prontamente, sugeriu que ele se escondesse debaixo de sua grande mesa de madeira encima do tablado do qual falava para a turma com cerca de 30 alunos (naquele tempo as turmas eram menores). Pouco tempo depois, dois policiais militares (naquela época a polícia servia às elites que financiavam a ditadura protegendo sua propriedade) entraram na sala de aula e perguntaram ao professor e à turma se eles tinham visto um rapaz perigoso, comunista, com camisa vermelha e cavanhaque.
Esse é o momento do conflito de princípios morais para construção de uma conduta ética: cada aluno e o professor, em fração de segundos, devem consultar sua constituição (os princípios morais e éticos que regem sua vida) para construir um conduta justa aplicável àquela situação (a norma justa aplicável ao caso concreto). Ao consultar sua constituição moral, a maioria das pessoas presentes na sala de aula, como bons alunos de direito democrático, percebeu que havia um inevitável conflito de princípios: um dos fundamentos de seu ordenamento moral é o princípio de não mentir. Entretanto, percebem com clareza que, ao falar a verdade contando que o rapaz estava escondido debaixo da mesa, estavam condenando o jovem trotskista à tortura e, talvez, à morte biológica. Um terrível conflito se instalou na consciência de cada um: ao falar a verdade, estavam violando outro princípio moral muito caro a cada um deles: o respeito à vida, à integridade física e moral e à liberdade de pensamento e expressão, ou, no mínimo, ao principio de não delatar. A escolha é inevitável. Não há como aplicar, todo o tempo, todos os princípios. Mas há como manter a coerência. Todo esse processo ocorreu em poucos segundos. Depois de alguns segundos tensos, a solução justa veio aliviar a tensão. Nada como justiça para aliviar as tensões. O professor respondeu: “Policial, realmente eu vi o rapaz. Ele entrou aqui e pulou a janela (era o primeiro andar) correndo em direção do jardim. Os alunos concordaram com a solução se calando, pelo menos a maioria, pois alguns se calaram por covardia de mostrar sua solução injusta.
Eis o conflito de princípios. Ele é inevitável, não há como fugir dele. A escolha tem de ser feita mesmo que seja a omissão, o que uma é péssima escolha. Não é possível aplicar, todo o tempo, todos os princípios e regras, pois, mantendo ou não a coerência, as escolhas devem ser feitas, e o mais grave ocorre quando as escolhas são feitas sem que se saiba que se está escolhendo, fato que ocorre diariamente no plano moral e jurídico.
A solução ocorreu por meio de uma opção fundada sobre valores. Ocorreu uma escolha fundada sobre valores morais. No campo do Direito, isso não pode ocorrer pois significaria a absoluta insegurança. Não são os valores morais do juiz que irão determinar a construção da norma justa com as escolhas que devem ser feitas. Se isso ocorrer, os valores pessoais do juiz determinarão a construção da norma jurídica justa aplicável ao caso concreto, e a insegurança estará instaurada. A resposta que devemos buscar, pois, é, como solucionar o conflito inevitável de princípios no campo do Direito. Para isso, vamos buscar outro exemplo, e para a solução do conflito partimos dos ensinamentos de Ronald Dworkin na sua importante análise do conflito de princípios e na sua construção da idéia da integridade do sistema jurídico. Lembramos que, ao mencionar a teoria de Dworkin como base de reflexão para solução dos problemas de conflitos de princípios na ordem jurídica, não estou concordando com todo o seu pensamento nem que eu seja um liberal, o que definitivamente não sou. O que escrevo surge a partir de um diálogo de leitor, estabelecido com sua obra e com várias outras obras. Não estou traduzindo o seu pensamento, não me julgo o seu intérprete, nem sou seu seguidor. Recomendamos ao leitor o conhecimento das obras do autor norte-americano, O Império do Direito; Uma Questão de Princípios; Levando o Direito a Sério e O domínio da vida, referências importantes para o Direito contemporâneo.
Para trabalharmos o conflito de princípios no Direito, buscamos um exemplo ocorrido no Brasil não faz muito tempo: um episódio envolvendo o conflito de terras. Em um Estado brasileiro, um grupo de famílias do movimento dos Sem Terra ocupou uma propriedade que, segundo o movimento, tratava-se de propriedade improdutiva. O fazendeiro, proprietário das terras, não conformado, recorreu ao Poder Judiciário pedindo a imediata desocupação das terras. O pedido foi acatado pela juíza, que mandou a Policia Militar desocupar a terra em 24 horas. O saldo trágico da ordem inconstitucional da juíza foi de uma morte e diversos feridos. Perguntas surgem dessa exposição: a decisão de desocupação das terras em 24 horas foi correta? Havia outra solução? Qual a solução justa para o caso? Há conflito de princípios? Porque afirmei ser a decisão da juíza inconstitucional? Vejamos.
Para solucionar o conflito construindo uma norma justa específica para o caso, é necessário considerarmos todos os elementos fáticos que envolvem a situação para, então, buscarmos no ordenamento jurídico (visto de forma sistêmica e integral, o que significa coerência do sistema e com o sistema), os princípios e regras, constitucionais e infraconstitucionais que devem ser considerados para a solução do conflito para, então, juntando os dois elementos, argumentando a partir do caso e considerando os dispositivos constitucionais e infra¬constitucionais, construirmos a solução justa, a única solução justa para o caso.
A Constituição Federal prevê a função da social da propriedade com limite ao direito fundamental a propriedade privada previsto no art. 5º. O art. 184 dispõe sobre a desapropriação para fins de reforma agrária quando descumprida a função social da propriedade, por sua vez prevista no art. 186. Em outros dispositivos constitucionais encontramos princípios e direitos fundamentais da ordem constitucional como o direito ao trabalho, a uma justa remuneração, à dignidade da pessoa, à proteção, à integridade física e moral, o direito à vida, ao devido processo legal, à ampla defesa, ao contraditório, dentre outros. Esses princípios e direitos constitucionais não são hierarquizados, tampouco pouco contraditórios. Devem ser lidos de forma sistêmica e coerente. Não pode haver conflitos a priori. O reconhecimento de conflitos a priori decorre de uma incorreta interpretação do sistema, que ocorre quando da leitura a partir de outro paradigma que não o paradigma do próprio sistema constitucional gerado a partir da inserção do texto constitucional e legal na realidade social, política e econômica do momento histórico presente.
A juíza, ao mandar desocupar a propriedade em 24 horas, ignorou os fatos e o potencial gritante de violação de princípios e direitos constitucionais que não foram considerados na construção da norma aplicável ao caso, que foi simplesmente: desocupe em 24 horas com base na legislação infraconstitucional processual.
Qual a solução justa para o caso? Há conflito de princípios constitucionais?
Para construirmos a solução justa para o caso, a única solução justa, é necessário:

