quarta-feira, 30 de junho de 2010

11- Direitos Humanos - Curiosidade

Você sabia que a arma de destuição em massa que mais matou nos anos sucessivos a guerra fria foi o embargo? As sanções econômicas contra o Iraque mataram em torno de 500.000 (quinhentas mil) crianças. Agora o ocidente (europa ocidental, EUA e Canadá) aprovou sanções contra o Irã. Quem vai sofrer com as sanções? Ahmadinejad ou o povo iraniano? Até quando a insanidade arrogante de um Império "ocidental" (ou qualquer outro império) comandará os destinos da humanidade?

10- Comentário do filme "O trem da vida" - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

O TREM DA VIDA
NOMEAÇÃO DE GRUPOS: um poderoso instrumento ideológico
José Luiz Quadros de Magalhães


A construção dos significados que escondem complexidades e diversidades é um tema do livro de Alain Badiou, La portée du mot juif . Cita o autor um episódio ocorrido na França há algum tempo atrás. O primeiro-ministro Raymond Barre comentando um atentado a uma cinagoga disse para a imprensa francesa: “...morreram judeus que estavam dentro da cinagoga e inocentes que passavam na rua quando a bomba explodiu.” Qual o significado da palavra “judeu” agiu de maneira indisfarçável na fala do primeiro-ministro? A palavra “judeu” escondeu toda a diversidade histórica, pessoal do grupo de pessoas que são chamadas por este nome. A nomeação é um mecanismo de simplificação e de geração de preconceitos que facilita a manipulação e a dominação. A estratégia de nomear grupos de pessoas facilita a dominação.
Badiou menciona que o anti-semitismo (judeofobia) de Barre não mais é tolerado pela média da opinião pública francesa. Entretanto um outro tipo de judeofobia surgiu, vinculado aos movimentos em defesa da criação do estado palestino. No livro, Badiou não pretende discutir o novo ou o velho anti-semitismo, mas debater a existência de um significado excepcional da palavra “judeu”, um significado sagrado, retirado do livre uso das pessoas.
Assim como ocorre com varias outras palavras de forma menos radical (liberdade e igualdade, por exemplo), a palavra “judeu” foi retirada do livre uso, da livre significação. Ela ganhou um status sacralizado especial, intocável. O seu sentido é pré-determinado e intocável, vinculado a um destino coletivo, sagrado e sacralizado, no sentido que retira a possibilidade das pessoas enxergarem a complexidade, historicidade e diversidade das pessoas que recebem este nome.
Uma lição importante que se pode tirar da questão judaica, da questão palestina, do nazismo e outros nomes que lembram massacres ilimitados de pessoas, é a de que, toda introdução enfática de predicados comunitários no campo ideológico, político ou estatal, seja de criminalização (como nazistas e fascistas), seja de sacrifício (como cristãos no passado e judeus e mulçumanos no presente), estas nomeações nos expõem ao pior.
Vários equívocos podem ser percebidos quando da aceitação ou utilização do predicado radical para significar comunidades, países, religiões, etc. Por exemplo, podemos encontrar pessoas comprometidas com projetos democráticos, fechando os olhos ou mesmo apoiando um anti-semitismo palestino, tudo pela opressão do “estado judeu” aos palestinos, ou, ao contrário, a tolerância de outras pessoas, também comprometidas com um discurso democrático, tolerarem praticas de tortura e assassinatos seletivos por parte do estado de Israel, por ser este estado um “estado judeu”.
Combater as nomeações, a sacralização de determinados nomes, significa defender a democracia, o pluralismo, significa o reconhecimento de um sujeito que não ignora os particularismos mas que ultrapasse este; que não tenha privilégios e que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários, religiosos ou nacionais.
Badiou dedica o seu livro a uma pluralidade irredutível de nomes próprios, o único real que se pode opor a ditadura dos predicados.
O filme “trem da vida” é um maravilhoso poema a pluralidade de nomes próprios que foram reduzidos a um predicado “judeu” na segunda guerra mundial. O filme ressalta a pessoa, os grupos dentro dos grupos, e como a identificação com determinados grupos dentro de um outro grupo gera segregação. A análise histórica da invenção de uma identidade coletiva e da criação de identificações com grupos, religiões, estados, partidos, idéias, mostra a força e o perigo da segregação que daí decorre, anulando o sujeito livre, com a anulação do nome próprio em nome de uma nomeação coletiva (um nome do grupo).
Um mundo onde a pessoa seja vista sempre como pessoa, em toda sua complexidade e singularidade, sejam quais forem suas identificações ou identidades, este é o mundo onde a paz e a justiça serão possíveis. Lembrando Badiou, toda nomeação na terceira pessoa, nós x eles, é um passo perigoso em direção ao extermínio. Esta equação pode ser substituída por outros nomes coletivos como “nós os adolescentes x eles os menores”; “nós os Tutsis x eles os Utus”; “nós a classe média x eles os favelados”. O uso do “ele” é uma autorização à exclusão, ao extermínio e a discriminação. É como se “eles” fossem uma categoria diferente de pessoa, uma meia pessoa, ou não pessoa. Os processos decisórios que jogam pessoas (eles os sem teto) na rua; as prisões ilegais de adolescentes (eles os menores) autorizadas pelas “autoridades”; o encarceramento em massa de pessoas (eles os pobres) como política oficial do estado; as guerras e sanções econômicas que levam centenas de milhares de pessoas (eles o muçulmanos) à morte; e muitos outros exemplos são repetições diárias das práticas nazistas do “nós” x “eles”. Toda vez que a expressão “eles” é pronunciada, o Eichman ( o carrasco nazista que foi responsável pela morte de milhões de “eles os judeus”) se manifesta dentro das pessoas.
O mais insuportável é pensar que Eichman não era um monstro, mas uma pessoa que não reconhecia, nos outros, pessoas singulares, mas sim “eles, os judeus” que para ele não eram seres humanos. Da mesma forma assistimos ainda hoje como “eles” os “menores” são encarcerados em Betim (se fossem “adolescentes” não estariam ali); ou “eles” os “pobres” que tem suas casas invadidas por agentes do Estado (se fossem ricos as casas seriam protegidas pelo Estado e não invadida por este); ou “eles” os “pobres” que são esquecidos nos presídios (pois se fossem ricos teriam dinheiro para pagar um advogado e provavelmente não estariam presos); ou “eles” que dormem embaixo de uma ponte, ou morrem de fome, ou são torturados, ou são despejados, ou...........

Jose Luiz Quadros de Magalhães

segunda-feira, 28 de junho de 2010

9- Comentário do filme "A Vila" - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

A Vila – A segurança não está nos muros
Não é possível fugir de nós mesmos
JOSE LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES

The Village – 2004 - Shiamalan)

