quinta-feira, 30 de setembro de 2010

69- Teoria da Constituição 17

Reforma no Direito Comparado
Jose Luiz Quadros de Magalhães

5.7 Índia

Em 54 anos de vigência, a Constituição da Índia foi emendada 90 vezes. A atual Constituição foi promulgada em 26 de janeiro de 1950. Segundo a pesquisadora Edalgina Braulia de Carvalho,19 os constituintes indianos evitaram um processo muito rígido de reforma da Constituição, pensando em um documento que pudesse crescer junto com a nação, adaptando-o às circunstancias e às necessidades de mudança. De outro lado, os constituintes também se preocuparam em não permitir um processo extremamente flexível que enfraquecesse a Constituição diante de interesses transitórios de poder. O caminho escolhido foi o do meio.
Há três tipos de proposição de emenda à Constituição. O início do processo de emenda modifica-se conforme a matéria do projeto proposto. A proposta de emenda referente ao art. 5º, que trata da cidadania indiana, pode ser proposta por maioria simples do Parlamento; a proposta de emenda constitucional a partir de proposição de maioria qualificada de 2/3 dos membros em cada casa do parlamento inclui a maior parte das matérias, como as previstas no art. 368; a terceira e última categoria de proposta de emenda é a que exige além dos 2/3 em cada casa, também a ratificação por metade das assembléias estaduais, bem como tratam de matéria de interesse federal.
Este último caso é exemplo importante para a preservação do modelo federal. Toda matéria relevante para os Estados-Membros pede, além da manifestação do Senado, também a manifestação de todos os legislativos estaduais.
Embora não exista cláusula constitucional imodificável expressa no texto, a Suprema Corte indiana considera não poder ser objeto de emenda os dispositivos pertencentes à estrutura básica da Constituição como a sua supremacia; a República e a democracia; o caráter laico do Estado; a separação de poderes; o federalismo e a unidade nacional; as liberdades e os direitos individuais e o compromisso inafastável de construção de um estado social.20


5.8 Canadá

A Constituição do Canadá é composta por diversos documentos, semelhantemente ao que acontece com a Constituição inglesa. Há um documento, o Canadian Charter of Rights and Freedons, que contém os direitos fundamentais e define o sistema de governo. Além desse documento, integra a Constituição atos parlamentares britânicos e canadenses, assim como decisões judiciais e acordos entre o governo federal e as províncias (Estados-Membros). Há, ainda, normas não escritas na Constituição canadense: as convenções constitucionais britânicas e canadenses, criadas por costumes políticos. Um exemplo da tradição não escrita como norma constitucional é a escolha de juízes da Suprema Corte. Dos nove juízes, a lei determina que três devem ter origem no Quebec (única província de língua francesa). Os outros membros a tradição determinam que o governo federal apontará três juízes de Ontário, dois das províncias do Oeste e um do Canadá Atlântico.21
O art. 52 (2) do Ato Constitucional de 1982 esclarece que a Constituição canadense é formada por 26 textos legislativos e decretos, que compreendem as leis Britânicas anteriores ou modificadoras do British North América Act. Os atos mais importantes são o The Constitution Act of 1867 (British North América Act) e o The Constitution Act of 1982, a primeira lei efetivamente canadense garantindo a independência política completa do Reino Unido.22
Pelo Constitution Act of 1867, o poder de emenda permanecia como competência de três corpos legislativos diferentes: as Assembléias Provinciais (Legislativo dos Estados-Membros) para emendar suas próprias Constituições; o Parlamento canadense poderia emendar varias seções do Constitution Act, no que se refere à sua própria Constituição; o Parlamento inglês para emendar as seções mais importantes relativas à distribuição de competência entre os dois níveis de governo do Canadá. Com o estatuto de Westminster, em 1931, ficou estabelecido que o Parlamento do Reino Unido não poderia emendar a Constituição do Canadá sem a autorização explícita dos cidadãos canadenses. Não houve, entretanto, acordo sobre a forma de consulta à população para que fosse dada a autorização dos cidadãos.
A independência veio com o Ato Constitucional de 1982, e com ele novos procedimentos de emenda para o Canadá soberano. A seção 38 (1) estabelece que uma emenda pode ser feita à Constituição por uma proclamação apresentada pelo Governador-Geral, sob o grande selo do Canadá, autorizada pelo Senado, pela Casa dos Comuns e por resoluções legislativas de pelo menos 2/3 das províncias que tenham de acordo com o último censo, juntas no mínimo 50% da população canadense. Pode-se notar a extrema dificuldade de modificação do texto, caracterizando a Constituição canadense extremamente rígida no seu aspecto formal.
Um aspecto extremamente interessante do processo de reforma da Constituição do Canadá e que representa a força da lógica federal naquele país está no fato de que a emenda aprovada não terá efeito na Província em que a Assembléia Legislativa tenha expressado sua desaprovação mediante resolução aprovada pela maioria de seus membros, anteriormente à proclamação da emenda. A Província que não adotou a emenda pode rever sua posição simplesmente revogando o dissentimento.
O processo de emenda acima descrito comporta exceções em que o procedimento será ainda mais rígido, exigindo, em alguns casos, a aprovação da emenda por parte de todas as províncias. Quando a emenda tratar de determinação que se aplica a uma ou mais provín-cias, não se aplicando a todas, basta a resolução da Assembléia Le¬gislativa das Províncias às quais se aplica. Com base nesta última exceção, ocorreram as emendas até hoje aprovadas, exceto duas. Finalmente, há casos em que, pela importância, não cabe o dissentimento das províncias.
O limite temporal para aprovação de emendas é de, no mínimo, um ano e, no máximo, três anos. Não sendo aprovada em 3 anos a emenda é arquivada. O início da tramitação da emenda pode ocorrer na Casa dos comuns (deputados); no Senado ou nas Assembléias das Províncias (mais uma expressão do respeito e valorização do pacto federativo).

68- Teoria da Constituição 16

Reforma no Direito Comparado
Jose Luiz Quadros de Magalhães

5.5 Itália

O art. 138 da Constituição italiana prevê que as leis de revisão da Constituição e as outras leis constitucionais são adotadas mediante aprovação na Câmara de Deputados e no Senado com duas deliberações sucessivas em cada uma, com intervalo não inferior a três meses, sendo aprovadas por maioria absoluta. Uma vez aprovadas, serão submetidas a referendo popular quando no prazo de três meses a partir da publicação, 1/5 dos membros de um Câmara ou 500 mil eleitores ou cinco Conselhos regionais solicitarem. A lei submetida a referendo não é promulgada senão depois da aprovada pela maioria dos votos válidos no referendo. Não se procederá a referendo se a lei for aprovada na segunda votação por cada Câmara, à maioria de 2/3.
Observa o pesquisador Rafael Jardim Goulart de Andrade que as leis constitucionais são aquelas previstas direta ou indiretamente pela Constituição, referindo-se a matérias de particular relevância.16 Nesse sentido, observa Paolo Biscaretti de Rufia quando menciona o art. 137 como exemplo, quando dispõe que uma lei constitucional estabelece as condições, formas, prazos, apresentação dos julgamentos de legitimidade constitucional e as garantias de independência dos juízes da Corte.17 As leis constitucionais são uma espécie de lei complementar no Brasil.
A Constituição da Itália estabelece expressamente uma cláusula imodificável: a forma republicana.