a) levar em consideração a relação entre o julgador o caso e o sistema jurídico ao qual ele se vincula;
b) o julgador é obrigado a respeitar o ordenamento jurídico e, logo, deve fundamentar sua decisão desenvolvendo uma argumentação construída sobre os textos constitucional e legal infraconstitucional para solucionar o caso específico;
c) o caso tem de ser considerado em toda a sua complexidade, que deve ser claramente demonstrada. A argumentação deve partir do caso;
d) deve ser demonstrado, finalmente, que a sua decisão é a única que preserva a integridade do sistema, entendida como coerência histórica e coerência sistêmica;
e) a coerência histórica significa que o julgador não pode criar aleatoriamente ou arbitrariamente conceitos ou significados arbitrários para os significantes que constituem princípios constitu¬cionais e infraconstitucionais. Deve ser considerado o conceito historicamente construído para, a partir dessa busca, escrever um novo capítulo coerente dessa novela. Os conceitos, os significantes, evoluem com a sociedade e não podem ser construídos arbitrariamente, mediante argumentos de autoridade, pelo julgador;
f) o sistema jurídico é uma coisa só. É um sistema lógico que se constrói sobre a Constituição que lhe dá sentido e coerência. Esse sentido e essa coerência devem,, obrigatoriamente, serem mantidos na construção de normas aplicáveis aos casos concretos pelos julgadores;
g) entendemos, no dialogo com Dworkin, que a integridade do sistema parte da compreensão de um sistema legal único fundado sobre a Constituição, e não uma série de sistemas autônomos ou semi-autônomos concorrentes entre si como visto no passado do Direito brasileiro, quando diversas obras jurídicas foram escritas para demonstrar a autonomia ou a cientificidade de determinado ramo do Direito. O efeito dessas compreensões foram e ainda são perversos para o respeito à Constituição e comprometem a afirmação do Estado Democrático e Social de Direito contemporâneo, como um necessário avanço ou evolução do Estado de bem-estar-social.