Segurança e liberdade não são inconciliáveis. São, em certa medida, complementares. Em tempos de criminalidade crescente, terrorismo, desemprego e insatisfação o recurso ao discurso da segurança como perda de liberdade e aumento de controle encontra respaldo em uma sociedade assombrada, amedrontada pela mídia e pelos governos.
A busca da segurança com a criação de mecanismos de controle, de isolamento, pode manter distante o perigo que vem do outro externo a uma comunidade, mas não tem como nos afastar de nós mesmos, não nos isola da condição humana. Se há a crença falsa de que alguns entre nós já nascem criminosos (o que é uma bobagem) o isolamento entre muros não nos afasta desta possibilidade que estaria na nossa natureza. Se a violência é inerente à condição humana e diante de determinadas circunstâncias todos nós podemos praticar atos violentos, de nada adianta, também, vivermos entre muros, pois o que deve ser evitado é que a paixão, a história, os encontros e desencontros não sigam determinados caminhos. Logo assim será necessário controlar a história de cada pessoa, casal, família, comunidade e sociedade. Como controlar as ações das pessoas? Como controlar as ações e desejos de agir que não podem ser percebidos pelas câmeras de controle? Colocando um mecanismo de controle dentro de cada pessoa, o medo, o sentimento permanente de medo.
O filme “A vila” cuida do controle; do isolamento; da busca de uma sociedade ideal, isolada, controlada e limitada por muros externos e pelo medo interno. Pessoas cansadas e amedrontadas querem controlar o tempo; o espaço e os valores de uma sociedade criada para não viver a violência. Mas a qual violência nos referimos? A violência do medo; do não poder; do não desejar; a violência de não sair dos muros seguros e de esconder sua própria condição de sujeito.
Do controle exercido sobre as crianças, o mais cômodo e eficaz parece ser o medo. A geração artificial do medo. Não o temor sobre o real, mas um temor que ultrapassa o real. O perigo pode estar em cada esquina, em cada pessoa, em cada ação. O desconhecido é, por essência, perigoso mesmo que seja desconhecido. O medo paralisa e quanto maiores os temores do que não existe menos nos expomos ao que existe. A segurança nestes termos não passa pelo conhecimento dos limites, mas pela limitação da ação, do desejo, trancafiando qualquer transgressão nos limites culpados de um sonho que se esconde de si mesmo.
Portanto, a segurança está em gerar um medo além dos limites do real. A partir daí tudo passa a ser idealizado e distanciado do real: os muros; o controle; as câmeras de controle policial; o efetivo policial; a armas que protegem; os presídios de segurança máxima; etc.
O medo torna as pessoas dóceis. Facilita a negociação com os direitos. As pessoas estão dispostas a abrir mão de qualquer coisa até o limite do medo que estas sentem. Quanto maior o medo mais fácil se torna a negociação.
O filme trata de uma comunidade de se afasta do real e projeta uma nova realidade controlada, idealizada e controlada pelo medo. O medo infantil do lobo na floresta, de animais desconhecidos e perigosos, o medo do escuro, o medo de sons na noite. A descoberta da violência dentro dos membros da comunidade apresenta um problema sem solução: como nos proteger de nós mesmos.
O filme foi realizado em uma realidade histórica específica: o mundo pós 2001. Os atentados terroristas e o fortalecimento dos mecanismos de controle com a concordância da população amedrontada. Quanto maior o medo do outro gerado pelo poder mais fácil se torna abrir mão de qualquer coisa. O outro é desconhecido; diferente de nós; meio humano meio selvagem. Os valores do outro não são os nossos valores e esta condição meio humana facilita a compreensão da necessidade de eliminação deste outro.
Este outro estranho aos valores “humanos”, esta invenção deste outro não humano, que não merece direitos humanos por não ser humano é necessária para não enxergamos este outro em nós. A compreensão de nossa condição se torna logo uma ameaça à segurança. Não podemos nos enxergar no outro. Este “outro” estranho passa a ser a razão de toda nossa insegurança e a sua eliminação (impossível) se torna o meio de garantir a nossa segurança.
No século XXI este outro é para alguns o terrorista; para outros o ocidental; para alguns o “monstro assassino”; para outros a polícia. Lembrando de um trecho da letra da musica “Les uns et les autres” do filme “Retratos da Vida” de Claude Lelouch: “Se cada um é outro para um, raramente ele é um para o outro, apesar de todos os discursos e os pedidos de socorro, dos outros.”
Para refletirmos este século XXI na sua busca impossível por segurança e liberdade; realização de desejos nas demandas criadas pelo mercado e a castração do sonho, vamos buscar algumas reflexões a partir da história do século XIX.
O século XIX (e não só ele) foi o século do encarceramento, o afastamento físico dos não adaptados em estabelecimentos de internação coletiva como os presídios e os manicômios. Um exemplo típico de encobrimento do real.
O liberalismo econômico não saiu como esperado (por muitos). Da promessa de uma sociedade com oportunidade para todos, liberdade e igualdade, livre mercado e economia democratizada, o liberalismo se mostrou na prática o que a teoria não escondia mas o discurso disfarçava: radicalmente excludente. Se o direito liberal era para homens brancos e a democracia para homens brancos e ricos a economia não poderia oferecer oportunidades para todos. Nem igualdade perante a lei, nem oportunidade, nem tampouco liberdade foi o resultado do liberalismo no século XX, e as conquistas do voto igualitário e do voto feminino veio da ação dos partidos e sindicatos socialistas.
Desigualdade, exclusão e miséria, se não são os únicos fatores para a criminalidade são os fatores preponderantes no século XIX assim como nas sociedades e economias neoliberais contemporâneas. Não seriam necessários os muros se não houvesse tanta desigualdade que gera as novas cidades burguesas, os bairros ricos, os condomínios fechados com segurança privada, fundados na desigualdade e em valores tão individualistas. Uma sociedade fundada no individualismo, na competição e no egoísmo parece não ter muito futuro.
A equação que se formou no século XIX tem características interessantes que mostram a necessidade de encobrimento do real para aqueles que se encontram no poder. Vigia a época o voto censitário previsto na ordem constitucional liberal de boa parte dos paises ocidentais. Por este mecanismo só votava quem tivesse propriedade e renda anual superior a um determinado patamar e só poderia ser votado quem tivesse renda ainda maior. Ora, a equação é fácil. A economia denominada liberal com total ausência de intervenção estatal permitiu que poucos dominassem os mercados. Estes poucos votavam e podiam ser votados e logo estavam no poder do estado. Para eles, o sistema econômico que excluía a maioria e gerava exclusão trazendo criminalidade, exclusão, desigualdade, não era um problema mas a solução. Logo como fazer com a criminalidade: para reduzir substancialmente o problema era necessário mudar o sistema econômico o que lhes traria um enorme problema uma vez que comprometeria sua crescente riqueza. Mas no poder do Estado estes conservadores-liberais, mesmo para manter seu poder deveriam controlar a criminalidade. Logo para resolver o problema sem criar problemas para o sistema que lhes beneficiava nada melhor que desconectar os dois: separar criminalidade do sistema econômico-social. Mesmo que não se pudesse negar no mundo real uma relação entre os dois, agora no discurso os dois estão separados. A criminalidade passa ser responsabilidade exclusiva dos criminosos: que conclusão obvia diriam alguns! Mas resta uma pergunta: porque os criminosos cometem crimes? Respondem os conservadores e liberais: ora, porque nascem doentes ou maus ou adoecem ou escolhem o caminho do mal. Afinal vivemos numa sociedade livre diriam os liberais e os conservadores. Logo para resolver o problema construíram presídios e manicômios, aumentaram as penas e os crimes, radicalizaram o tratamento e expandiram as patologias. Então gradualmente todos passam acreditar que solucionariam o problema da insegurança e criminalidade com presídios, muros, códigos, penas, manicômios, drogas legais, médicos e choques elétricos. Um problema semântico é ignorado: o controle passa a ser sinônimo de solução. Mas como solucionar um problema com controle? O controle controla, logo se ele controla ele não soluciona mas simplesmente mantém a situação como está.
Este resumo de extrema simplicidade que acabo de fazer como um filme mudo em preto e branco se repete em pleno século XXI remasterizado, colorido artificialmente e com falsos diálogos científicos introduzidos com requintes de avanços biotecnológicos, pesquisas genéticas e outros espetáculos pirotécnicos que novamente buscam encobrir o real de uma parcela expressiva da classe média. A classe média existe ou é uma invenção terminológica para se referir aos trabalhadores que se sentem capitalistas, pessoas que dependem de seu trabalho para viver mas que acreditam firmemente pertencer a uma outra categoria social que não se enquadre no termo “trabalhador”. Será que alguns sujeitos de classe média se escondem de si mesmos diante do espelho? Ou, referindo-se a classe média como uma entidade, será que a “classe media” se esconde de si mesma diante do espelho? Antes de prosseguir... uma outra frase: para ser de classe média é necessário acreditar ser de classe média antes de qualquer outra coisa. Classe média é um estado mental. Classe média é uma crença.
O que eu quis demonstrar é como a ideologia pode nos desviar a atenção. Desviar nosso olhar. Enquanto a bola esta na área adversária o goleiro de nosso time pode fazer qualquer coisa pois ninguém olha para ele. Logo ele nunca faz nada pois ninguém viu. Isto me faz lembrar o filme “O medo do goleiro diante do pênalti –Die angst des tormanns beim elfmeter”, do cineasta alemão Wim Wenders de 1972.

José Luiz Quadros de Magalhães

8- Comentário do Filme "A Ilha" - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

O horizonte impossível como mecanismo de pacificação social.
Reflexões a partir do filme “A Ilha”

Jose Luiz Quadros de Magalhães


A ilha está esperando por você. O que nós esperamos acontecer de diferente, de surpreendente para que suportemos um dia a dia controlado. A promessa de ganhar na loteria, de mudar radicalmente de vida, de realizar o sonho impossível é fundamental para que continuemos vivendo? Uma sociedade fundada no consumo e na competição, sem mobilidade social, só é possível porque existe a promessa de mobilidade social. Uma sociedade fundada no consumo e na competição, no hedonismo e no materialismo, só é possível por meio do exemplo dos que realizam a promessa da ascensão social e econômica. Estes irão dizer na televisão para todos ouvirem: olha como somos felizes! Olhem nossas casas, nossos carros, nossos sorrisos. Vocês também podem ter isto. Vocês podem conquistar a ilha. E todos os jornais e revistas mostrarão seu sucesso. Os programas de televisão irão entrevista-los e dirão: olha como somos livres. Você também pode conquistar esta felicidade.
A espera da mudança pode tornar suportável a exclusão. A espera pode ser pela loteria, pelo paraíso, pelo reconhecimento, pelo arrebatamento, ou por qualquer outra coisa que signifique mudança. Mudar porque? Para que? Não é tanto a mudança o fundamental é sim a crença na possibilidade de mudança, mesmo que esta não exista. O importante não é ser livre mas acreditar que se é livre.
O socialismo real foi capaz de socializar os bens materiais, o atendimento médico, o emprego, a moradia, o acesso à educação, mas não soube socializar o sonho, a possibilidade de mudança ou a crença na possibilidade da mudança. O capitalismo por sua vez concentrou e concentra cada vez mais a riqueza mas promete a mudança, cria desejos artificiais, inventa demandas, desperta o desejo pelo consumo e oferece o bem a ser consumido realizando desejos. O capitalismo foi capaz de socializar o desejo, a crença na liberdade como possibilidade de mudança de status social e econômico, a crença na liberdade como satisfação de desejos. O capitalismo aposta no desejo, não como liberdade mas como escravidão dos sentidos. O socialismo apostou na razão, na ética e esqueceu o desejo.
O socialismo real do século XX pode ter falhado ao não saber lidar com os desejos. O capitalismo foi capaz de tornar a escravidão do desejo permanente em uma crença generalizada na liberdade. O desejo passou a chamar-se liberdade.
O filosofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek menciona que na Tchecoslováquia, na década de 1970, as pessoas tinham tudo para ser felizes. Todos moravam, comiam, estudavam, tinham saúde. Tinham um responsável externo por todo mau funcionamento do sistema. O partido comunista era responsável por tudo que saía errado. Ainda tinham a promessa de um paraíso do outro lado: a Europa ocidental e os EUA com sua promessa de consumo, paraíso que podiam visitar de vez em quando. A felicidade pode estar no princípio do prazer mas o que nos põem em marcha é ir além do principio do prazer. O mesmo que nos põem em marcha nos traz infelicidade. A insatisfação de sempre querer ir além de onde se está.
Uma multidão se pôs em marcha, em direção ao outro lado. Em direção ao capitalismo. Em direção à ilha . A promessa de algo diferente. De novas realizações. Ao chegar ao outro lado encontraram uma multidão esperando algo diferente. Uma multidão continuava esperando a ilha e esta nova multidão continuou esperando, mas agora, diferente do que tinham no mundo do socialismo real, alguns testemunhavam, alguns na multidão usufruíam a ilha. Se a ilha era proibida no mundo do socialismo real, a ilha é a grande promessa do capitalismo real. O capitalismo real vive por causa da ilha. É a promessa da ilha que faz o sistema funcionar, e é a crença da multidão de que um dia chegarão à ilha que permite fazer esta multidão suportar a pressão.
O filme “A Ilha” não fala de socialismo real. O filme se passa em um futuro onde as pessoas se tornaram proprietárias de seus genes. Onde a vida é uma mercadoria para manter outra vida. A vida de alguns sustenta a vida de outros (até aí nada de novo não é mesmo?). Uns vivem enquanto outros têm a promessa de vida na loteria. Ganhar na loteria significa possibilidade de liberdade. De vida fora do controle. O filme fala de nosso mundo em um mundo que não existe.
A promessa de ter acesso a uma ilha paradisíaca onde é possível viver longe do controle diário e da monotonia repetitiva do dia a dia é o fator que permite as pessoas suportarem. Interessante lembrar a musica: “a gente não quer só comida...” É obvio que a gente não quer só comida, mas na impossibilidade de oferecer inclusão prometem muito mais do que comida mesmo que tenhamos que esperar, esperar e esperar, muitas vezes sem comida.
O filme fala de pessoas que existem para que outros possam viver mais. A ilha é para estas pessoas que existem para os outros e para as quais só existe uma promessa: ser sorteado para a ilha. Como no nosso mundo, uma multidão existe para que outros vivam mais, consumam mais, sonhem mais e até se escravizem mais na promessa do consumo. Como no nosso mundo alguns se tornam desnecessários. Nem a exploração do seu trabalho, do seu corpo é mais necessária. Estes são os excluídos. Uma nova categoria social do século XXI é a dos excluídos. Estes cuja presença se tornou um estorvo. Desnecessários até para serem explorados, escravizados, usados para qualquer outra finalidade.
Uma ficção bem realizada que nos permite pensar no valor da vida. A vida de uns e a vida de outros. Uma vida que vale outra vida e uma vida que não vale sua própria. Vidas são deixadas à sua própria falta de sorte enquanto todo um aparato é criado para manter outra vida que possui recursos para pagar. A vida tem a dimensão do dinheiro que pode comprar respeito, segurança e bem estar. É uma ficção que revela por meio do estranhamento a condição humana na sociedade capitalista.
O que é um clone senão uma vida. O clone vale menos do que o clonado. O mundo contemporâneo é formado por algumas pessoas e uma multidão de clonados cujas vidas não têm o mesmo valor.
Ao final do filme uma aposta no ser humano: a mulher diz ao homem que a ilha somos nós. A possibilidade de felicidade está na humanidade e a possibilidade de libertação está na curiosidade, na dúvida.