5.6 França

As primeiras Constituições francesas do período revolucionário (1791-93-95) trazem toda a riqueza do nascente constitucionalismo moderno, sendo a década de 1790 marcante para a história moderna. De certa forma, essa década trouxe um pouco da história política da modernidade. A tensão entre a tentativa da burguesia em parar o processo revolucionário no estágio de seu interesse e, de outro lado, a pressão por continuidade da revolução são correntes na modernidade. O terceiro Estado não era homogêneo, estando ali representados interesses conflitantes dos sans coulottes, os mais pobres, os jacobinos pequenos burgueses e, a alta, burguesia, que assumem o processo e tem seus interesses representados pelos girondinos. A Constituição de 1791 é uma típica Constituição burguesa, não democrática, e que procura estacionar o processo revolucionário no estágio liberal conservador. De outra forma, a Constituição de 1793 foi a tentativa de fazer avançar o processo, uma Constituição jacobina com o Legislativo muito forte controlando o Executivo. A Constituição de 1795 representa a reação burguesa, o retorno ao estágio anterior, a tentativa de paralisar o processo, de mandar o povo para a casa retornando ao discurso liberal-conservador.
O processo de reforma previsto nessas Constituições reflete os interesses por elas defendidos. A Constituição de 1791, na tentativa de paralisar o processo, consagrou a crença na permanência do seu texto, na sua quase imutabilidade, prevendo o início da revisão após decorridos dezoito anos da deliberação que inaugurava o longo percurso da Assembléia de Revisão, intercalado por período de abstinência deliberativa em matéria constitucional para reflexão e amadurecimento da reforma. Essa concepção conservadora retorna após a tentativa de avanços da Constituição de 1793. A Constituição de 1795 requintou as formas dilatórias, prevendo a instalação da Assembléia de Revisão nove anos depois da aprovação da proposta. A reunião da Assembléia deveria ser em local afastado da sede do Poder Legislativo18. Nada disso, entretanto, foi capaz de parar a História.
As Constituições seguintes representam um período de fechamento e endurecimento do regime: a habitual aliança entre a burguesia e os militares sempre que seu interesse se vê ameaçado; em 1799, uma Constituição cesarista que conferia poder ao general do momento (Napoleão Bonaparte integrando o triunvirato); em 1802 transforma Napoleão em cônsul e 1804 instaura o império. Nenhuma dessas Constituições especialmente autoritárias previa reforma de seus textos.
A Constituição da restauração da monarquia de 1814 não previa sua reforma. Em 1830, entretanto, um pacto entre o rei e a Câmara de Deputados permitiu a revisão da Constituição de 1814.
Em 1848, uma nova revolução popular e uma Constituição que representava esse novo momento democrático tinha maior flexibilidade. Entretanto, outra ruptura reacionária, e a Constituição de 1852 reproduziu a Constituição de 1799, restaurando o Império e colocando Napoleão III no poder.
Em 1870 houve uma evolução parlamentar, e em 1875 a Republica chegou para ficar na França, seguindo-se as Constituições republicanas de 1946 e de 1958, em vigor.
A Constituição em vigor, que marca o início da V República francesa, nasceu de forma atípica, polêmica e com legitimidade questionável. Entretanto, legitimizou-se no decorrer de sua vigência.
Em 1958, o parlamento francês modificou o processo de revisão previsto no art. 90 da Constituição de 1946, conferindo poderes constituintes para o general De Gaulle. O mesmo procedimento estranho à Constituição ocorreu em 1940 com o Marechal Petain. Podemos verificar que o processo de democratização e de fortalecimento da Constituição ocorreu lentamente no decorrer dos séculos XIX e XX. A teoria contemporânea não reconhece legitimidade a este estranho processo ocorrido na França, assim como não reconhece legitimidade aos processos autoritários que ocorreram no Brasil nas décadas de 1930 e 1960. Entretanto, a tensão entre democracia e constitucio¬nalismo é uma equação que ainda está distante de ser resolvida.
Com a Constituição de 1958, o regime excepcional não cessou. De Gaulle permaneceu com poderes excepcionais durante os quatro primeiros meses de vigência da Constituição de 1958, o que deu origem ao regime semipresidencial a partir da revisão constitucional de 1962. Importante ressaltar que o procedimento adotado para modificar a Constituição de 58 em 1962 não era previsto no texto, o que demonstra outra grave quebra da ordem constitucional. De Gaulle recorreu a consultas populares para alterar a Constituição de forma não prevista. Foram quatro as consultas populares para procurar legitimar a mudança da Constituição não prevista no texto: 8 de janeiro de 1961 8 de abril de 1962; 28 de outubro de 1962 e 27 de abril de 1969. O plebiscito de 1969 foi uma busca de confirmação de poder, uma estratégia bonapartista fundada sobre o voto e o prestigio pessoal de um personagem, histórico especial. A derrota no plebiscito levou De Gaulle à derrota e marcou o inicio de um período de construção de uma democracia constitucional estável.
Os períodos conturbados por que passa a França e o mundo nesse período podem explicar apelos a recursos extraconstitucionais, mas não legitimam esse processo. A historia republicana francesa pôde, posteriormente, com a afirmação e evolução da democracia, especialmente na era Mitterrand a partir de 1981, legitimar a Constituição para o futuro, mas não para o seu passado.
A reforma da Constituição francesa esta prevista no art. 89. A iniciativa da reforma da Constituição pertence ao Presidente da República sob a proposta do Primeiro-Ministro e aos membros do parlamento. O projeto ou a proposta de reforma deverá ser votada pela Câmara de Deputados e pelo Senado em termos idênticos. A reforma será definitiva depois de aprovada por referendo. O projeto de reforma não será submetido a referendo se o Presidente da República decidir submetê-lo ao Parlamento convocado em Congresso (sessão unicameral). Nesse caso, a aprovação dependerá de maioria de três quintos dos votos. A mesa do Congresso nesta ocasião será a mesma das Assembléia Nacional (deputados). É vedada reforma da Constituição quando houver atentado à integridade territorial (limite circunstancial), sendo também vedada modificação da forma republicana (limite material explicito).

terça-feira, 28 de setembro de 2010

67- Teoria da Constituição 15

Reforma no Direito Comparado
Jose Luiz Quadros de Magalhães

5.3 Cuba

A Constituição vigente da República de Cuba foi promulgada em 24 de fevereiro de 1976.
Por essa Constituição, ficou estabelecida sua reforma, nos seguintes termos:

Art.141. (1) Esta Constituição somente poderá ser reformada, total ou parcialmente, pela Asamblea Nacional del Poder Popular mediante acordo adotado, em votação nominal, por uma maioria não inferior a dois terços do número total de seus integrantes.
(2) Se a reforma é total ou se refere à integração e faculdades da Asamblea Nacional del Poder Popular ou de seu Consejo de Estado ou a direitos e deveres consagrados na Constituição, requer, além disso, a ratificação por voto favorável da maioria dos cidadãos com direito eleitoral, em referendo convocado pela própria Asamblea. (CUBA, 2004)

A pesquisadora da PUC-MG, Janaína de Alvarenga Silva, observa em sua pesquisa que, com as reformas de 1992, o artigo é reposicionado, passando a figurar no Capítulo XV, intitulado Reforma Constitucional, art. 137, enquanto na redação originária da Constituição estava, sob o mesmo título, no Capítulo XII, art. 141, 1 e 2.
Oportuno transcrever o citado artigo 137, para visualizarmos tais modificações:

Artigo 137. Esta Constituição somente pode ser reformada, total ou parcialmente, pela Asamblea Nacional del Poder Popular mediante acordo adotado, em votação nominal, por uma maioria não inferior a dois terços do número total de seus integrantes. Se a reforma é total ou se refere à integração e faculdades da Asamblea Nacional del Poder Popular ou de seu Consejo de Estado ou a direitos e deveres consagrados na Constituição, requer, além disso, a ratificação por voto favorável da maioria dos cidadãos com direito eleitoral, em referendo convocado pela própria Asamblea.

Em 26 de junho de 2002, a Asamblea Nacional del Poder Popular, em sessão extraordinária e atendendo a um processo plebiscitário popular para nova reforma no texto constitucional, promulgou a chamada Ley de Reforma Constitucional .
Segundo Janaína de Alvarenga Silva,

essa reforma em 2002, como estabelecido na Ley de Reforma Constitucional, teria sido uma resposta dos cubanos às medidas norte-americanas anunciadas pelo Presidente George W. Bush, resultando na condenação de Cuba na Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), bem como à sua pretensão de derrocar o sistema político de Cuba e de destruir a obra da Revolução de 1959.

Pela referida reforma, alteraram-se os arts. 1º e 11 da Constituição de 1976, para lhes acrescentar um parágrafo ao final, “de modo a tornar irrevogável o socialismo e o sistema político-social revolucionário, e, também, impedir que as relações entre Cuba e qualquer Estado sejam negociadas sob agressão, ameaça ou coerção de uma potência estrangeira.”14
Janaína explica que primeiramente,

é de se destacar que foi suprimida a expressão “total ou parcialmente” contida em sua redação. Já na parte final de seu primeiro parágrafo, foi adicionada uma limitação material explícita ao poder reformador, quando se proibiu a reforma que diga respeito ao sistema político, econômico e social e à proibição de negociações sob agressão, ameaça ou coerção de uma potência estrangeira.15

Assim, o art. 137 apresenta-se, atualmente, com a seguinte redação:

Artigo 137. Esta Constituição somente poderá ser reformada pela Asamblea Nacional del Poder Popular mediante acordo adotado, em votação nominal, por uma maioria não inferior a dois terços do número total de seus integrantes, exceto no que se refere ao sistema político, econômico e social, cujo caráter irrevogável é estabelecido pelo artigo 3 do Capítulo I, e a proibição de negociar acordos sob agressão, ameaça ou coerção de uma potência estrangeira.
Se a reforma se refere à integração e faculdades da Asamblea Nacional del Poder Popular ou de seu Consejo de Estado ou a direitos e deveres consagrados na Constituição, requer, além disso, a ratificação pelo voto favorável da maioria dos cidadãos com direito eleitoral, em referendo convocado pela própria Asamblea.


5.4 Estados Unidos da América

A seguir transcrevemos a previsão do texto da Constituição dos Estados Unidos da América para a mudança formal do texto. O procedimento de mudança da Constituição norte-americana está previsto no artigo V do referido documento:

O Congresso, sempre que dois terços de ambas as Câmaras o julguem necessário,, poderá propor emendas a esta Constituição, ou, a pedido das legislaturas de dois terços dos vários Estados, convocará uma assembléia para propor emendas que, em qualquer caso, serão válidas para todos os objetivos e propósitos como parte desta Constituição, se ratificados pelas legislaturas de três quartos dos diversos Estados ou por assembléias reunidas para este fim em três quartos destes, , podendo o Congresso propor um ou outro modo de ratificação. Nenhuma emenda feita antes do ano de mil oitocentos e oito poderá atingir de qualquer maneira a primeira e a quarta cláusulas da nona seção do artigo I; e nenhum Estado, sem seu consentimento poderá ser privado de igualdade de sufrágio no Senado .

domingo, 26 de setembro de 2010

66- Teoria da Constituição 14

5 A REFORMA DA CONSTITUIÇÃO NO
DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO COMPARADO

Jose Luiz Quadros de Magalhaes

5.1 Alemanha

A Constituição Federal da Alemanha, a mesma Lei Fundamental de Bonn de 1949, que agora é a Constituição da Alemanha unificada, prevê, em seu art. 79 § 1º, que a Constituição pode ser alterada por uma lei que expressamente complete ou modifique seu texto. O quorum para a aprovação da lei constitucional é de dois terços dos membros do Parlamento Federal (eleito pelo povo) e do Conselho Federal (o Senado, que é composto por membros dos governos estaduais).
Como ocorre na Constituição brasileira, há cláusulas constitucionais que expressamente não podem ser objeto de reforma: a Federação (como ocorre no Brasil), a participação dos Estados-Membros no processo legislativo federal e os direitos fundamentais da pessoa (também como ocorre no Brasil). É fácil extrair do texto da Constituição a proibição da abolição ou eliminação da essência ou integridade da Constituição, o que é base da teoria constitucional.9 A Constituição alemã sofreu 51 emendas até 2002, sendo que o ano em que sofreu maiores modificações foi 1969, com 8 emendas - 19 à 26. Esse foi um período forte na história recente da Alemanha, com a Guerra Fria e as atividades terroristas. A Emenda 17 (chamada de Revisão Constitu¬cional 17 - revisão utilizada como sinônimo de emenda), de 24 de junho de 1968, dentre outras decisões deu poderes ao parlamento federal para autorizar, por meio de lei, a vigilância sobre comunicações, sem aviso do vigiado, passando ainda o controle dos órgãos criados para supervisionar as atividades de vigilância do Poder Judiciário para as autoridades administrativas10
A pesquisadora Ana Letícia Queiroga de Mattos observa que a mencionada Emenda 17, que restringe direitos individuais, especialmente referentes à privacidade, ocorreu em um contexto de retomada de certa autonomia ao governo alemão, uma vez que a tropas de ocupação da Grã-Bretanha, França e Estados Unidos mantiveram o sistema de comunicações alemão sob supervisão até o acordo de transferência desse poder. Isso dependia da aprovação de uma emenda ao art. 10 da Constituição concedendo poderes ao parlamento para autorizar, por meio de lei, a vigilância sobre comunicações, retirando da esfera judicial o controle das ações dos órgão de vigilância.
Diante dessa emenda, os Estados-Membros (lander) de Hessen e Bremen, juntamente com um grupo de advogados e juízes, propuseram ações de inconstitucionalidade diante do Tribunal Federal argüindo a inconstitucionalidade diante aos art. 1º e 20, que dispõem sobre direitos fundamentais. O Tribunal, no entanto, julgou a emenda constitucional entendendo que restrições a direitos em função da proteção da integridade da Republica Federal da Alemanha e a proteção ao seu sistema democrático são permitidas. O Tribunal Federal declarou que ataques à democracia liberal não podem ser tolerados em nome de um uso abusivo dos direitos fundamentais.11