A juíza no caso mencionado não considerou nada disso. Simplesmente aplicou um artigo do Código. Ignorou a Constituição e o potencial explosivo de sua decisão. Ignorou a relação do caso com as normas do sistema jurídico e logo se recusou a construir a norma para o caso, mas simplesmente reproduzir uma regra descontextualizada para a situação fática de extrema complexidade.
Ora, é obvio que a determinação de desocupar uma propriedade rural onde estão, de um lado, centenas de pessoas, de todas as idades, famílias com crianças e idosos, mulheres e homens de todas as idades armados com pedaços de pau e foices, e, de outro, policiais armados com bombas de efeito moral, revólveres, espingardas e outras armas mais, nunca poderia acabar com o respeito à ordem constitucional e ao princípios e direitos acima mencionados. Não é necessário muito raciocínio lógico para perceber que essa ordem de desocupação, embora com amparo na regra processual infraconstitucional, não encontra amparo no ordenamento jurídico constitucional.
Não é difícil perceber que ao aplicar a regra infraconstitucional e mandar desocupar, comprometeram-se direitos como a integridade física e moral, a vida e a liberdade. Pode-se argumentar: E o direito à propriedade do fazendeiro? Não há no texto nada que autorize o julgador a priorizar a propriedade em detrimento da vida ou da integridade física ou moral de nenhuma pessoa. Nesse caso, há então, um conflito entre propriedade e integridade física, entre propriedade e vida? Não.
A solução do caso, levando em consideração a necessidade de preservação da integridade do sistema, deve buscar uma argumentação que, partindo do caso concreto, demonstre os riscos e ameaças a direitos envolvidos e busque, em todo o ordenamento, os direitos que devem ser preservados na decisão.
Não compete ao julgador escolher princípios em detrimento de outros, direitos em detrimento de outros, fundamentando sua decisão a partir de valores pessoais, morais ou ideológicos. Isso seria a insegurança absoluta. Essa arbitrariedade comprometeria o Estado de Direito. Ao permitir que as escolhas fossem fundamentadas pelo julgador a partir de argumentos morais ou ideológicos, teríamos situações de grave injustiça constitucional, principalmente em sociedades complexa e com múltiplas identidades simultâneas como as sociedades contemporâneas. No caso de conflito de terras e resgatando o importante conceito de autopoiésis construído anteriormente, teríamos, por exemplo, situação absurda de insegurança como:

• Um juiz conservador vê o mundo a partir do seu referencial de valores. Provavelmente, ao observar o caso, ele poderia pensar: “Aquele grupo de sem-terra desrespeitaram o direto a propriedade daquele fazendeiro trabalhador, devo tirar imediatamente os invasores”. A decisão, então, injusta perante o sistema constitucional, se fundou em valores morais e ideológicos da visão de mundo daquele sujeito.
• De forma diferente, um juiz com sensibilidade social, não necessariamente um socialista, também percebe o mundo a partir do seu referencial de mundo e pode traduzir o fato da seguinte forma: “Aquele latifundiário, com tanta terra sem produzir, enquanto tantas pessoas necessitam de terra, trabalho e comida. Esta propriedade não pode continuar sendo mal utilizada enquanto tantos necessitam. Os ocupantes devem permanecer, pois sua vida de liberdade é mais importante que a propriedade privada do fazendeiro”.
• Observamos na sociedade brasileira posicionamentos semelhantes ao acima exemplificado. Esses pensamentos opostos, entretanto, têm algo em comum: não são jurídicos. Não são constitucionais. Não respeitam a integridade de nosso sistema jurídico constitucional.
• Qual a solução justa, então? Ao observar o conflito de terras como o do nosso caso e ao ser chamado a solucionar o conflito sem a obrigatoriedade de respeitar a integridade do sistema fundamentando sua argumentação em valores morais e ideológicos e não argumentando exclusivamente sobre os princípios e normas jurídicas, tanto o juiz conservador como o progressista, comprometeram a segurança jurídica e desrespeitaram a Constituição.
• O caso não é o mais complexo, e sua solução já foi encontrada por diversos julgadores em casos concretos ocorridos recentemente no Brasil. Não se trata, neste caso, nem mesmo de conflito de princípios ou direitos constitucionais, mas de conflito entre regra e principio, em que a primeira deve ser afastada. Em nosso exemplo, a regra do código deve ser afastada, não pode ser aplicada, e a solução que mantém a coerência do sistema preservando os direitos constitucionais envolvidos é a que busca a desocupação no tempo necessário para que nenhuma vida seja ameaçada, nenhuma pessoa tenha sua integridade física e moral ameaçada ou comprometida, preservando a propriedade do fazendeiro até que, por meio do processo legal previsto para desapropriação para fins de reforma agrária seja assegurado o direito à terra para aquelas pessoas e todos os brasileiros que queiram produzir e viver com dignidade.
• A norma não foi inventada, não se trata de direito alternativo, mas de direito constitucional. Não há como preservar a integridade do sistema de outra forma.

Não há segurança absoluta. A segurança oferecida pelo Direito se funda sobre a obrigatoriedade de argumentação jurídica que demonstre a preservação da integridade do sistema jurídico, juntamente com um processo justo, no qual esteja assegurada a igualdade entre as partes, o duplo grau de jurisdição, a ampla defesa e o contraditório.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