Jose Luiz Quadros de Magalhães

7- Discutindo Ideologia 2 - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

A busca do real

Jose Luiz Quadros de Magalhães

Quais são os reais jogos de poder que se escondem atrás das representações do mundo contemporâneo? A representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações sociais, desde as comunidades primitivas até os nossos dias complexos. Representar é significar. Não utilizo o termo aqui como representação política mas representação como reprodução do que se pensa; como reprodução do mundo que se vê e se interpreta e logo como atribuição de significado às coisas. Representação é exibir ou encenar.
A representação pode, portanto, ajudar a compreender as relações de poder ou pode ajudar a encobri-las. O poder do Estado necessita da representação para ser exercido e neste caso a representação sempre mostra algo que não é, algumas vezes do que deveria ser, mas, em geral, propositalmente o que não é. Representação pode, de um lado, ao distorcer a aparência revelar o que se esconde atrás desta e de outra forma encobrir os reais jogos de poder, os reais interesses e as reais relações de poder.
Várias são as formas de dominação. Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos significantes . Tem poder quem é capaz de tornar as coisas naturais, “a automatização das coisas engole tudo, coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo da guerra.” Diariamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida social e privada nos leva a automação a que se refere Ginsburg. A automação nos impede de pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há porque pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonha-lo. Basta repetir o roteiro previamente escrito e repetido pela maioria. Tem poder quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se eu tenho certeza não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza.
A dominação passa pela simplificação das coisas: o bem e o mal; darth vader e lucky skywalker; a democracia e o fundamentalismo; o capitalismo e o comunismo. Duas técnicas comuns neste processo de dominação são: a nomeação de grupos, criando identidades ou identificações e a explicação de uma situação complexa por meio de um fato particular real. O problema não é que o fato particular seja real, o problema consiste na explicação de algo complexo com um exemplo particular que mostra uma pequena parte do todo que ele quer explicar. Comum assistir a este tipo de geração de preconceito na mídia, diariamente. Um exemplo comum diz respeito a recorrente crítica ao estado de bem estar social: o estado de bem estar social tem uma história longa e complexa, que apresentou e apresenta fundamentos, objetivos e resultados diferentes em momentos da história diferentes e em culturas e países diferentes. Entretanto é comum ouvirmos, inclusive de intelectuais, que o estado social é assistencialista (ou pior clientelista) e logo gera pessoas preguiçosas que não querem trabalhar.
O processo ideológico distorce a realidade e cria certezas construídas sobre fatos pontuais que procuram explicar uma situação complexa. O elemento de dominação presente procura construir certezas na opinião pública uma vez que a afirmação vem acompanhada de um fato real que a pessoa pode constatar e a televisão o faz ao trazer a imagem. Portanto, a partir de uma situação que efetivamente ocorre mas que de longe não pode ser utilizada para explicar a complexidade do tema “estado de bem estar social”, quem detém a mídia constrói certezas e as certezas são o caminho curto para o preconceito. Quanto mais certezas as pessoas tiverem, quanto mais preconceituosas forem as pessoas, mas facilmente elas serão manipuladas por quem detém o poder de criar estas “verdades”. A certeza é inimiga da liberdade de pensamento e da democracia enquanto exercício permanente do dialogo. Quem detém o poder de construir os significados de palavras como liberdade, igualdade, democracia, quem detém o poder de criar os preconceitos e de representar a realidade a seu modo, tem a possibilidade de dominar e de manter a dominação.
Entretanto, este poder não é intocável. A dominação tem limites e estes limites não são ficções cinematográficas.
Este poder encoberto pela representação distorcida (propositalmente distorcida) funda-se em ideologias, em mentiras. A grande mentira na qual estamos mergulhados é a mentira do mercado, da liberdade econômica fundada numa naturalização da economia como se esta não fosse uma ciência social mas uma ciência exata. A matematização da economia sustenta a insanidade vigente.
A força da ideologia se mostra quando ela é capaz de fazer com que as pessoas, pacificamente, concordem com o assalto privado aos seus bolsos. É impressionante a incapacidade de reação contra o sistema financeiro que furta do trabalhador diariamente sem que este esboce alguma reação. A falta de reação pode se justificar pela incapacidade de perceber a ação ou da aceitação da ação como algo natural. Tudo isto encontra fundamento em uma grande capacidade de geração de representações nas quais a pessoas passam a viver. Viver artificialmente em um mundo que não existe: matrix.
Se as pessoas acreditam que a história acabou, que chegamos a um sistema social, constitucional e econômico para o qual não tem alternativa, pois ele é natural, não há saída. Para estas pessoas, a alternativa que está gritando em seus ouvidos não é ouvida, a alternativa que está em seu campo de visão não é percebida pela retina.
Se a economia não é mais percebida como ciência social, se o status de suas conclusões passa para o campo da ciência exata, logo a economia não pode mais ser regulada pelo estado, pelo Direito, pela democracia. Não posso mudar uma equação física ou matemática com uma lei. De nada vai adiantar. A matematização da economia é a grande mentira contemporânea. Se a economia é uma questão de natureza, se a economia não é história, quem pode decidir sobre a economia são os sábios e jamais o povo. Isto ajuda a entender, por exemplo, como um governo que se pretendia de esquerda adota uma política econômica conservadora de direita. Esta é a ideologia que sustenta um mundo governado pelo desejo cego de poder, dinheiro e sexo. A razão não manda no mundo, jamais mandou. O desejo conduz o ser humano. O problema não é o desejo comandar. O problema é que não são os nossos desejos que comandam, mas os desejos de poucos que nos fazem acreditar que os seus desejos são os nossos desejos.
A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder econômico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek “a luta pela hegemonia ideológico-politica é por conseqüência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas.” Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos mas são direitos naturais quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Se afirmamos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história e logo, o conteúdo destes direitos é construído pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto no qual todos possam fazer parte. Ao contrário, se afirmamos estes direitos como naturais fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro. Este outro irá dizer o que é natural. Quem diz o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza? Presidentes do Banco Central?

6- Discutindo Ideologia 1 - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

IDEOLOGIA: O ENCOBRIMENTO DO REAL NA CONTEMPORANEIDADE
Professor Doutor Jose Luiz Quadros de Magalhães

Várias são as formas de dominação. Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos significantes. Tem poder quem é capaz de tornar as coisas naturais. Diariamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida social e privada nos leva a automação. A automação nos impede de pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há porque pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonhá-lo. Basta repetir o roteiro previamente escrito e repetido pela maioria. Tem poder quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se eu tenho certeza não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza.
O nosso mundo convive, hoje, com formas poderosas e extremamente concentradas de poder. Vivemos um embate nos meios de comunicação para a construção de verdades que sustentam estes poderes. Nunca vivemos, de forma tão agressiva, a manipulação da opinião e das noticias como a que hoje assistimos na grande mídia brasileira. Por este motivo é fundamental estudarmos os mecanismo ideológicos de manipulação e encobrimento do real. Quem detém o poder de construir os significados de palavras como liberdade, igualdade, democracia, quem detém o poder de criar os preconceitos e de representar a realidade a seu modo, tem a possibilidade de dominar e de manter a dominação.
Este Poder, encoberto pela representação distorcida (propositalmente distorcida), funda-se em ideologias, em mentiras. Um exemplo que podemos citar se refere a uma das grandes mentiras contemporâneas: o mercado, ou a vitória de um sistema que se mostra como único e que se funda na mentira da matematização da ciência econômica.
A força da ideologia se mostra quando ela é capaz de fazer com que as pessoas, pacificamente, aceitem as coisas como elas são, por mais absurdas que pareçam. É impressionante a incapacidade de reação, a apatia e a acomodação vigentes. A falta de reação pode se justificar pela incapacidade de perceber o real ou então da aceitação deste real como algo natural.
Se as pessoas acreditam que a história acabou, que chegamos a um sistema social, constitucional e econômico para o qual não tem alternativa, pois ele é natural, pois ele é o único possível, ou por que ele é o vitorioso, não há saída. Para estas pessoas, a alternativa que está gritando em seus ouvidos não é ouvida, a alternativa que está em seu campo de visão não é percebida.
Vamos, de forma muito resumida, procurar entender o processo de construção de uma ideologia (de um encobrimento ou de uma mentira) por meio deste exemplo. Se a economia não é mais percebida como ciência social, se o status de suas conclusões passa para o campo da ciência exata (o que é mentira), logo a economia não pode mais ser regulada pelo Estado, pelo Direito, pela democracia. Não posso mudar uma equação física ou matemática com uma lei. De nada vai adiantar. A matematização da economia é a grande mentira contemporânea. Se a economia é uma questão de natureza, ou se a economia é uma questão de matemática, se a economia não é história, quem pode decidir sobre a economia são os economistas matemáticos (escondidos por uma falsa neutralidade cientifica) por meio de seus cálculos, jamais o povo, jamais a democracia, jamais o direito. Isto ajuda a entender o processo crescente de indiferenciação dos projetos econômicos dos partidos políticos e dos governos. Em muitos países do mundo há um crescente e perigoso desinteresse pela democracia representativa, com altíssimos índices de abstenção nas eleições.
Esta é a ideologia que sustenta um mundo governado pela criação permanente de demanda. A razão não manda mais no mundo, mas um desejo desenfreado de consumo. O problema não é o desejo comandar. O problema é que não são os nossos desejos que comandam, mas os desejos de poucos que nos fazem acreditar que os seus desejos são os nossos desejos.
O primeiro passo para revelar o real encoberto deve ser em direção à história. Precisamos perceber que somos seres históricos que vivemos em um universo histórico em permanente processo de transformação, e que nós, como seres humanos racionais temos a capacidade de fazer a nossa história. Nós podemos fazer de nós mesmos e de nossa sociedade o que nós quisermos. Mas para isto precisamos voltar a acreditar na história. Não estamos condenados a nada.

5- Discutindo o Estado Social - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