5.2 Venezuela

A Constituição da Venezuela se denomina um Estado Social Democrata de Direito e de Justiça no seu art. 2º, sendo descentralizado na forma federal. O Legislativo da União é unicameral, sendo que a representação dos 23 Estados federados se dá na Câmara de Deputados (Assembléia Nacional), cuja representação é proporcional à população de cada Estado-Membro. Embora os Estados não tenham uma representação no Senado (que inexiste) o art. 206 da Constituição prevê consulta aos Estados-Membros que se legislem em matéria de interesse desses entes federados. A consulta será feita à sociedade civil e às instituições dos Estados. A Constituição bolivariana traz diversos mecanismos democráticos participativos, superando a visão meramente representativa de constituições passadas.12
A reforma da Constituição ocorre por meio de emendas cuja iniciativa pode ser de 15% dos cidadãos (art. 340) inscritos no registro civil e eleitoral (voto facultativo) e de 30% dos integrantes da Assembléia Nacional e pelo Presidente da República. A emenda deverá ser aprovada pela maioria dos integrantes da Assembléia, seguindo o procedimento legislativo ordinário. O projeto de emenda é apresentado acompanhado de exposição de motivos, sendo, então, distribuído a cinco parlamentares, quando ocorre a primeira discussão. Posteriormente, o projeto é enviado às comissões da Assembléia, que deverão apresentar relatórios aprovados por 3/5 dos membros. Será, então, promovida uma segunda discussão, na qual os parlamentares discutirão artigo por artigo do projeto de emenda constitucional. A emenda aprovada será submetida a referendo popular após trinta dias de sua recepção formal.
Há, ainda, a previsão de um reforma ampla (uma revisão constitucional) prevista no arts. 343 a 345. A iniciativa será da maioria da Assembléia, ou 15% dos eleitores, ou, ainda, pelo Presidente da República. A aprovação da reforma ampla (revisão) deverá ocorrer até um prazo não superior a dois anos a contar do momento em que se aprovou a solicitação da reforma, com o voto de 2/3 dos integrantes da Assembléia Nacional. Após aprovação pela Assembléia, o projeto será submetido a referendo em trinta dias. O Presidente da Republica está obrigado a promulgar a reforma, bem como as emendas, nos dez dias seguintes à sua aprovação. Caso isso não ocorra, o art. 216 prevê que o Presidente da Assembléia Nacional e os dois vice-presidentes farão a promulgação.
Não há clausulas expressamente imodificáveis, mas o art. 350 dispõe que o povo da Venezuela desconhecerá qualquer regime, legislação ou autoridade que contrarie os valores, princípios e garantias democráticas e os direitos humanos. Segunda Flávia Maria Gontijo da Rocha,13 o mandamento do art. 350 é norma norteadora para as limitações que não figuram explicitamente, mas que são deduzidos do texto da Constituição.
Finalmente, a Constituição prevê a possibilidade de convocação de poder constituinte originário, uma nova Assembléia Nacional Constituinte, mediante acordo de 2/3 dos integrantes da Assembléia Nacional; pelos conselhos municipais em Assembléias, mediante voto de 2/3 de seus membros ou por 15% dos eleitores inscritos no registro civil e eleitoral. O presidente da Republica não poderá se opor à nova Constituição, que, uma vez promulgada, é publicada na Gazeta Oficial da Republica bolivariana ou na Gazeta da Assembléia Nacional.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