74- Teoria da Constituição 22 - Autopoiesis

HERMENÊUTICA
CONSTITUCIONAL


Jose Luiz Quadros de Magalhães


4 UM PRESSUPOSTO: A AUTOPOIÉSIS É UMA CONDIÇÃO HUMANA

Um pressuposto fático e não apenas teórico é a condição de que, enquanto vivos, estarmos condenados a autopoiésis. Somos necessariamente, como seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos e essa condição se manifesta também nos sistemas sociais e jurídicos.
Dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela,13 biólogos, trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na biologia resgatam a idéia de auto-referência que se aplica para toda a ciência.14
Estudando a aparelho ótico de seres vivos,15 os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua, quando era lançada para pegar uma presa, ia também na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.
A partir dessa simples experiência, temos uma conclusão que pode ser absolutamente óbvia, mas que, entretanto, foi ignorada pelas ciências durante séculos, ciências que buscavam um verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.
O fato é que entre nós e o mundo existe, sempre, nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma dessas lentes.
Assim, para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado que é capaz de perceber cores e uma série de coisas, mas que não é capaz de perceber outras, ou por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.
Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim, quando estamos deprimidos, percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e a interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes ou quando tomamos drogas como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por essa condição química. Cada vez que recordamos um fato, essa condição influencia nossa lembrança. Daí a dificuldade de contar com provas testemunhais em processos judiciais ou administrativos, especialmente quando o depoimento ocorre muito tempo depois do fato. Um mesmo fato presenciado por diversas pessoas será descrito de maneira diferente por cada uma das testemunhas. A percepção diferente do mesmo fato ocorre, uma vez que cada observador é um mundo, um sistema auto-referencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim, podemos dizer que outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo são nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros. Aproximando-se do campo do Direito, temos a cultura, que traduz uma série de círculos sistêmicos, que parte do mais estreito (espacialmente falando) no qual há uma maior sintonia fina para os mais amplos. Assim, somos influenciados em nossa percepção do mundo pelos valores e pré-compreensões decorrentes da cultura de nossa família, nossa cidade, nossa região, nosso país, nosso continente, assim como compartilhamos algumas compreensões universais. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim, o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos que dificilmente são universalizáveis.
Chegando ao campo do Direito, quando procuramos entender uma Constituição e um sistema legal de outro Estado nacional, de outra cultura e história, enfrentaremos os problemas de diferentes compreensões e percepções do mundo, especialmente quando tratamos de princípios, palavras cheias de sentido, que se localizam, por isso, geograficamente e historicamente. Ao lermos o texto de uma Constituição vamos deparar com palavras como liberdade, igualdade, soberania, etc. Quando lemos o texto vamos atribuir o sentido a essas palavras, de nossa cultura, de nosso conhecimento e compreensão do mundo, entretanto essa não será a compreensão dessas palavras para o sistema jurídico estudado. Para nos aproximarmos do sentido do texto para aquele sistema jurídico, temos de buscar sua compreensão nos julgados, nas decisões judiciais que interpretam o texto naquele sistema.
Somos seres autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reprodutivos), e não há como fugir desse fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Somos a dimensão de nosso mundo.
A linguagem e a série de conceitos que ela traduz constituem nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado.
Assim, não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades científicas absolutas, pois é impossível separar o observador do observado.16 Daí existirão tantas verdades quanto observadores existirem. Esse universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, às intolerâncias. A compreensão da autopoiésis significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo à tolerância, à relatividade, à compreensão e à busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia. Entretanto, um problema fundamental se coloca para o Direito, o qual abordaremos a seguir: é necessário construir mecanismo de interpretação jurídica que ofereça o mínimo de segurança possível e desejável, em que o grau de relatividade seja controlado. Deve existir um mínimo de previsibilidade na inevitável relatividade. Lembremos que a tentativa de eliminar a relatividade na busca da previsibilidade pode levar ao absolutismo, ao totalitarismo ou, no mínimo, ao autoritarismo, gerando sempre injustiça.