O necessário resgate dos direitos sociais

Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães

Para nós no Brasil, que não vivemos, ainda, um Estado Social efetivo, que fosse capaz de oferecer saúde, educação e previdência de qualidade para todos, o caminho para a inclusão e efetiva participação do nosso povo como cidadãos é o da fragmentação coordenada do poder, a descentralização radical de competências fortalecendo os estados e principalmente os municípios, assim como tornar permeável o poder, com a criação de canais de participação popular permanentes, como os conselhos municipais, o orçamento participativo e outros mecanismos de participação, assim como o incentivo permanente a organização da sociedade civil, e o fortalecimento dos meios alternativos de comunicação como as rádios, jornais e televisões comunitárias. Podemos, e assim estamos fazendo, construir uma democracia social e participativa a partir do poder local.
No Brasil, menos de um ano após a promulgação da Constituição democrática e social de 1988, assistimos o início do desmonte da nova ordem econômica e social prevista pela Constituição. Nesse mesmo momento, como suporte teórico do desmonte do estado social, cresceu a crítica simplificadora e reducionista, importada dos Estados Unidos e de alguns autores europeus, proveniente do novo pensamento neoliberal e neo conservador e ratificada por parte nova esquerda (como o novo trabalhismo de Tony Blair). Esta crítica ao estado social que vem dar suporte ao seu desmonte, aponta o caráter assistencialista como gerador de um exército de clientes que se amparam no estado, não mais produzindo, não mais criando. Criticam o estado social argumentando que este retira espaços de escolha individual gerando não cidadãos, uma vez que incentiva as pessoas a viverem às custas do estado. Esta crítica extremamente simplificadora e parcial, que toma uma parte de um problema pontualmente localizado no tempo e no espaço como sendo regra para explicar a crise do estado social, ganhou força inclusive à esquerda, o que muito contribuiu para a desconstrução do estado de bem estar social em diversas partes do globo. Segundo este discurso simplificador o estado não deve sustentar os que não querem trabalhar pois esta postura do estado incentiva a expansão dos não cidadãos e sobrecarrega os que trabalham e o setor produtivo com uma alta carga tributária. Logo, pobre deve trabalhar para ter acesso ao que necessita e como não há trabalho para todos, (nem mesmo o trabalho indesejável e mal pago destinado a estes excluídos) aumenta a população carcerária. O Estado Social assistencialista é substituído pelo Estado Penal da era neoliberal. O criticado cliente do assistencialismo da segurança social foi transformado em cliente do sistema penal da segurança policial.
Neste novo paradigma a pobreza não decorre das barreiras sociais e econômicas mas sim do comportamento do pobre. O Estado não deve atrair as pessoas a uma conduta desejável através de reconhecimento mas deve punir os que não agem como o desejado. O não trabalho passa a ser um ato político que exige o recurso a autoridade. O estado social passa a ser visto como permissivo pois não exigia uma obrigação de comportamento a seus beneficiários. A direita conservadora mais reacionária e a autoproclamada vanguarda da nova esquerda dão eco a vozes como a de Charles Murray que afirma que as uniões ilegítimas e as famílias monoparentais seriam a causa da pobreza e do crime, e por sua vez, o estado social com sua política permissiva incentivava estas práticas. Além disto, a classe média produtiva se revoltava cada vez mais com a obrigação de pagar tributos para sustentar estas práticas. Esta absurda tese sem nenhuma base científica defendia cortes radicais nos orçamentos sociais e a retomada, por parte da polícia, dos bairros antes operários, hoje ocupados pelos clientes preferenciais do sistema social que tem de deixar de existir.
O resultado destas políticas (tanto da direita conservadora como da nova esquerda) é conhecido nosso no século XXI: mais exclusão, mais concentração econômica, mais violência, mais controle social, mais desemprego, menos estado de bem estar e mais estado policial. O mais grave é o fato de que, ainda hoje, vozes que se dizem democráticas continuam sustentando o mesmo discurso contra o estado social, defendendo uma sonhada e desejável democracia dialógica construída pela sociedade civil livre, sem perceber que os novos excluídos, social e economicamente, estão excluídos do diálogo democrático, passando a fazer parte da crescente massa de clientes do sistema penal em expansão.
Entretanto, nos últimos anos a situação começa a mudar. Importante notar que a sociedade civil, que hoje se organiza em nível local e global, e se comunica, organiza e age local e globalmente, em muitas manifestações resiste ao desmonte do Estado Social de direito e das conquistas dos direitos sociais buscando uma nova ordem onde não haja exclusão sócio-econômica.
Com menos vigor e contundência que os movimentos sociais, mas com importante papel no cenário de resgate de um paradigma social, o discurso e a prática de novos governos democráticos na América Latina demonstram uma retomada do papel do Estado na economia e na questão social, abandonando gradualmente o modelo neoliberal.
O caso brasileiro é um grande exemplo. Na última década o Brasil apresentou um desenvolvimento social expressivo, maior até que o desenvolvimento econômico. Os direitos sociais e econômicos passaram a ser objeto de políticas públicas que começaram a mudar a realidade de extrema desigualdade que colocava o país entre os mais injustos do planeta.
Esta mudança nas políticas públicas veio acompanhada de uma nova postura do Poder Judiciário e do Ministério Público que passaram atuar de forma efetiva na defesa e efetivação dos direitos sociais.
Parece que finalmente caminhamos para a retomada definitiva de um Estado Social e Democrático de Direito, fundado na efetividade de direitos sociais como saúde e educação públicas e gratuitas; moradia e segurança social assim como direitos econômicos como emprego com justa remuneração, acesso à terra e ao bem estar.
É importante lembrar que na segunda metade século XX a humanidade construiu uma nova compreensão dos Direitos Humanos. Superando a antiga e reducionista percepção liberal destes direitos, que consideravam apenas os direitos individuais de liberdade e propriedade como direitos fundamentais, as Nações Unidas passam a adotar a compreensão da indivisibilidade dos direitos humanos fundamentais. Isto significa que não é possível liberdade sem dignidade, ou em outras palavras, para que as pessoas possam efetivamente usufruir de suas liberdades individuais e políticas, e necessário que estejam livres da miséria, é necessário que tenham acesso a uma vida digna com alimentação; moradia; educação; saúde e segurança social.
Não há liberdade na miséria.

4- Discutindo Giorgio Agambem - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

GIORGIO AGAMBEM
Profanações


JOSE LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES

O pensador Giorgio Agamben faz uma importante reflexão a respeito da construção das representações e da apropriação dos significados, o que o autor chama de sacralização como mecanismo de subtração do livre uso das pessoas as palavras e seus significados; coisas e seus usos; pessoas e sua significação histórica.
O Autor começa por explicar o mecanismo de sacralização na antiguidade. As coisas consagradas aos deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas. Há uma subtração do livre uso e do comércio das pessoas. A subtração do livre uso é uma forma de poder e de dominação. Assim consagrar significa retirar do domínio do direito humano sendo sacrilégio violar a indisponibilidade da coisa consagrada.
Ao contrário profanar significa restituir ao livre uso das pessoas. A coisa restituída é pura, profana, liberada dos nomes sagrados, e logo, livre para ser usada por todos. O seu uso e significado não estão condicionados a um uso especifico separado das pessoas. A coisa restituída ao livre uso é pura no sentido que não carrega significados aprisionados, sacralizados.
Concebendo a sacralização como subtração do uso livre e comum, a função da religião é de separação. A religião para o autor não vem de “religare”, religar, mas de “relegere” que significa uma atitude de escrúpulo e atenção que deve presidir nossas relações com os deuses. A hesitação inquietante (ato de relire) que deve ser observada para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une os homens aos deuses mas sim aquilo que quer mantê-los separados. A religião não é religião sem separação. O que marca a passagem do profano ao sagrado é o sacrifício.
O processo de sacralização ocorre com a junção do rito com o mito. É pelo rito que simboliza um mito que o profano se transforma em sagrado. Os sacrifícios são rituais minuciosos onde ocorre a passagem para outra esfera, a esfera separada. Um ritual sacraliza e um ritual pode devolver ou restituir a coisa (idéia, palavra, objeto, pessoa) à esfera anterior. Uma forma simples de restituir a coisa separada ao livre uso é o toque humano no sagrado. Este contágio pode restituir o sagrado ao profano.
A função de separação, de consagração, ocorre nas sociedades contemporâneas em diversas esferas onde o recurso ao mito juntamente com rito cumpre uma função de separação, de retirada de coisas, idéias, palavras e pessoas do livre uso, da livre reflexão, da livre interlocução, criando reconhecimentos sem possibilidade de diálogo. A religião como separação, como sacralização, há muito invadiu a política, a economia e as relações de poder na sociedade moderna. O capitalismo de mercado é uma grande religião que se afirma com a sacralização do mercado e da propriedade privada. As discussões que ocorrem na esfera econômica são encerradas com o recurso ao mito para impor uma idéia sacralizada a toda a população. No espaço religioso do capitalismo não há espaço para a racionalidade discursiva pois qualquer tentativa de questionar o sagrado é sacrilégio. Não há razão e sim emoção no espaço sacralizado das discussões de política econômica. Por isto os proprietários reagem com raiva à tentativa de diálogo, pois para eles este diálogo é um sacrilégio, questiona coisas e conceitos sacralizados há muito tempo.
Este recurso está presente no poder do estado e em rituais diários do poder: a posse de um juiz, de um presidente, a formatura, a ordenação de padres e outros rituais mágicos transformam as pessoas em poucos minutos, separando a pessoa de antes do ritual para uma nova pessoa após o ritual. Isto ganha tanta força no mundo contemporâneo que varias pessoas que freqüentam um curso superior hoje não pretendem adquirir conhecimentos, o processo de passagem por um curso não é para adquirir conhecimentos mas para cumprir créditos (até a linguagem é econômica) para no final passar pelo rito que o transformará de maneira mágica em uma nova pessoa. O objetivo é o rito, a certificação da passagem por meio do diploma e não a aquisição do conhecimento. O espaço universitário está sendo transformado pela religião capitalista em algo mágico, onde o conhecimento a ser adquirido no decorrer de um processo que deveria ser transformador perde importância em relação ao rito (a formatura) e o mito (o diploma).
Como resistir a perda da liberdade. Como resistir a sacralização das relações sociais, econômicas e logo a perda da possibilidade de fazer diferente, de fazer livremente o uso das coisas, das palavras, das idéias? Como se opor à subtração das coisas ao livre uso? Como se opor a sacralização de parte importante de nosso mundo, de nossa vida? A palavra que Agambem usa para significar esta possibilidade de libertação é “negligência” que pode permitir a profanação da coisa sacralizada.
Não é uma atitude de incredulidade e indiferença que ameaça o sagrado, isto pode até fortalecê-lo. Tampouco o confronto direto. O que ameaça ao sagrado é uma atitude de negligência. Negligência entendida como uma atitude, uma conduta simultaneamente livre e distraída face às coisas e seus usos. Não é ignorar a coisa sacralizada mas prestar atenção na coisa sem considerar o mito que sustenta sua sacralização. Negligência neste caso significa desligar-se das normas para o uso. Adotar um novo uso descompromissado de sua finalidade sagrada, ou seja, de sua função de separar. Logo profanar significa liberar a possibilidade de uma forma particular de negligencia que ignora a separação, ou antes, que faz uso particular da coisa.
A passagem do sagrado para o profano pode corresponder a uma reutilização. Muitos jogos infantis (jogo de roda; balão; brincadeiras de roda) derivam de ritos, de cerimônias para a sacralização como uma cerimônia de casamento. Os jogos de sorte, de dados, derivam das práticas dos oráculos. Estes ritos separados de seus mitos ganharam um livre uso para as crianças. O poder do ato sagrado é a consagração do mito (a estória) e o rito que o reproduz. O jogo (negligência) desfaz esta ligação. O rito sem o mito vira jogo, é devolvido ao livre uso das pessoas. O mito sem o rito perde o caráter sagrado, vira uma estória. Importante lembrar que negligência não significa falta de atenção. Uma criança quando joga tem toda a atenção no jogo. Ela apenas negligencia o uso sagrado ou o mito que fundamenta o rito. A criança negligencia a proibição.
Devemos dessacralizar a economia, o direito, a política devolvendo estas esferas ao livre uso do povo. Construir novos usos livres.
Numa época onde a dessacralização é fundamental diante da dimensão que a sacralização tomou, as pessoas, em meio ao desespero, buscam um retorno ao sagrado em tudo, O jogo como profanação, como uso livre está hoje decadente. As pessoas parecem incapazes de jogar e isto se demonstra com a proliferação de jogos prontos, sacralizados, com regras herméticas, onde os novos usos são quase impossíveis ou invisíveis. Os jogos televisados como grandes espetáculos de massa acompanham a profissionalização e a mitificação dos jogadores (os ídolos).
A secularização dos processos de sacralização que dominam as sociedades contemporâneas permite com que as forças de separação permaneçam intactas sendo apenas mudadas de lugar. A profanação de maneira diferente neutraliza a força que subtrai o livre uso, neutraliza a força do que é profanado. Tratam-se de duas operações políticas: a primeira mantém e garante o poder por meio da junção do mito e rito agora em outro espaço; a segunda desativa os dispositivos do poder; separa o rito do mito permitindo o livre uso.
O capitalismo é mostrado por vários autores como um espaço de secularização dos processos de sacralização. Max Weber mostra o capitalismo como secularização da fé protestante; Benjamin demonstra que o capitalismo se constitui em um fenômeno religioso que se desenvolve de forma parasitária a partir do cristianismo.
Para Giorgio Agambem o capitalismo tem três fortes características religiosas específicas:
a) É uma religião do culto mais do que qualquer outra. No capitalismo tudo tem sentido relacionado ao culto e não em relação a um dogma ou idéia. O culto ao consumo; o culto a beleza; a velocidade; ao corpo; ao sexo; etc.
b) É um culto permanente sem trégua e sem perdão. Os dias de festas e de férias não interrompem o culto, mas, ao contrário o reforça.
c) O culto do capitalismo não é consagrado à redenção ou a expiação da falta uma vez que é o culto da falta. O capitalismo precisa da falta pra sobreviver. O capitalismo cria a falta para então supri-la com um novo objeto de consumo. Assim que este objeto é consumido outra falta aparece para ser suprida. O capitalismo talvez seja o único caso de um culto que ao expiar a falta mais torna a falta universal.