64- Artigos - Marx: Estado, poder e ideologia. José Luiz Quadros de Magalhães

MARX: ESTADO, PODER E IDEOLOGIA


José Luiz Quadros de Magalhães
Professor




Marx é um dos pensadores fundamentais para a compreensão do mundo em que vivemos. Alguns de seus escritos são de uma atualidade impressionante. Infelizmente, decorrente das diversas interpretações de suas idéias que formaram o marxismo e da aplicação prática destas em busca de uma sociedade justa, o seu nome foi sacralizado de forma positiva por alguns e de forma negativa por outros. No Brasil as palavras Marx e marxismo foram utilizadas, pela direita autoritária, como sinônimo de perda de liberdade e totalitarismo, e para muitos passaram a ser palavras vinculadas ao medo de perder sua propriedade e sua vida privada. Logo a direita autoritária que perseguiu, matou, torturou e privou milhões de brasileiros do acesso a um mínimo de dignidade e liberdade.
As conseqüências disto tudo são muito negativas, pois afasta do conhecimento da maioria um pensador que teve a coragem de desafiar os dogmas de uma sociedade excludente e buscou compreender suas engrenagens propondo alternativas. A sacralização de seu nome teve o efeito negativo de impedir o acesso a sua obra, e muitos o abominam sem nunca ter lido uma pagina do que ele escreveu.
Na academia, que se orgulha de ser um espaço de liberdade de pensamento (e me refiro neste momento aos cursos jurídicos) o seu pensamento foi, na maioria dos casos, vinculado à ausência da democracia, a algo superado que não merece nem ser conhecido, logo Marx, um radical defensor da democracia na sua forma mais ampla, includente e participativa.
Neste ensaio nos propomos dialogar um pouco com Marx e Engels, tentando entender sua idéia de Estado os problemas do exercício do poder deste, envolvendo, portanto a importante discussão sobre a ideologia como distorção do real e encobrimento dos jogos de poder.
Importante lembrar que as teorias enquanto simplificações coerentes e sistematizadas do real observado constroem códigos próprios, que passam a ser instrumentos, não só de compreensão mas também de limitação do campo de compreensão, e, muitas vezes, como exercício de poder de grupos sobre outros grupos. Ou seja, se o conhecimento pode ter o condão de libertar, o conhecimento elitizado, escondido em códigos secretos, ou labirintos lingüísticos, torna-se fator de dominação ideológica, dominação esta fundamental para a legitimação de poderes excludentes.
Simplificando e procurando simplificar a saída do labirinto, podemos pensar que o conhecimento científico, organizado e sistemático, construído sobre bases metodológicas, explica e reorganiza práticas que têm seu método e coerência própria, ou em outras palavras: o conhecimento popular e as práticas sociais não se resumem às manifestações tradicionais não reflexivas, fundamentos religiosos e preconceitos; da mesma forma que a ciência moderna impregnou-se de preconceitos, novas sacralizações e verdades formais arrogantes e pré-potentes. Sem negar um e outro, ou sem escolher um ou o outro, a história pode nos ensinar que por meio de uma racionalização podemos organizar a produção de um conhecimento construído no cotidiano, retirando os preconceitos e tradições não reflexivas do que chamamos “senso comum”, desde que a ciência também não construa preconceitos sofisticados e novas sacralizações para uma nova prática religiosa.
Ou: muitas pessoas em muitos momentos da história acharam que inventaram a roda, e muitos ainda continuam inventando.
Um outro problema decorre destas reflexões e se refletem diretamente no Direito moderno: a crença no individuo como unidade desconectada do entorno, como uma pretensão de soberania de vontade que permanece no tempo e como uma pessoa que permanece essencialmente a mesma. Em outras palavras uma identidade individual permanente. Esta ficção liberal pretende atribuir aos indivíduos criações, construções, invenções, inovações que são construções permanentes. Assim, em algum momento, a partir de uma construção histórica coletiva, alguém chega a um resultado, uma nova teoria, uma descoberta científica, uma inovação tecnológica, uma obra artística, etc. A lógica individualista leva a que esta pessoa se aproprie de anos, décadas, séculos de construção. Assim aprendemos que fulano inventou isto, cicrano descobriu aquilo outro e assim por diante. Essa pretensão nos retira a nossa compreensão de pessoas singulares e coletivas que somos, sempre fruto da vivencia com os outros, assim como recorta processos criativos. Marx não produziu sua teoria do nada, assim como Santos Dumont não partiu do zero para a construção de seu 14 Bis, e assim por diante. Tudo é fruto de processos coletivos de construção permanente, inclusive nós mesmos. A genialidade de alguns de nós, humanos, nos faz visualizar uma espécie de pescador: alguém que sem esforço encontra melodias, pesca sinfonias, e como que uma antena aberta ao universo é capaz de visualizar obras magistrais. Outros de nós são sistematizadores, capazes de captar séculos de construção e sintetizá-los em uma criação útil. Mas o que é fundamental para compreensão do complexo processo de transformação por que passamos, é a percepção de uma dinâmica e complexa unidade de uma história que se constrói permanentemente.

DA ATUALIDADE DE MARX NA PERCEPÇÃO DA IDEOLOGIA COMO DISTORÇÃO DO REAL, COMO ENCOBRIMENTO DOS INTERESSES QUE MOVIMENTAM A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA.

O processo ideológico distorce a realidade e cria certezas construídas sobre fatos pontuais que procuram explicar uma situação complexa. O elemento de dominação presente procura construir certezas na opinião pública uma vez que a afirmação vem acompanhada de um fato real que a pessoa pode constatar e a televisão o faz ao trazer a imagem. Portanto, a partir de uma situação que efetivamente ocorre mas que de longe não pode ser utilizada para explicar a complexidade do tema “socialismo”, quem detém a mídia constrói certezas e as certezas são o caminho curto para o preconceito. Quanto mais certezas as pessoas tiverem, quanto mais preconceituosas forem as pessoas, mas facilmente elas serão manipuladas por quem detém o poder de criar estas “verdades”. A certeza é inimiga da liberdade de pensamento e da democracia enquanto exercício permanente do dialogo. Quem detém o poder de construir os significados de palavras como liberdade, igualdade, socialismo e democracia, quem detém o poder de criar os preconceitos e de representar a realidade a seu modo, tem a possibilidade de dominar e de manter a dominação.
Entretanto, este poder não é intocável. A dominação tem limites e estes limites não são ficções cinematográficas.
Este poder encoberto pela representação distorcida (propositalmente distorcida) funda-se em ideologias, em mentiras. A grande mentira na qual estamos mergulhados é a mentira do mercado, da liberdade econômica fundada numa naturalização da economia como se esta não fosse uma ciência social mas uma ciência exata. A matematização da economia sustenta a insanidade vigente.
A força da ideologia se mostra quando ela é capaz de fazer com que as pessoas, pacificamente, concordem com o assalto privado aos seus bolsos. É impressionante a incapacidade de reação contra o sistema financeiro que furta do trabalhador diariamente sem que este esboce alguma reação. A falta de reação pode se justificar pela incapacidade de perceber a ação ou da aceitação da ação como algo natural. Tudo isto encontra fundamento em uma grande capacidade de geração de representações nas quais a pessoas passam a viver. Viver artificialmente em um mundo que não existe: matrix.
Se as pessoas acreditam que a história acabou, que chegamos a um sistema social, constitucional e econômico para o qual não tem alternativa, pois ele é natural, não há saída. Para estas pessoas, a alternativa que está gritando em seus ouvidos não é ouvida, a alternativa que está em seu campo de visão não é percebida pela retina.
Se a economia não é mais percebida como ciência social, se o status de suas conclusões passa para o campo da ciência exata, logo a economia não pode mais ser regulada pelo estado, pelo direito, pela democracia. Não posso mudar uma equação física ou matemática com uma lei. De nada vai adiantar. A matematização da economia é a grande mentira contemporânea. Se a economia é uma questão de natureza, se a economia não é história, quem pode decidir sobre a economia são os sábios e jamais o povo. Isto ajuda a entender, por exemplo, como um governo que se pretendia de esquerda adota uma política econômica conservadora de direita. Esta é a ideologia que sustenta um mundo governado pelo desejo cego de poder, dinheiro e sexo. A razão não manda no mundo, jamais mandou. O desejo conduz o ser humano. O problema não é o desejo comandar. O problema é que não são os nossos desejos que comandam, mas os desejos de poucos que nos fazem acreditar que os seus desejos são os nossos desejos.
A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder econômico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek “a luta pela hegemonia ideológico-politica é por conseqüência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas.” Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos mas sim direitos naturais quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Se afirmarmos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história e logo, o conteúdo destes direitos é construído pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto no qual todos possam fazer parte. Ao contrário, se afirmarmos estes direitos como naturais fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro. Este outro irá dizer o que é natural. Quem diz o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza?

FINALMENTE MARX: UM DIALÓGO COM O AUTOR SEM NENHUMA PRETENSÃO DE SER SEU FIEL TRADUTOR.