73- Teoria da Constituição 21 - constitucionalismo norte-americano

HERMENÊUTICA
CONSTITUCIONAL


Jose Luiz Quadros de Magalhães


3 O CONSTITUCIONALISMO NORTE-AMERICANO

De forma diferente do constitucionalismo inglês, nos Estados Unidos houve um poder constituinte originário que produziu, em 1787, um texto codificado, rígido e sintético com aspecto essencialmente princi¬piológico e inicialmente político, incorporando a declaração de direitos individuais fundamentais a partir da dez emendas que constituíram o Bill of Rights.
O constitucionalismo estadunidense criou o sistema de governo presidencial, o federalismo, o controle difuso de constitucionalidade, mecanismo sofisticados de freios e contrapesos e uma Suprema Corte que protege a Constituição, sendo sua composição uma expressão do sistema controle entre os poderes separados.
Sobre a Constituição norte-americana muito tem sido dito, por isso muitos são também os equívocos. Primeiro diz-se que os Estados Unidos tiveram apenas uma Constituição, mas esta não parece ser a compreensão de seus intérpretes e estudiosos. Alguns autores afirmam encontrar-se nos Estados Unidos da América ao menos três Constituições, outros falam em sete Constituições diferentes. Isso significa que, embora desde 1787 o texto com sete artigos permaneça em vigor com 27 emendas, ocorreram modificações interpretativas que atribuíram sentidos diversos aos significantes do seu texto, e essas mudanças de compreensão geraram novos direitos.
Para compreender o que foi dito, é importante lembrar que Constituição não é texto. O texto é um sistema de significantes aos quais atribuímos significados. Nesse sentido toda leitura de um texto significa atribuição de sentidos e atribuição de sentidos significa atribuir valores, que mudam com a mudança da sociedade. A sociedade muda por meio das contradições e conflitos internos e externos. Logo, quando muda a sociedade, mudam os valores, logo, mudam os conceitos das palavras (significantes), aos quais, portanto, passamos atribuir novos significados.
O processo evolutivo da Constituição dos Estados Unidos da América ocorre, principalmente, por meio das suas mutações interpretativas, decorrentes da evolução de valores de uma sociedade em permanente conflito.
Jorge Miranda7 afirma que a Constituição norte-americana é, simultaneamente, rígida e elástica. Rígida porque a alteração formal de seu texto é complexa e diferenciada do processo legislativo de elaboração de uma lei ordinária. Para alterar o texto ou promover emendas aditivas ou supressivas, é necessária a participação dos Estados-Membros da federação em um processo lento e complexo. Isso explica, em parte, o número reduzido de emendas. Entretanto, o principal motivo da existência de poucas mudanças formais do texto, por meio de emendas é o fato de que esse texto sintético e principiológico permite mutações interpretativas, mudança de compreensão de seu sentido e do conceito de seus princípios, que torna desnecessária o recurso constante a mudança do texto, pois muda-se a Constituição mudando o seu sentido, a sua compreensão, sem ter de mudar o texto.
Importante ressaltar que a mudança interpretativa tem limites, impostos pelo próprio texto. Logo, um texto sintético, que contenha mais princípios do que regras8 permite maiores mudanças interpretativas do que um texto analítico, com excesso de regras que travem mudanças de compreensão dos princípios. Quanto mais detalhado o texto, quanto mais regras, quanto maior o detalhamento do texto, que em alguns casos pode construir modelos, conceitos e traduzir valores, menor o espaço para as mudanças interpretativas. Entretanto, podemos dizer que mesmo um texto detalhado, minucioso, também muda de sentido, embora o espaço da mudança seja menor. Podemos concluir nesse aspecto, que, ao contrário do que se diz, a Constituição dos Estados Unidos da América não é pequena, pois o seu texto sintético permite construções interpretativas muito amplas, fazendo que a constituição dos Estados Unidos da América, juntamente com a Inglesa, seja uma das maiores Constituições do planeta, pois para compreendê-la é necessário buscar a leitura que os tribunais fazem do seu texto. Integram a Constituição as decisões judiciais que dão densidade aos seus princípios diante do caso concreto.
Esse é o ponto que nos interessa de perto para a construção da idéia de jurisdição constitucional: o que ocorre nos Estados Unidos da América ocorre em todo o mundo, com intensidade diferente. A interpretação, a atribuição de sentido ao texto, é fato que sempre ocorre. O texto por si só não existe, ele só passa a existir quando alguém o lê, e quando isso ocorre, necessariamente, quem o lê e lhe atribui sentido, o faz a partir de suas compreensão dos significantes ali apresentados, jogando na compreensão do texto os valores, as pré-compreensões adquiridas do decorrer de sua vida. Podemos afirmar que é impossível não interpretar.
Pode-se imaginar, a partir daí, que a relatividade e as variações das compreensões são muito grandes, e isso também é fato. O que cabe ao jurista buscar é a segurança jurídica possível diante do universo de compreensão que se abre com essa descoberta. A segurança que se buscou no legalismo extremado, gerador de injustiças, não é de forma nenhuma a solução. A inflação normativa, com a criação de regras para tudo, é uma ilusão que não gera segurança, mas gera, sim, injustiça e imobilismo autoritário.
Vivemos inseridos em sistemas de valores, em universos de compreensão que se inserem uns dentro dos outros. Quanto maior o espaço de abrangência do sistema de compreensão, menor a sintonia fina existente, menores os recursos de comunicação. O sistema jurídico constrói um universo de compreensão não uniforme, mas que oferece maior segurança se o compreendermos em sua dimensão histórica e em sua dimensão sistêmica e teleológica. Esse assunto será enfrentado mais adiante e nos valemos das reflexões de Ronald Dworkin para fazê-lo, não adotando sua teoria mas pensando a partir dela.
Voltemos, pois, a história constitucional norte-americana para procurarmos entender a evolução constitucional daquele país e a importante contribuição de sua prática histórica para as reflexões que envolvem a hermenêutica constitucional em todo o mundo.9
Vamos tomar uma frase (em português) mas originária da declaração de independência dos Estados Unidos:

TODOS OS HOMENS NASCEM
LIVRES E IGUAIS EM DIREITO

Como o leitor compreende essas palavras hoje, no século XXI? Provavelmente da maneira como a grande maioria das pessoas: todas a pessoas, indistintamente, sem diferenciação em razão de credo religiosos, etnia, cor, sexo, origem econômica ou nacional, nascem livres e iguais em Direito.
Como vemos, a frase “todos os homens nascem livres e iguais em Direito” conquistou hoje o senso comum de milhões de pessoas em quase todos os lugares do planeta onde há uma Constituição de um Estado nacional relativamente democrático, com um significado que se universalizou. Entretanto, para lermos e compreendermos essa frase como a compreendemos hoje foram séculos de história, séculos de conflitos e lenta conquista de direitos. A atribuição desse sentido aos significantes da frase, embora não seja realidade efetiva em diversas sociedades, representa uma busca comum de boa parte da humanidade. A compreensão geral desse principio é hoje bastante generalizada, embora a compreensão mais profunda da idéia de igualdade não seja tão uniforme, e nem deva ser, em um universo cultural diversificado, plural e democrático.
Se buscarmos, no entanto, a compreensão dessa frase no século XVIII, pouco depois da independência dos Estados Unidos da América, vamos perceber que as palavras ganham outro sentido, e logo as normas decorrentes desse princípio serão outras. O olhar de um juiz norte-americano sobre essas palavras, expressando os valores daquela época, vai permitir que ele extraia dessa frase a seguinte compreensão: todos os homens (sexo masculino) brancos e protestantes, nascem livres e iguais em direito. A mesma frase, com os mesmos significantes ganha sentido completamente diverso, pois o olhar do interprete é condicionado pelos valores sociais e as pré-compreensões desses valores decorrentes em determinado momento da história. As compreensões são historicamente e geograficamente localizadas. Com outro sentido, as normas decorrentes deste principio estabelecem uma ordem jurídica fundada sobre valores completamente diferentes e um sistema normativo também completamente diferente.
A situação de exclusão e um desenvolvimento econômico distinto no norte industrializado e progressista e um sul escravocrata e conservador geraram conflitos que levaram a guerra civil norte-americana. Os conflitos sociais, políticos e econômicos empurram a sociedade a mudanças comportamentais, novos valores se afirmam e as compreensões do mundo mudam gradualmente. Novos conceitos se afirmam diante de novas realidades, um novo universo de pré-compreensões é paulatinamente construído e reconstruído. Novos significados se afirmam para os mesmo símbolos, para os mesmos significantes, para as mesmas palavras. Um novo mundo se constrói na linguagem, que é reconstruída pela marcha econômica e social do capitalismo do século XIX. Essas mudanças ocorrem na cabeça das pessoas. Novas demandas se apresentam perante o Poder Judiciário, e juízes que incorporam essas novas compreensões constroem soluções, novas normas diante do caso concreto que refletem esses valores. No final do século XIX, as mesmas palavras que traduzem o princípio da igualdade ganham novo significado e normas diferentes são criadas, regulando as relações sociais, políticas e econômicas de forma diferente.
A frase “todos os homens nascem livres e iguais em direito” passa a ter novo sentido, podendo ser traduzida da seguinte forma: todos os homens (sexo masculino), brancos e negros, nascem livres e iguais em direitos, mas devem viver separados. A existência de escolas só para brancos e só para negros, ônibus ou lugares nos transportes coletivos só para brancos e só para negros, assim como outras separações, são permitidas, desde a qualidade dos serviços sejam iguais para brancos e negros.10 Está criada a doutrina fundada sobre a idéia de separados mas iguais. Esse processo de mutação interpretativa é muitas vezes lento, aparecendo pontualmente em algumas decisões judiciais, até se firmar como paradigma de compreensão durante algum tempo.