O capitalismo, por ser o culto, não da redenção e sim da falta, não da esperança, mas do desespero, faz com que este capitalismo religioso não tenha como finalidade a transformação do mundo mas sim sua destruição.
Existe no capitalismo um processo incessante de separação única e multiforme. Cada coisa é separada dela mesma não importando a dimensão sagrado/profano ou divino/humano. Ocorre uma profanação absoluta sem nenhum resíduo que coincide com uma consagração vazia e integral. Ou seja, o capitalismo profana as idéias, objetos, nomes não para permitir o livre uso mas para ressacralizar imediatamente. Um automóvel não é mais um objeto que é usado para o transporte mas é um objeto de desejo que oferece para quem compra status, poder, velocidade, emoção, reconhecimento. O consumidor em geral não compra o bem que pode transporta-lo. O que o consumidor compra não pode ser apropriado pois o que é consumível é inapropriável. O consumidor compra o status, o reconhecimento, a ilusão de poder, a velocidade, e isto não pode ser apropriado, isto desaparece na medida em que é consumido. Trata-se de um fetiche incessante. Ao conferir um novo uso a ser consumido, qualquer uso durável se torna impossível: está é a esfera do consumismo.
Na lógica da sociedade de consumo a profanação torna-se quase impossível pois o que se usa não é o uso inicial do objeto mas o novo uso dado pelo capitalista. Logo o que se consome se extingue e desaparece e, portanto, não pode ser dado novo uso. Não há possibilidade de liberdade dentro deste sistema. O novo uso da liberdade exige enxergarmos este processo de aprisionamento da lógica capitalista consumista.
O consumo pode ser visto como uso puro que leva a destruição da coisa consumida. O consumo é, portanto, a negação do uso uma vez que há a negação do uso que pressupõe que a substancia da coisa fique intacta. No consumo a coisa desaparece no momento do uso.
A propriedade é uma esfera de separação. A propriedade é um dispositivo que desloca o livre uso das coisas para uma esfera separada que se converte no estado moderno em direito. Entretanto o que é consumido não pode ser apropriado. Os consumidores são infelizes nas sociedades de massa não apenas porque eles consomem objetos que incorporam uma não aptidão para o uso, mas também, sobretudo, porque eles acreditam exercer sobre estas coisas consumidas o seu direito de propriedade. Isto é insuportável e torna o consumo interminável. Como não me aproprio do que consumi tenho que consumir de novo e de novo para alimentar a ilusão de apropriação. Está escravidão ocorre pela incapacidade de profanar o bem consumido e pela incapacidade de enxergar o processo no qual o consumidor está mergulhado até a cabeça.


Jose Luiz Quadros de Magalhães

domingo, 27 de junho de 2010

3- Crise - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

Crise

José Luiz Quadros de Magalhães


            Consultando dicionários encontramos a palavra crise ligada a significados de mudança brusca, conflito anormal e grave. A ideia de anormalidade leva a ideia de transitoriedade. Em outras palavras não se pode viver em crise uma vez que o caráter de anormalidade intrínseco a ideia de crise desapareceria. No dicionário encontramos a significado de crise vinculado a súbita alteração no curso de uma doença: assim, a crise, se não controlada, pode levar a morte e com a morte a crise desaparece, pois não há mais sistema para estar em crise.
            Podemos nos perguntar quanto tempo a crise precisa permanecer para deixar de ser crise e virar padrão de normalidade. Uma ou duas gerações vivendo em situação de guerra; insegurança; medo; bastaria para afirmarmos que a crise do oriente médio não é crise, mas sistema construído com base nos problemas que o sustentam? Em outras palavras, não há crise do sistema político, social e internacional uma vez que os sintomas que demonstram a crise não são excepcionais, não representam uma mudança de curso abrupta, não levarão ao fim do sistema pois são a essência do sistema. O sistema se alimenta do que se chamou de crise, o que nada mais é do que a normalidade do sistema.
            Se os sintomas que representam a crise no campo do semblante, da representação, desaparecerem, o sistema perece: a solução da crise não resolve o problema do sistema e sim desintegra o próprio sistema.
            Se, desaparecido os sintomas, que na representação do sistema são identificados como crise, desaparece o sistema, não estamos diante de uma crise e sim de um sistema onde a normalidade é o sintoma chamado de crise para encobrir a essência do sistema. Em outras palavras, chamando a normalidade do sistema de crise, ao se resolver à crise desaparece o sistema. Logo não há crise e sim condição de existência do sistema. Este talvez possa ser um critério para identificar a crise. A crise não pode ser essência do próprio sistema que ela ameaça. Não teríamos assim um critério temporal para a duração da crise e sim um critério estrutural.
            No direito, a crise é combatida com mecanismos constitucionais que chamamos de estado de sitio, estado de emergência, estado de defesa ou estado de exceção. A ideia de exceção confere a crise o caráter de provisoriedade, algo que tem de ser eliminado pois ao contrário o sistema perece. Diante do recrudescimento do capitalismo e com ele o egoísmo; o individualismo e o materialismo consumista percebemos o aumento da exclusão e da intolerância com a perda dos referenciais de comunidade. As conseqüências são o aumento da exclusão, da desigualdade, nos níveis nacional e internacional, e logo o que é considerado crime no espaço local e terrorismo no plano internacional. Criminalidade e terrorismo são sinais de crise ou recrudescimento do sistema? A resposta pode ser encontrada quando nos perguntamos se estamos em um estado de exceção permanente.
            Se estamos mergulhando em um estado de exceção permanente, com mais polícia, mais controle social, mais câmeras, presídios e penas, podemos suspeitar que não há crise mas sim que estamos diante da face do sistema. Ele exclui, é inseguro, depende do medo, da opressão, do desemprego, da desigualdade.
            Um exemplo da confusão de crise com a essência do sistema pode ser dado na cidade industrial capitalista. Nela as situações de desordem e ilegalidade superam em média a situação de ordem e legalidade. A cidade ilegal supera a cidade legal. No Brasil a cidade ilegal chega a 60% dos espaços urbanos. A cidade está em crise ou a cidade capitalista construída em nosso sistema periférico é essencialmente o espaço de incluídos e excluídos?. O máximo da ordem da cidade capitalista é conseguida quando são separados claramente espaços distantes para excluídos e incluídos: Paris de Haussman e Napoleão III (a reforma urbana de Paris no século XIX) ou Brasília (a cidade do futuro).
            Estudando especificamente o quadro urbano brasileiro o sistema não está em crise: a essência das nossas metrópoles industriais capitalistas é a geração de ilegalidade e desordem. Quanto mais o sistema evolui mais exclusão e desordem e mais presídios e direito penal fingindo solucionar o que não tem solução no sistema. A solução é o fim do sistema. Este sistema estará em crise quando os valores comunitários conseguirem se destacar aos valores individualistas. O sistema estará em crise quando as pessoas em comunidade rejeitarem a ordem e construírem alternativas. Esta pode ser a crise do sistema. A crise radical do sistema é a solução. A solução está na crise radical do sistema.
            Aí aparece uma grande confusão: explicando o jogo de palavras nas quais confundem representação e realidade, jogos simbólicos onde o semblante confunde e encobre o real, esfumaça a visão e distorce a compreensão, a crise do sistema econômico, urbano e legal não é crise, não é temporária, ela é o próprio sistema e logo se pretende permanente. O agravamento da crise não é ameaça ao fim do sistema mas sim sua radicalização. Desta forma a crise não é crise se não ameaça, se não é temporária. A verdadeira crise do sistema é a negação da ordem da desordem, a negação da exclusão, é a negação dos seus valores intrínsecos, ou seja, a negação do individualismo, do egoísmo, do consumismo, da exclusão e do materialismo. O sistema verdadeiramente estará em crise quando um sistema plural, diverso e democrático desafiar a ordem da desordem. A forma de colocar o sistema em crise é gerar mais solidariedade, e acabar com a lógica inclusão versus exclusão, ou seja, criar um espaço onde haja lugar para todos e cada um, um espaço de diversidade individual e coletiva. A maneira de colocar o sistema em crise é negar os seus valores essenciais. Negar o consumo, negar a exclusão, negar a prisão em nome da liberdade e opor a liberdade ao direito penal e o estado penitenciário. A crise do sistema é a negação do pensamento binário que subalterniza e exclui. Não há mais anormais pois não há mais padrão de normalidade. A ruptura com o sistema que se chama crise não ocorre com a normalização de algo considerado anormal ou a legalização de algo considerado ilegal assim como a transformação em ilegal de algo legal e normal de algo anormal. Isto seria manter o dispositivo nós versus eles. Isto significa manter a lógica hegemônica binária de subalternização do outro. Quem diz o que é normal? Quem diz o que é legal? Quem tem força para dizê-lo.
            Poderia dizer que a crise radical do sistema é o que mais desejo, pois pode ser a possibilidade de construir algo diferente: melhor do que construir um lugar diferente é a possibilidade de construir um caminho diferente. No lugar de caminharmos em círculos buscando solução onde só há reforço do sistema que se chama crise (mas que não é crise) podemos buscar outros caminhos em varias outras direções. Está será a crise do sistema: quando pararmos de andar em círculos; pararmos de praticar atos que só reforçam o sistema e tivermos a coragem de fazer diferente. Nossa possibilidade de liberdade está na crise, na crise radical, na crise sem volta, na crise que destrua definitivamente o sistema. Iremos construir outra coisa, pode ser até uma rosa com um outro nome; corremos riscos, a opressão sempre ronda disfarçada, mas quem sabe construímos coletivamente outro significado para a liberdade: um significado livre pois construído democraticamente por meio de processos dialógicos não hegemônicos. O mais importante, entretanto, é que estaremos caminhando, estaremos tentando, e ser for necessário, e será, teremos outra crise radical como esperança de liberdade e justiça.

sábado, 26 de junho de 2010

2- A sociedade do controle - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