Após fazer um exercício de como a obra de Marx repercute na contemporaneidade (e no pensamento de importantes autores da esquerda democrática contemporânea como Giorgio Agambem, Slavoj Zizek, Alain Badiou entre outros) neste ponto vamos até Marx, estabelecendo um diálogo direto com alguns textos de sua obra.
Uma referência ao Estado como poder aparece na “A ideologia alemã: Feuerbach – a contraposição ente as cosmovisões materialista e idealista”:
“Entre os povos antigos, uma vez que muitas tribos viviam juntas em uma mesma cidade, a propriedade tribal aparece como propriedade do Estado, e o direito do individuo sobre ela, como simples possessio (lat.: posse) que, todavia, limita-se como a propriedade tribal em geral, apenas à propriedade da terra. A propriedade privada no seu sentido próprio começa, tanto entre os antigos como entre os povos modernos, com a propriedade imobiliária”
Neste momento a palavra Estado aparece como sinônimo de poder organizado sem necessariamente ser acompanhado do conceito de povo nacional (como identidade), território e soberania. Não há referencia a Hobbes e a sua compreensão de Estado moderno a partir do século XV após as lutas internas onde o poder do Rei se afirma perante os poderes dos senhores feudais, unificando o poder interno, unificando os exércitos e a economia, para então este mesmo poder se afirmar perante os poderes externos, os impérios e a Igreja. Neste conceito o Estado moderno tem um poder unificador numa esfera intermediária, pois cria um poder organizado e hierarquizado internamente, sobre os conflitos regionais, as identidades existentes anteriormente a formação do Reino e do Estado nacional que surge naquele momento. Este é o processo que ocorre em Portugal, Espanha, França e Inglaterra. Destes fatos históricos decorre o surgimento do conceito de uma soberania em duplo sentido: a soberania interna a partir da unificação do Reino sobre os grupos de poder representados pelos nobres (senhores feudais), com a adoção de um único exército subordinado a uma única vontade; a soberania externa a partir da não submissão automática à vontade do papa e ao poder imperial (multi-étnico e descentralizado).
Estado para Marx, aparece em um primeiro momento como exercício de poder e ainda como referência ao poder coletivo da tribo. A propriedade deste Estado seria a propriedade de toda tribo uma espécie de propriedade pública se contrapondo a propriedade privada que começa a aparecer sobre os bens móveis. Outro aspecto importante é o reconhecimento do direito à propriedade como um direito histórico, construído conceitualmente nas sociedades antigas e reconstruído permanentemente na história. Logo, o direito a propriedade privada não pode ser um direito natural, mas é sim um direito histórico, conceito que se torna preponderante no direito contemporâneo. Isto está claro quando no mesmo texto, continuando a referencia anterior, Marx e Engels se referem às mudanças do conceito de propriedade
“até chegar ao capital moderno, condicionado pela grande indústria e pela concorrência universal, que é a propriedade privada pura, que se despiu de toda aparência de comunidade e excluiu toda a influência do Estado sobre o desenvolvimento da propriedade. A essa propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno, o qual, comprado pouco a pouco pelos proprietários privados por meio dos impostos, termina por ficar completamente sob o controle destes pelo sistema da divida publica, cuja existência depende, por causa do jogo da alta da baixa dos valores do Estado e da baixa dos valores do Estado na Bolsa, inteiramente do crédito comercial que é concedido pelos proprietários privados, os burgueses.”
Lembramos que este texto foi escrito no século XIX e nos mostra o processo de privatização do poder do Estado que se torna refém do capital privado. Reconhecendo a natureza pública do Estado na história, Marx e Engels nos mostram como ocorreu na modernidade capitalista, a conquista do poder do Estado pelos burgueses. O momento histórico é de existência de um direito liberal puro, onde o direito de propriedade aparece como um direito absoluto. Embora a propriedade privada venha a ser limitada constitucionalmente a partir do constitucionalismo social e socialista no inicio do século XX (1917 – México e Rússia), os limites aos poderes dos proprietários dos meios de produção (especialmente a indústria) e do sistema financeiro (os bancos), se tornam cada vez mais escassos neste século XXI.
Uma idéia muito importante nos ajuda a enxergar o Estado burguês e a separação liberal entre estado e sociedade civil que este conceito promove. O trabalho de Marx e Engels em seus escritos consiste em revelar a verdade encoberta pela ideologia. Na Ideologia Alemã quando os autores trabalham as relações do Estado e do Direito com a propriedade estes observam que o Estado adquire uma existência particular, do lado de fora da sociedade civil, quando ocorre a emancipação da propriedade (agora privada) com relação à comunidade:
“mas tal Estado não é mais do que a forma de organização que os burgueses adotam, tanto para garantir reciprocamente a sua propriedade e a de seus interesses tanto em seu interior como externamente. Hoje em dia, a autonomia do Estado se verifica apenas nos países em que os estamentos ainda não se desenvolveram totalmente à condições de classes em que desempenham ainda algum papel (enquanto nos países mais evoluídos são extintos); são países que apresentam um situação híbrida, onde por conseqüência, nenhuma parcela da população pode vir a dominar a outra. Esse é o caso principalmente da Alemanha. A América do Norte é o exemplo mais acabado de Estado moderno. Os escritores franceses, ingleses e americanos, em geral, dizem todos que o Estado só existe por causa da propriedade privada, de tal maneira que esta idéia acabou por passar para o senso comum.”
Estado não é só o Estado burguês moderno, e a separação estado/sociedade civil é uma criação ideológica da burguesia não correspondente às formas estatais anteriores, onde a propriedade ainda não havia sido desvinculada da comunidade. Podemos também destacar o fato de que a idéia de espaço público não se confunde com o Estado para Marx e Engels: existe um estado, que se confunde com a sociedade, caracterizado pela democracia radical participativa sendo, portanto, espaço público; existe um estado privatizado pela burguesia que se transforma em instrumento de repressão e proteção da propriedade privada e demais interesses desta burguesia, um falso espaço público justificado ideológicamente para exercer o controle policial; existe uma sociedade sem estado, grande expressão da democracia radical final.