A compreensão do separados mas iguais permanece até a década de 1960 nos Estados Unidos. Os conflitos raciais, o movimento pelos direitos civis na década de 195011 e 1960, com a liderança de Malcon X, o pastor Martin Luther King, a eleição de John Kennedy em 1960 e a ação de Bob Kennedy na repressão aos movimentos racistas violentos da Ku Klux Klan, empurram a sociedade norte-americana para uma nova ruptura, com a construção de uma nova idéia de igualdade. Lentamente, a doutrina do separados mais iguais vai cedendo espaço a uma nova leitura do principio da igualdade jurídica. A frase “todos os homens nascem livres e iguais em direito” passa a ser compreendida de outra maneira. Agora podemos dizer que todos os homens, brancos, negros, vermelhos, amarelos, independentemente de cor, etnia ou qualquer outra diferenciação, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser obrigados a viver separados em um sistema de segregação de qualquer espécie.
A igualdade de direitos entre homens e mulheres, entretanto, ainda vai demorar um pouco mais. Em 1972, nos Estados Unidos da América, foi proposta a 27ª emenda, reconhecendo direitos iguais para homens e mulheres. Na sua proposição, reconheceu-se que, caso a Suprema Corte mudasse a orientação a respeito da igualdade jurídica, não seria necessária a aprovação da emenda. Ela não foi aprovada, encontrando forte resistência nos Estados do sul, mais conservadores. Entretanto, a Suprema Corte passou a compreender a igualdade perante a lei de nova forma. Podemos dizer que a frase “todos os homens nascem livres e iguais em direitos” passa a ser compreendida da seguinte forma: todos os homens leia-se todos os seres humanos -, sem nenhuma distinção, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser segregados ou discriminados por nenhum motivo, seja cor, etnia, origem social ou econômica, ou sexo.
A igualdade de direitos entre mulheres e homens no Brasil só foi reconhecida expressamente com a Constituição de 1988, no seu artigo 5º inciso, I. Em muitos países, hoje respeitados como modelos de Estado de bem-estar social democráticos, os direitos das mulheres foi tardiamente reconhecido. Na Suíça, por exemplo, o voto feminino só foi admitido em nível federal a partir de 1972.
Como vimos, o princípio da igualdade jurídica percorreu um caminho de mais de duzentos anos de conflitos até que pudéssemos compreendê-lo com o significado que ele têm hoje. Esse foi o percurso de um princípio. A mutação sistêmica da compreensão do texto constitucional representa a mudança de compreensão de toda a Constituição. É como se se adotasse uma nova Constituição. Talvez o exemplo mais claro disso tenha sido a passagem de uma Constituição liberal para uma Constituição social, sem a alteração do texto, sem um processo formal de reforma e sem um novo processo constituinte. Houve uma mudança de compreensão do texto no que diz respeito à admissão da possibilidade de uma forte intervenção do Estado no domínio econômico, o que marca a introdução do Welfare State nos Estados Unidos a partir do governo Roosevelt nas décadas de 1930 e 1940, adotando um modelo econômico intervencionista de base teórica keynesiano-fordista.12
A história constitucional norte-americana reforça a idéia de uma Constituição dinâmica, viva, que se reconstrói diariamente diante da complexidade das sociedades contemporâneas. Uma Constituição presente em cada momento da vida. Uma Constituição que é interpretação, e não texto. A experiência norte-americana nos revela uma nova dimensão da jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas mais diversas funções, dizer a Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente adequadas de todas a normas e fatos. A vida é interpretação, não há texto que não seja interpretado. A interpretação do mundo, dos fatos, das normas é inafastável.