Controle não é solução.
Liberdade X segurança

José Luiz Quadros de Magalhães

Nos últimos anos de experiência neoliberal no mundo, temos assistido ao aumento da criminalidade que acompanha os índices de aumento da concentração de riquezas.
Para a compreensão do problema devemos ter uma correta percepção da história, para entendermos que o que agora vivemos tem bases históricas que ajudam a revelar os interesses que mantém este sistema.
Vamos assim perceber que o que se convencionou chamar de neoliberalismo é um movimento do capital conservador (o grande capital) que procura, com a desregulamentação e logo o afastamento do Estado da economia, recriar uma condição que permitiu aos economicamente mais fortes concentrarem ainda mais riquezas no século dezenove e que agora ao se repetir, leva este processo de concentração ao seu limite máximo em nível global.
É importante lembrar, que alguns liberais, reconhecendo a impossibilidade de manter a livre iniciativa e livre concorrência sem uma regulamentação estatal, chamam o Estado a intervir no combate ao capital conservador criando mecanismos contra a concentração, fato que encontra como marco inicial a lei Sherman em 1890.
Este tema é tratado com maiores detalhes em textos de minha autoria que se encontram na net. Lembremos que a base do problema atual de exclusão, e como conseqüência o aumento de criminalidade, tem bases econômicas.
No século XIX, ocorre também o surgimento de um urbanismo de controle, com a reforma urbana de Paris. Podemos dizer que a sociedade panótica tem como marco inicial principal a reforma de Paris na época do prefeito Barão Hausmann no 2 Império, época de Napoleão III.
Neste período a Europa vivia um processo de concentração econômica que junto com o processo acelerado de substituição da manufatura pela que maquinofatura, levou ao inchamento dos centros urbanos gerando uma exclusão social também em larga escala. Todas as pessoas que chegavam nos grandes centros europeus, e tomamos Paris como o exemplo, se aglomeravam no centro das cidades, a antiga cidade medieval. O centro de Paris era o espaço dos excluídos, sejam empregados ou desempregados. Com a exclusão social crescendo devido ao processo de concentração econômica, começam a ocorrer as primeiras rebeliões sociais, manifestações públicas de insatisfação e reivindicações coletivas por pão e trabalho. Também com a exclusão aumenta a criminalidade, como mecanismo de busca de sobrevivência ou de riqueza, para aqueles muitos que não encontravam o que necessitavam ou desejavam através do mercado.
Com estes problemas o Estado Liberal, originariamente abstencionista perante as questões sociais e econômicas, tem como resposta a ação da polícia. Ou seja, perante uma questão de origem econômica e social (a crise do capitalismo liberal) são adotadas políticas de criminalização dos pobres, controle e repressão. È óbvio que um problema sócio-econômico não se resolverá com polícia.
Os pobres incomodam porque são a prova visível e diária da ineficácia do sistema liberal. Logo é fundamental convencer as pessoas que a única causa da pobreza é a incompetência do pobre. Da mesma forma a causa da criminalidade é desconectada da realidade sócio-economica. A causa da criminalidade será então a maldade ou a doença mental (até hoje os filmes norte-americanos insistem nesta tese insustentável).
É obvio que o aumento do controle não pode resolver problema algum. O aumento dos mecanismos de controle pode apenas oferecer, durante algum tempo uma sensação de segurança falsa, que logo será comprometida.
Como a causa do problema não é atacada a concentração de riqueza gerando desigualdade se agravava. Assim, à medida que aumentava a concentração econômica foram adotadas medidas mais sofisticadas de controle, uma vez que não interessava as pessoas no poder do Estado mudar uma estrutura econômica extremamente favorável aos seu interesses econômicos.
A segunda medida de controle sobre as pessoas foi a reforma urbana, com a criação de um urbanismo de controle visual de exclusão. A Paris medieval de ruas estreitas, onde era fácil se esconder da polícia e fazer barricadas para enfrentar o poder público, foi destruída, e no seu lugar foram construídos os largos bulevares e as largas avenidas, onde o pobre é facilmente localizado e controlado. Os miseráveis que habitavam o centro foram mandados para a periferia da periferia, onde além de dispersos (o que dificulta sua organização) são mais facilmente controlados. A este urbanismo de controle soma-se uma arquitetura monumental, que exclui de sua redondeza o miserável, oprimido pela ostentação.
Estava inaugurada a sociedade de controle visual. É importante mais uma vez lembrar que isto não resolve o problema de segurança para ninguém, pois o problema que gera insatisfação e violência está em outra esfera que não é policial, urbanística ou arquitetônica, mas sim sócio-econômica, e agora cultural.
Ao lembrarmos esta história, percebemos que algumas políticas públicas contemporâneas ainda insistem nas mesmas mentiras de 140 anos atrás. Uma mentira conveniente para alguns.
A cidade de Belo Horizonte não foge a regra. Não só o seu projeto urbano foi, de longe, inspirado na reforma urbana de Paris do século XIX, como hoje querem trazer o controle cada vez mais sofisticado para as ruas da cidade.
Como a exclusão continua e como os que estão no poder muitas vezes ganham com o sistema desigual (e logo não querem mudar o sistema), aumenta cada vez mais o controle. As pessoas que têm dinheiro moram em edifícios cercados por cercas elétricas, alarmes e câmeras de controle, ou em verdadeiras cidades medievais muradas enquanto as pessoas sem dinheiro são deixadas a sua própria sorte na cidade moderna.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

1- Direito a moradia em Belo Horizonte - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

Dandara, Camilo Torres e Irmã Dorothy: comunidades que lutam por um direito constitucional.
Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães
Mestre e Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais

Em Belo Horizonte, MG, nos últimos 2,6 anos três comunidades estão se destacando na luta por um direito constitucional básico: o direito à moradia. Trata-se das Comunidades Camilo Torres (142 famílias) e Irmã Dorothy (130 famílias), no Barreiro; e Dandara (887 famílias), no Céu Azul, região da Nova Pampulha. Ao todo são 1.159 famílias que lutam pelo reconhecimento de claro direito constitucional. São importantes movimentos sociais que ajudam a tornar efetivo o texto constitucional para todas as pessoas.
Segundo dados do IBGE e Fundação João Pinheiro, em Belo Horizonte, hoje, existem aproximadamente 75 mil imóveis ociosos entre terrenos e edificações, contra um déficit habitacional de 55 mil famílias sem-casa. Na região metropolitana da capital mineira há mais de 173 mil famílias sem-casa. A Prefeitura de Belo Horizonte assumiu compromisso de construir apenas 300 moradias por ano e exige respeito a uma fila de quem está cadastrado em Núcleos de Moradia. Segundo dados da Prefeitura de Belo Horizonte existem hoje aproximadamente 13 mil famílias pobres cadastradas em 175 Núcleos de moradia espalhados por toda a capital mineira. Se os sem-casa aguardarem resignadamente na fila, terão que esperar 44 anos para chegar à tão sonhada “Casa Própria”, isto sem falar nas outras 43 mil famílias e nos 177 mil cadastrados, em apenas uma semana, no Programa “Minha casa, minha vida.”
1) Comunidade Camilo Torres
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais acatou dia 05 de novembro de 2009, o recurso da Empresa Vitor Pneus para ordenar o despejo das 142 famílias sem-casa da Comunidade Camilo Torres, localizada Av. Perimetral, 450, Vila Santa Rita, bairro Jatobá, Belo Horizonte, MG. Mais uma equivocada decisão judicial que não considera a necessidade de compreender o sistema jurídico como integral e coerente. Não há opção possível em garantir a propriedade e negar a dignidade humana. A decisão marca uma opção que o sistema jurídico não permite: a especulação imobiliária em prejuízo da função social da propriedade e do direito à moradia.
O cenário do conflito social é um terreno que pertencia ao Estado de Minas Gerais – CODEMIG - e foi transferido a uma pessoa física, dono de uma empresa, em 1992, por um preço 10 vezes inferior ao valor venal do imóvel. Além disso, a venda do terreno foi condicionada, em escritura pública, à realização de empreendimentos industriais na área para geração de empregos, o que jamais foi feito.
Uma decisão de primeira instância reconheceu a inexistência de posse reconhecendo o direito das famílias sem-casa que ocupam a área abandonada. Foi uma importante vitória da justiça constitucional. Entretanto, a decisão foi cassada pelo Tribunal.

2) Comunidade Irmã Dorothy
Em abril de 2010, a Empresa Tram Locação de Equipamentos Ltda e outros particulares ingressaram com uma Ação de Reintegração de Posse em desfavor das famílias que ocupam área na Vila Santa Rita, no Barreiro. Hoje, são 120 famílias ocupando a área, que, originariamente, pertencia ao Distrito Industrial de Minas Gerais. Esta área foi repassada para uma empresa de São João Nepomuceno, com o objetivo de instalar um empreendimento industrial, em vinte meses. Decorridos apenas cinco meses, a mesma empresa repassou o imóvel, como dação em pagamento, para o Banco Rural. Hoje o proprietário é o Banco Rural, com a anuência da CODEMIG. O compromisso de se construir um empreendimento industrial foi completamente esquecido. Posteriormente o Banco Rural prometeu vender o imóvel para a Empresa Tram e outras pessoas. Em seguida, estes prometeram vender o imóvel para a ASACOPR Empreendimentos e Participações S/A, construtora que ingressou com pedido de financiamento para construção de moradia no local, pelo Programa “Minha Casa, Minha Vida”. O pedido foi aprovado. Só falta a aprovação do projeto pela Prefeitura de Belo Horizonte - PBH.
O juiz da 3ª Vara Cível do Forum Regional Barreiro concedeu liminar. Da decisão se interpôs Agravo de Instrumento, ao qual foi conferido efeito suspensivo. Dois meses depois, em prazo recorde, o recurso foi julgado e a ele negado provimento. Foi então proposto Embargo Declaratório.

3) Comunidade Dandara
Dia 9 de abril de 2009 cerca de 140 famílias sem-casa, sem acesso ao direito constitucional à moradia, tomaram posse de imóvel abandonado há quatro décadas, no bairro Céu Azul, região da Nova Pampulha, em Belo Horizonte. Uma vez na posse, realizaram a limpeza de todo o terreno, cercando a área necessária para o assentamento. Isto feito, passaram a morar em barracos de lona enquanto gradualmente providenciavam a construção de moradias. Hoje residem na Comunidade Dandara 887 famílias.
A Construtora Modelo Ltda ingressou com um pedido de reintegração de posse contra integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST -, visando o desalojamento das famílias que ocupam uma área de 400 mil metros quadrados na região de confluência dos municípios de Contagem, Belo Horizonte e Ribeirão das Neves, sendo, inicialmente, concedida uma liminar para que esta reintegração fosse efetivada de plano.
Inconformados com a decisão, o Serviço de Assistência Judiciária da PUC Minas interpôs Agravo de Instrumento. O Exmo. Sr. Desembargador José de Anchieta Mota e Silva, no plantão forense, resolveu então dar ao recurso o efeito suspensivo, determinando o recolhimento do mandado de reintegração de posse já expedido.
No final do mês de maio de 2009, o Exmo. Sr. Desembargador Tarcísio José Martins Costa, relator do Agravo de Instrumento, revogou a decisão proferida pelo Exmo. Sr. Desembargador José de Anchieta Mota e Silva, determinando, por via de conseqüência, o cumprimento da liminar de reintegração de posse deferida em primeiro grau de jurisdição.
Diante desta nova situação foi impetrado Mandado de Segurança contra o ato ilegal, praticado pelo eminente Sr. Desembargador Tarcísio Martins Costa (relator do mencionado Agravo de Instrumento). O eminente Sr. Desembargador Nepomucenno Silva deferiu a liminar e manteve os impetrantes na posse do imóvel.
A corajosa e correta decisão do desembargador reconheceu o direito constitucional das mais de 4 mil pessoas de Dandara que até então tiveram negados os direitos constitucionais mais básicos, e logo, mais importantes, essenciais para a ordem constitucional, como moradia, essencial para a garantia de dignidade, a todos assegurada pela Constituição Federal de 1988.