Lembrando que este texto foi escrito em 1845/46, Marx e Engels observam que quando a burguesia deixa de ser um estamento e se torna uma classe, esta se vê obrigada a organizar-se em nível nacional, e não apenas localmente, e de forma ideológica passa a dar seus interesses particulares forma universal. A forma estamental implica que cada grupo da sociedade tem seu “status” jurídico próprio. Cada grupo permanece na sua posição com regime jurídico próprio, sendo que neste Estado cada um pode subsistir e permanecer. Quando a burguesia ultrapassa seus limites originários assumindo o poder político, passa a ter um projeto de poder nacional e global. Seus valores, suas idéias, seus projetos, seus interesses são postos para todos como sendo universais. Este processo de construção de uma ideologia que distorce a realidade e transforma em senso comum, falsas verdades, ganha força e sofisticação com o tempo, sendo hoje um processo sofisticado que faz com que milhões, bilhões de pessoas, sejam levadas a acreditar no capitalismo e na propriedade privada como valores religiosos, e logo passem a agir e a sustentar um sistema que é contra elas mesmas. É a sacralização de palavras e objetos como trata Giorgio Agambem.
Marx e Engels nos levam a refletir sobre a construção do senso comum, a grande luta que travamos hoje na contemporaneidade, onde o grupo no poder tem a possibilidade de construir o significado dos significantes.
O Estado (burguês) neste ponto aparece claramente como instituição que tem a função de assegurar e conservar a dominação e a exploração de classe. A atenção que os autores dão a separação do Estado da sociedade civil, vinculada à separação da propriedade da comunidade (com a sacralização da propriedade privada) nos leva a entender qual a democracia é defendida pelos autores e daí para a compreensão de outros conceitos desenvolvidos na obra de Marx: a democracia não pode ser a democracia institucionalizada na democracia representativa presente na estrutura do Estado, que como visto é uma instituição existente para manter a dominação de um grupo sobre o outro. Esta democracia só pode apresentar um resultado sempre favorável a burguesia e seus limites são postos pela Constituição, não se admitindo nenhuma mudança que vá alem das mudanças permitidas na Constituição e, por muito tempo, sustentadas por uma idéia de direito natural construída pelo mesmo grupo que se encontra no poder em um momento, ou como critica Marx, em um outro momento reduzindo o Direito à Lei. Daí percebermos como, mesmo a democracia representativa, é meramente tolerada pela burguesia, pois uma vez que adotamos estes processos democráticos burgueses para transformar a sociedade, afetando os interesses da burguesia, ocorre imediatamente uma ruptura com a ordem jurídica institucionalizada e constitucionalizada (Brasil 1964; Chile 1973; Venezuela 2002).
A democracia para Marx será a democracia participativa, popular, que não permita a cisão entre Estado e sociedade, e que não trabalha com esta dicotomia liberal Estado e sociedade civil e nem tampouco com o conceito de sociedade civil mas de uma sociedade que assume o controle do destino do Estado, que se confunde com o Estado até sua superação.
Ainda em referência ao trecho anteriormente citado, o estado moderno se afirma com o capitalismo industrial, no momento em que se refere aos Estados Unidos como exemplo acabado de estado moderno. A referência para a adoção deste entendimento é obviamente a mudança dos modos de produção e o surgimento de uma burguesia como classe social antagônica ao proletariado assalariado. No trecho seguinte, entretanto, se refere a afirmação da modernidade com o fim do feudalismo, indicando um processo histórico dinâmico de construção do estado moderno que começa com a superação do feudalismo no século XV e avança para a forma de capitalismo liberal no século XVII e XVIII.
Em outro trecho mas ainda no mesmo texto da “A ideologia alemã” encontramos a referência a um espaço público não estatal. Marx e Engels observam ainda que o direito privado desenvolve-se ao lado da propriedade privada como conseqüência da desintegração da comunidade natural:
“Entre os romanos, o desenvolvimento da propriedade privada e do direito privado não teve nenhuma conseqüência industrial ou comercial porque todo o seu modo de produção continuava a ser o mesmo. Entre os modernos, em que a comunidade feudal foi dissolvida pela indústria e o comércio, o surgimento da propriedade privada e do direito privado marcou o começo de uma nova etapa, capaz de um posterior desenvolvimento.”
Os autores observam que assim que ocorre um desenvolvimento considerável do comércio e da indústria em países europeus ocorre a retomada do direito romano, sendo este elevado a categoria de autoridade. Com o crescimento do poder da burguesia e a utilização desta pelos príncipes com a finalidade dissolver o poder feudal, ocorre o desenvolvimento do Direito privado em todos os países. Mesmo na Inglaterra foram adotados princípios de direito romano na base de seu direito privado, especialmente no caso da propriedade imobiliária. Lembra Marx que, nem o direito, nem a religião, têm uma histórica própria, uma vez que as mudanças históricas ocorridas são frutos de interesses que ocorrem na esfera econômica.
“No direito privado, as relações de propriedade existentes são declaradas como o resultado da vontade geral. O próprio jus utendi et abutendi (lat.: direito de usar e abusar) exprime, de um lado, o fato de que a propriedade privada tornou-se completamente independente da comunidade e, de outro lado, a ilusão de que a própria propriedade privada repousa unicamente na vontade privada, na livre disposição das coisas. Na prática, o abuti (abusar) tem limites econômicos bem determinados para o proprietário privado, se este não quer que sua propriedade, e com ela seu jus abutendi (direitos de abusar), para outras mãos; isso porque, afinal, a coisa, considerada simplesmente em sua relação com a sua vontade, não é inteiramente uma coisa, mas apenas no comercio e independentemente do direito se torna algo, uma propriedade real (uma relação a qual os filósofos denominam de idéia). Essa ilusão jurídica que reduz o direito à mera vontade, leva inevitavelmente, no desenvolvimento posterior das relações de propriedade, ao resultado de que uma pessoa possa ter um título jurídico de algo sem realmente tê-lo.”
Explicando melhor sua idéia Marx e Engels exemplificam com o fato de que um proprietário de terra que não dispõe de capital nada poderá fazer com seu lote de terra mas mesmo assim terá o titulo jurídico de propriedade e logo o direito de ‘usar e abusar’ (jus utendi et abutendi).
Ficção pior ocorre quando o direito proclama a liberdade e a igualdade sem a existência concreta dos meios para exercício desta liberdade e igualdade. Todos são livres e iguais mas poucos têm efetivamente meios para o exercício de sua liberdade e o reconhecimento prático, real, de sua igualdade.
A referência permanente à ilusão, à representação distorcida que encobre os reais jogos de poder é de uma atualidade impressionante em tema recorrente em importantes filósofos contemporâneos do pensamento de esquerda.