4) Reflexões constitucionais a partir da realidade exposta acima
As mais de cinco mil pessoas que reivindicam seus direitos constitucionais são detentoras de direitos fundamentais como qualquer outra pessoa e estão integradas à vida da cidade, na execução dos trabalhos rotineiros essenciais para o funcionamento desta, como os serviços de limpeza e construção.
O direito de propriedade da Construtora Modelo Ltda, das Empresas Tram Locação de Equipamentos Ltda e Vitor Pneu Ltda e da Prefeitura de Belo Horizonte – as que requereram na Justiça o direito de reintegração de posse de suas pretensas propriedades ocupadas por famílias carentes - só pode ser compreendido dentro do sistema constitucional. Não há no ordenamento jurídico a possibilidade do intérprete do sistema escolher direitos ou princípios em detrimento de outros. Os direitos constitucionais e infraconstitucionais devem ser compreendidos dentro da lógica sistêmica do ordenamento e sempre diante da complexidade do caso concreto.
Todo o direito à propriedade está sujeito ao cumprimento de sua função social, e nenhum direito à propriedade pode ser considerado superior à vida humana. Não existe no nosso ordenamento jurídico nada que autorize qualquer decisão judicial ou administrativa, qualquer ação de ente público ou pessoa privada que possa comprometer a vida de uma pessoa em razão de direitos sobre imóveis, bens públicos ou privados. Priorizar a propriedade sobre a vida é compreensão que pertence a uma ordem constitucional liberal que há muito deixou de existir, embora alguns ainda insistam em lembrá-la contra todo o ordenamento constitucional e seu sistema de regras, princípios e valores.
As famílias pobres das Comunidades Camilo Torres, Dandara e Irmã Dorothy se instalaram em imóveis abandonados, ou melhor, utilizados para especulação, sem qualquer resistência. Fizeram ocupações no exercício de direito social fundamental. Ora, diante da insensibilidade e omissão dos poderes públicos, diante de situação absurda que beira a total irracionalidade, as famílias que hoje residem nessas comunidades tomaram a iniciativa de exercer direitos: o direito de viver com dignidade, de morar e de alguma forma oferecer para as crianças e idosos que ali se encontram um pouco de esperança em um futuro pautado pela igualdade republicana, fundamento primeiro de nossa Constituição.
Uma determinação de reintegração da área à Construtora Modelo Ltda, às Empresas Tram Locação de Equipamentos Ltda e Vitor Pneu Ltda; e à Prefeitura de Belo Horizonte, fundamentada em interpretação não sistêmica, que ignora a ordem constitucional e se fundamenta exclusivamente na legislação civil, pertence a um passado legalista que não mais encontra abrigo na ordem constitucional democrática de 1988 e que tem como guardião constitucional final o Supremo Tribunal Federal. Aliás, o Supremo Tribunal Federal tem, em diversos momentos, demonstrado como uma ordem democrática e constitucional não se sustenta em interpretações legalistas reducionistas. Não se pode ignorar os direitos (princípios e regras) constitucionais na solução do caso concreto. A vida humana é o valor supremo de nossa ordem constitucional republicana, onde todas as pessoas têm o mesmo valor, têm os mesmos direitos. Isto é básico em nosso ordenamento e a desigualdade e indignidade a que são submetidas estas pessoas salta aos olhos de qualquer pessoa. Não é necessário fazer o curso de Direito para reconhecer que o princípio constitucional republicano não está sendo observado quando se nega o direito a moradia a qualquer pessoa para manter o ilegítimo e inconstitucional ganho com a especulação imobiliária.
A exclusão urbana (assim como qualquer forma de exclusão) é inconstitucional, e logo, qualquer ação, de quem quer que seja, que a sustente ou mantenha, é absolutamente inconstitucional. A segregação espacial, a que estas pessoas estavam submetidas, vem acompanhada de dificuldade de acesso aos equipamentos públicos essenciais disponíveis (saúde, educação, transporte, saneamento básico etc.); relações sociais fragmentadas, falta de acesso ao lazer e desgaste na convivência social marcada por preconceitos e marginalizações.
Lembrando que estamos tratando aqui de respeito ao mínimo de racionalidade pautada pela ordem constitucional, lembramos que a retirada dessas famílias de imóveis abandonados (e com a finalidade de especulação), sem um planejamento da forma como serão absorvidas no meio urbano, criará uma situação insustentável: como admitir alguma racionalidade jurídica, democrática e constitucional no fato de jogar pessoas no meio da rua, à sua própria sorte, para garantir um direito de propriedade ilegítimo, uma vez que se justifica pelo enriquecimento sem trabalho, condenado pela Constituição, por meio da especulação imobiliária.
Não caberia aqui analisar a nossa ordem econômica constitucional, mas a situação se reveste de tal absurdo que sempre é bom lembrar que o nosso sistema econômico constitucional, no artigo 170 e seguintes, opta claramente pelas formas de ganho com o trabalho, condicionando e limitando as formas de ganho sem trabalho. Desta forma, as formas de ganho com o trabalho como o salário e o lucro (este segundo desde que fruto da livre iniciativa e concorrência) são protegidas, e as formas de ganho sem trabalho como os juros, a renda (alugueis, especulação e outras formas) e o lucro sem concorrência são expressamente limitados.
Não é mais possível sustentar que decisões fundamentadas em leituras descontextualizadas, frias, que desconsideram a vida humana ou que tratam as pessoas como se fossem de categorias diferentes (aqueles que podem sofrer muito mais do que nós suportaríamos e aqueles que não podem sofrer nada) continuem existindo em nosso ordenamento jurídico constitucional. A pessoa é o centro de tudo, qualquer pessoa, e nada justifica o seu sofrimento. Quando ainda vemos tratores passando sobre casas e sobre os poucos objetos de uso nestas casas existentes, imaginamos filmes que deveriam retratar um passado não mais existente. Talvez se mudássemos os personagens deste filme e nos colocássemos no lugar daqueles que perdem o quase nada que têm, junto com um resto de esperança atropelada pelo poder, esta questão já estivesse sido resolvida. Ora, muito tempo passou, muita coisa aconteceu, muitas pessoas morreram para que ainda consideremos a hipótese da existência de pessoas sem casa, sem comida, sem dignidade. Não há argumento que possa justificar isto, muito menos os não argumentos processuais formais frios que ignorem o calor dos corpos.
Vamos então desenvolver alguns aspectos anteriormente ressaltados. Como já afirmado, a situação jurídica deve ser compreendida a partir de uma percepção sistêmica da questão. A primeira pergunta que nos colocamos é a seguinte: existe um mau funcionamento do sistema jurídico? Ou podemos colocar em outras palavras: quais são as contradições aparentes de um sistema republicano marcado por sua constante negação quando da criação de privilégios que não encontram abrigo nos princípios do sistema jurídico constitucional?
Vamos explicar melhor esta premissa, entendendo primeiramente conceitos básicos do Direito Constitucional e posteriormente trabalharemos exemplos gerais de nosso sistema, o que faremos pontualmente para tornar claro:
Comecemos por uma afirmação obvia do ponto de vista jurídico, mas que a realidade em que vivemos nem sempre confirma: vivemos em uma república!
O artigo 1° da Constituição Federal de 1988 traz uma série de conceitos importantes que se constituem em princípios estruturantes e fundamentais da República brasileira.
No caput do artigo encontramos menção a República Federativa do Brasil formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal que se constituem em um Estado Democrático de Direito. Nos incisos I a V encontramos os princípios fundamentais sobre os quais se estrutura nossa República: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Finalmente, no parágrafo único, o texto constitucional nos remete à democracia representativa e a democracia direta como fundamento da vontade do poder organizado pela Constituição.
Importante lembrar que princípios são normas jurídicas de observância obrigatória e que devem ser interpretados diante dos casos concretos para ganharem densidade e se desdobrarem em regras para o caso que permitam resolver conflitos e garantir os direitos das pessoas.
Devemos nos lembrar que, quando buscamos regras aplicáveis a uma situação especifica, estas regras devem ser interpretadas para a construção da norma, juntamente com os princípios.
Os princípios, por sua maior amplitude regulatória, se aplicam ao maior numero de situações possíveis. Uma diferença importante entre princípios e regras é o fato de que as regras regulam uma situação especifica enquanto os princípios regulam diversas situações.
Não é possível que duas regras regulem a mesma situação de forma distinta, uma deve desaparecer. Já os princípios regulam e protegem simultaneamente um grande numero de situações e caso haja conflito, este só ocorre no caso concreto, onde então, um (ou alguns) dos princípios em conflito, deverá ter sua aplicação afastada, especificamente, naquele caso onde ocorreu o conflito, sendo válido e aplicável em todas as outras situações onde não ocorra conflito semelhante.
Finalmente, lembremos que, caso alguma regra constitucional entre em conflito com os princípios constitucionais em um caso concreto, a regra deve ceder espaço à aplicação do princípio.
Estamos, portanto, neste artigo 1°, diante de normas constitucionais fundamentais de nosso ordenamento jurídico.
Passemos então a análise sistêmica destes significados que recebem historicamente significantes distintos. Aqui nos interessa sua compreensão contemporânea, democraticamente construída pelo povo, titular da soberania.
República: No passado a palavra República significou uma forma de governo contraposta à Monarquia. Desta forma a República seria uma forma de governo do povo, onde este participaria do governo diretamente ou por meio de representantes, enquanto na Monarquia, haveria o governo de um só, fundado nos privilégios hereditários e numa fundamentação artificial do poder do soberano na vontade divina.
A ideia de República se contrapondo à monarquia, como sendo uma forma de estado onde o governo (unipessoal e ou colegiado) é escolhido pelo povo se refere ao conceito moderno. Importante lembrar que o significado da palavra república mudou muito no decorrer da história.
A ideia de coisa pública e de igualdade é essencial ao conceito de República. A República é um espaço onde não há privilégios hereditários ou qualquer outro. República, portanto, é um espaço de igualdade perante a lei. Ser republicano é reconhecer a coisa pública, os bens públicos, o patrimônio histórico, artístico e cultural como pertencente igualmente a cada pessoa e a todas as pessoas simultaneamente. Em uma República não se admite privilégios, de nenhuma espécie, seja por razão de sobrenome, de riqueza, de conhecimento, cargo, posição profissional ou qualquer outra diferenciação.
Em uma República a pessoa é reconhecida como portadora de direitos iguais seja qual for sua posição. Uma ilustração interessante da ideia republicana na contemporaneidade está na não aceitação de entradas especiais; “carteiradas”; filas furadas; salas especiais; clientes especiais de acordo com a conta bancária; espaços reservados para quem use ternos e gravatas ou prisão especial para quem tem curso superior. Uma coisa é tratar de forma diferente situações diferentes buscando a igualdade, outra coisa é agravar a diferença injustamente, com a criação de privilégios.
Falar-se então em República no Brasil vai além de uma simples ideia de uma forma de governo do povo, isto é reiterado pelo conceito de Estado Democrático e Social de Direito. República, além do povo no poder, significa dizer que este povo no poder não pode aceitar ou criar privilégios de nenhuma natureza. Cada um, mesmo que seja minoria, mesmo que seja o único, tem direitos iguais perante a lei. Tem direito de ser reconhecido como integrante da República e, portanto, como construtor do caminho coletivo da vontade estatal.
Cidadania: O conceito contemporâneo de cidadania se estendeu em direção a uma perspectiva sistêmica onde cidadão não é apenas aquele que vota, mas aquela pessoa que tem meios para exercer o voto de forma consciente e participativa. Portanto cidadania é a condição de acesso aos direitos sociais (educação, saúde, moradia, previdência) e econômicos (salário justo, emprego) que permite que o cidadão possa desenvolver todas as suas potencialidades, incluindo a de participar de forma ativa, organizada e consciente, da construção da vida coletiva no Estado democrático.
Em sentido estrito, cidadania é a condição formal de participação na construção da vontade do Estado democrático, por meio do voto. A Constituição brasileira proclama o sufrágio universal e o voto direto e secreto com igual valor para todos.
A teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais foi responsável pela ampliação do conceito de cidadania. Pela teoria da Indivisibilidade, os direitos políticos são dependentes dos outros direitos fundamentais da pessoa humana. Para que tenhamos democracia política e exercício de cidadania política é necessário que as pessoas tenham acesso aos meios para a efetivação da liberdade. Os direitos sociais e econômicos são meios que possibilitam o efetivo exercício das liberdades individuais e políticas.
Para que se efetive a democracia política é necessária a democracia social e econômica e o respeito aos direitos de liberdade. Nesta perspectiva, a democracia participativa, institucionalizada ou não, passa a ser elemento de aperfeiçoamento da democracia representativa.
Dependem os direitos políticos de direitos econômicos, mais precisamente, de normas do Estado que concretizem uma política econômica que busque a democracia econômica, sem a qual a democracia política e a cidadania estarão comprometidas.
A democracia representativa e participativa deve ser amparada no direito social à educação livre e plural e o acesso à cultura, como forma do exercício real da liberdade de consciência. Da mesma forma a democracia econômica pode permitir a democratização dos meios de comunicação social. Enfim, a indivisibilidade dos direitos fundamentais reconhece a complexidade do sistema de direitos, ultrapassando o discurso constitucional clássico referente à cidadania política estrito senso, em direção a efetividade democrática de uma democracia dialógica em permanente processo de transformação e conquista de direitos.
Dignidade da pessoa humana: Outro conceito amplo e complexo é o de dignidade da pessoa humana. A dignidade com sua necessária compreensão histórica é condição primeira para a existência de cidadãos em uma república.
A historicidade do conceito é seu elemento fundamental: dignidade é um conjunto de condições sociais, econômicas, culturais e políticas que permitem que cada pessoa possa exercer seus direitos com liberdade e esclarecimento consciente, em meio a um ambiente de respeito e efetividade dos direitos individuais, sociais, políticos e econômicos de todos e cada uma das pessoas.
A historicidade é fundamental neste conceito uma vez que é a sua compreensão dentro de uma cultura específica que gera o sentimento de bem-estar e segurança social típico de uma situação de respeito aos direitos de todos. As necessidades de uma cultura, em um tempo e em um espaço específicos, são e podem ser muito diferentes.
Kant formulou o segundo imperativo categórico como exigência do “princípio da dignidade humana”: “Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como um meio”. Para Kant toda pessoa, todo ser racional possui um valor intrínseco não relativo que é a dignidade.
Podemos compreender a ideia de dignidade na Constituição, buscando a vinculação da ideia moral desenvolvida pelos filósofos, com a existência de condições materiais que permitam florescer a cultura humana, e onde o respeito encontrado pela vida de cada um permita o cultivo do respeito da vida do outro. É a existência efetiva do respeito aos direitos sociais, econômicos, individuais, políticos e culturais de cada pessoa, de cada grupo social, de cada comunidade, que permitirá que se construa em cada um desses espaços uma cultura de respeito humano. Onde há exclusão, exploração e miséria não é possível respeito mútuo, pois não há dignidade na injustiça.
Uma questão importante nos chama a atenção. Por qual razão toleramos a falta de dignidade? O filósofo francês Alain Badiou nos ajuda nesta reflexão. A construção dos significados que escondem complexidades e diversidades é o tema do livro de Alain Badiou, La portée du mot juif . Cita o autor um episódio ocorrido na França há algum tempo atrás. O primeiro-ministro Raymond Barre, comentando um atentado a uma sinagoga, disse para a imprensa francesa o fato de que morreram judeus que estavam dentro da sinagoga e franceses inocentes que passavam na rua quando a bomba explodiu. Qual o significado da palavra judeu que agiu de maneira indisfarçável na fala do primeiro-ministro? A palavra “judeu” escondeu toda a diversidade histórica, pessoal do grupo de pessoas que são chamadas por este nome. A nomeação é um mecanismo de simplificação e de geração de preconceitos que facilita a manipulação e a dominação. A estratégia de nomear facilita a dominação.
Uma lição importante que se pode tirar da questão judaica, da questão palestina, do nazismo e outros nomes que lembram massacres ilimitados de pessoas, é a de que, toda introdução enfática de predicados comunitários no campo ideológico, político ou estatal, seja de criminalização (como nazistas e fascistas) seja de sacrifício (como cristãos no passado) é simplificadora e perigosa.
Combater as nomeações, a sacralização de determinados nomes, significa defender a democracia, o pluralismo, significa o reconhecimento de um sujeito que não ignora os particularismos, mas que ultrapassa este; que não tenha privilégios e que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários, religiosos ou nacionais.
Badiou dedica o seu livro a uma pluralidade irredutível de nomes próprios, o único real que se pode opor a ditadura dos predicados, responsável por convivermos com a miséria, a fome, a violência, enfim, com a indignidade.
A introdução do tema identidade e identificação com grupos, religiões, estados, partidos, ideias, é importante para compreendermos as várias formas de segregação, sempre irracional. A exclusão surge com a anulação do sujeito livre, com a anulação do nome próprio substituído por um nome coletivo.
Um mundo onde a pessoa seja vista sempre como pessoa, em toda sua complexidade e singularidade, sejam quais forem suas identificações ou identidades, este é o mundo onde a paz e a justiça serão possíveis e logo onde a dignidade será uma exigência. Se vemos no outro um igual, seja qual for sua identificação coletiva, se vemos no outro uma pessoa, a indignidade não será mais tolerada.
Isto posto podemos citar inúmeros exemplos de incorreto funcionamento do sistema. Impressionante como muitas vezes as instituições criadas pela Constituição funcionam à margem do sistema constitucional ou mesmo contra o sistema constitucional.
Exemplo 1: Nosso sistema tributário claramente beneficia um grupo social em prejuízo de outros grupos sociais. São incontáveis os casos de endividamento pessoal grave quando um cidadão de classe média não paga seus impostos. Ao contrário, quando uma grande empresa não paga milhões é recorrente o perdão ou a negociação da dívida. No mesmo sistema tributário, percentualmente é claro o beneficio a quem mais ganha enquanto quem menos ganha compromete parcelas maiores de seus ganhos com o pagamento de tributos. A República não está presente no nosso sistema Tributário.
Exemplo 2: O sistema penal pune rigorosamente os pobres que são sistematicamente presos e esquecidos nas penitenciárias, enquanto a corrupção, a sonegação fiscal e vários outros tipos de crimes cometidos por pessoas ricas ficam, na maior parte das vezes, sem punição. Interessante lembrar o caso do banqueiro Daniel Dantas que foi liberado por uma liminar algumas horas depois de sua prisão, enquanto no mesmo momento uma jovem se encontrava presa há mais de sete meses por ter furtado uma barra de manteiga. A República não se encontra presente em nosso sistema penal. O encarceramento em massa de pessoas pobres, a criminalização dos pobres e dos movimentos sociais populares se contrapõe a tolerância gigantesca com os grandes crimes, cometidos por pessoas ricas. Isto mostra que a prática do sistema diferencia, ao menos, duas grandes categorias de pessoas: aquelas que podem ser privadas de direitos, que podem ser humilhadas, esquecidas, desconsideradas, torturadas, e aquelas pessoas que têm efetivamente direito a ordem constitucional e mais ainda, à tolerância do sistema para além da ordem constitucional, em um sistema de privilégios não sustentado pela mesma Constituição formalmente republicana.
Exemplo 3: Pequenos empresários se não pagarem direitos trabalhistas podem ir à falência. Grandes empresários não pagam direitos trabalhistas, fazendo um cálculo contábil onde o não cumprimento da lei pode lhes ser favorável.
Citei 3 exemplos comuns e claramente visíveis, mas poderia aqui continuar enumerando muitos outros exemplos que se agravam à medida que a diferença econômica aumenta. Lembrando o filósofo e psicanalista francês Alain Badiou, temos no mínimo duas grandes categorias de pessoas: aquelas protegidas pelo sistema jurídico, social e econômico, para além da proteção constitucional republicana e aquelas ignoradas pelo sistema jurídico, social e econômico, para as quais dificilmente se garantem os direitos constitucionais republicanos.
Lembrando ainda Badiou, a nomeação na terceira pessoa é um passo para o genocídio. Quando dizemos nós e eles, o grupo nomeado por “eles” está a um passo de ser exterminado. Isto nos aproxima de um nazista como Eichmann (um dos carrascos nazistas), por exemplo. O sistema nós-eles pode ser caracterizado por diversas equações: nós os arianos X eles os judeus (como na segunda-guerra mundial); nós os Utus X eles os Tutsis (como no genocídio em Ruanda); nós os bons X eles os baderneiros; nós os empreendedores X eles os preguiçosos; nós os proprietários X eles os invasores (na exclusão diária que revela em muitos um pouco de Eichmann que está em muitos de nós). Isto me faz lembrar uma notícia em um jornal de Bairro em Belo Horizonte: “MENOR AGRIDE ADOLESCENTE” (nós os adolescentes X eles os menores).
Processo e Justiça: O processo pode ser utilizado contra a sua finalidade, ou seja, promover a justiça? A resposta deveria ser obvia: claro que não. Entretanto não é isto que ocorre, inclusive no caso em tela, o julgamento do mandado de segurança que por meio de uma liminar, garantia o direito das pessoas que residem em Dandara.
O processo é um meio fundamental para a garantia de direitos e jamais um fim em si mesmo. Se regras ou princípios processuais entram em choque com direitos protegidos em um caso concreto, não há dúvida que prevalecem os direitos fundamentais que não podem ser comprometidos. Não cabe no decorrer de um processo judicial, a discussão de procedimentos de forma separada do direito a ser protegido. Esta descontextualização é cômoda quando não se quer enfrentar a questão central, mas não encontra fundamento lógico-racional no direito processual.
Não há aqui uma conclusão a ser feita, o texto é uma grande conclusão: nada justifica o sofrimento imposto a uma pessoa, nem a forma, nem o procedimento, nem qualquer outra explicação que se queira construir fundada em uma construção retórica. Qualquer solução para o caso concreto, em qualquer caso concreto, passa necessariamente pela preservação da dignidade de qualquer pessoa. O essencial é sempre simples.

Belo Horizonte, 22 de junho de 2010.
José Luiz Quadros de Magalhães – e-mail: ceede@uol.com.br