CONCLUSÃO


Marx jamais fez uma análise sistemática do Estado. Entretanto em diversos momentos de suas reflexões encontramos o Estado. Talvez pela não sistematização do estudo do Estado algumas reflexões podem parecer contraditórias. Como mencionamos, leitura é interpretação, e de acordo do lugar de onde se lê, leitores diferentes compreenderão de forma diferente os sistema teórico que compreende sua obra. A obra de Marx e de Engels, assim como de todos os pensadores que transformaram a ciência e a sociedade com suas idéias, é uma obra livre. Cientifica, mas livre. É difícil escrever algo novo, transformador com as argolas pesadas dos rigores formais da academia contemporânea, preocupada com quantidade e formalidade, prendendo as idéias entre margens medidas, obras citadas, palavras chave, resumos, introduções e conclusões. Isto não é método. Método é outra coisa. Isto é aprisionamento do conteúdo à forma.
Neste trabalho procuramos estabelecer um dialogo livre com a obra de Marx, especialmente no que se refere à idéia de Estado, trabalho que não cabe nas paginas propostas. Logo estas reflexões se apresentam como reflexões iniciais e provocadoras, para que o leitor se aventure pelas páginas escritas por Marx e Engels. Não se faz ciência com preconceitos ou dogmas, nem tampouco com formas e medidas.
A concepção clássica de Estado de Marx e Engels aparece no manifesto comunista: “O executivo do Estado moderno nada mais é do que um comitê para a administração dos assuntos comuns de toda a burguesia”. Entretanto uma visão mais rica do Estado pode ser encontrada em uma visão sistêmica de sua obra especialmente no trabalho “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (1843), nos seus escritos históricos como, por exemplo, “As lutas de classe na França de 1848 a 1850” (1850); o “Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte” (1852) e “A guerra civil na França” (1871).
Escolhemos para diálogo e reflexão neste artigo, um texto de Marx e Engels, especialmente um pequeno e importante trecho de “A ideologia alemã”, visando assim trazer para o leitor reflexões, dúvidas e com isto o interesse em enfrentar uma obra que não vale apenas pelo seu valor histórico, mas que permanece atual nesta crise da modernidade, onde para entendermos o que se passa devemos entender como chegamos aqui, e ninguém melhor do Marx para nos acompanhar nesta difícil empreitada. Portanto, deixem o preconceito de lado, abram o livro e pensem livre.
Encerramos estas reflexões com uma análise de uma obra de um autor contemporâneo que mostra os frutos do pensamento vivo de Marx e Engels. Entre marxistas, pós-marxistas ou neo-marxistas, o importante não é consagrar Marx, nem reproduzir integralmente seu pensamento, colocá-lo em um museu ou coisa assim. O importante é perceber na dinamicidade da histórica que o que Marx e Engels pensaram e ensinaram foi recebido e transformado, seguindo uma dinâmica que os autores foram capazes de nos revelar.
Para Giorgio Agambem, pensador italiano contemporâneo, o capitalismo tem três fortes características religiosas específicas:
a) É uma religião do culto mais do que qualquer outra. No capitalismo tudo tem sentido relacionado ao culto e não em relação a um dogma ou idéia. O culto ao consumo; o culto a beleza; a velocidade; ao corpo; ao sexo; etc.
b) É um culto permanente sem trégua e sem perdão. Os dias de festas e de férias não interrompem o culto, mas, ao contrário o reforça.
c) O culto do capitalismo não é consagrado à redenção ou a expiação da falta uma vez que é o culto da falta. O capitalismo precisa da falta para sobreviver. O capitalismo cria a falta para então supri-la com um novo objeto de consumo. Assim que este objeto é consumido outra falta aparece para ser suprida. O capitalismo talvez seja o único caso de um culto que ao expiar a falta mais torna a falta universal.

O capitalismo, por ser o culto, não da redenção e sim da falta, não da esperança, mas do desespero, faz com que este capitalismo religioso não tenha como finalidade a transformação do mundo mas sim sua destruição.
Existe no capitalismo um processo incessante de separação única e multiforme. Cada coisa é separada dela mesma não importando a dimensão sagrado/profano ou divino/humano. Ocorre uma profanação absoluta sem nenhum resíduo que coincide com uma consagração vazia e integral. Ou seja, o capitalismo profana as idéias, objetos, nomes não para permitir o livre uso mas para ressacralizar imediatamente. Um automóvel não é mais um objeto que é usado para o transporte mas sim um objeto de desejo que oferece para quem compra status, poder, velocidade, emoção, reconhecimento. O consumidor em geral não compra o bem que pode transportá-lo. O que o consumidor compra não pode ser apropriado pois o que é consumível é inapropriável. O consumidor compra o status, o reconhecimento, a ilusão de poder, a velocidade, e isto não pode ser apropriado, isto desaparece na medida em que é consumido. Trata-se de um fetiche incessante. Ao conferir um novo uso a ser consumido, qualquer uso durável se torna impossível: está é a esfera do consumismo.
Na lógica da sociedade de consumo a profanação torna-se quase impossível pois o que se usa não é o uso inicial do objeto mas o novo uso dado pelo capitalista. Logo o que se consome se extingue e desaparece e, portanto, não pode ser dado novo uso. Não há possibilidade de liberdade dentro deste sistema. O novo uso o da liberdade exige enxergarmos este processo de aprisionamento da lógica capitalista consumista.
O consumo pode ser visto como uso puro que leva a destruição da coisa consumida. O consumo é, portanto, a negação do uso que pressupõe que a substancia da coisa fique intacta. No consumo a coisa desaparece no momento do uso.
A propriedade é uma esfera de separação. A propriedade é um dispositivo que desloca o livre uso das coisas para uma esfera separada que se converte no estado moderno em direito. Entretanto o que é consumido não pode ser apropriado. Os consumidores são infelizes nas sociedades de massa não apenas porque eles consomem objetos que incorporam uma não aptidão para o uso, mas também, sobretudo, porque eles acreditam exercer sobre estas coisas consumidas o seu direito de propriedade. Isto é insuportável e torna o consumo interminável. Como não me aproprio do que consumi tenho que consumir de novo e de novo para alimentar a ilusão de apropriação. Está escravidão ocorre pela incapacidade de profanar o bem consumido e pela incapacidade de enxergar o processo no qual o consumidor está mergulhado até a cabeça.


CITAÇÕES E OBSERVAÇÕES

1- A palavra sacralização aparece aqui com o sentido que esta tem na obra Giorgio Agambem O pensador Giorgio Agambem ( AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris, 2005, Editora Payot et Rivages) faz uma importante reflexão a respeito da construção das representações e da apropriação dos significados, o que o autor chama de sacralização como mecanismo de subtração do livre uso das pessoas das palavras e seus significados; coisas e seus usos; pessoas e sua significação histórica.
O Autor começa por explicar o mecanismo de sacralização na antiguidade. As coisas consagradas aos deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas. Há uma subtração do livre uso e do comércio das pessoas. A subtração do livre uso é uma forma de poder e de dominação. Assim consagrar significa retirar do domínio do direito humano sendo sacrilégio violar a indisponibilidade da coisa consagrada.
Ao contrário profanar significa restituir ao livre uso das pessoas. A coisa restituída é pura, profana, liberada dos nomes sagrados, e logo, livre para ser usada por todos. O seu uso e significado não estão condicionados a um uso especifico separado das pessoas. A coisa restituída ao livre uso é pura no sentido que não carrega significados aprisionados, sacralizados.
Concebendo a sacralização como subtração do uso livre e comum, a função da religião é de separação. A religião para o autor não vem de “religare”, religar, mas de “relegere” que significa uma atitude de escrúpulo e atenção que deve presidir nossas relações com os deuses. A hesitação inquietante (ato de relire) que deve ser observada para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une os homens aos deuses mas sim aquilo que quer mantê-los separados. A religião não é religião sem separação. O que marca a passagem do profano ao sagrado é o sacrifício.
O processo de sacralização ocorre com a junção do rito com o mito. É pelo rito que simboliza um mito que o profano se transforma em sagrado. Os sacrifícios são rituais minuciosos onde ocorre a passagem para outra esfera, a esfera separada. Um ritual sacraliza e um ritual pode devolver ou restituir a coisa (idéia, palavra, objeto, pessoa) à esfera anterior. Uma forma simples de restituir a coisa separada ao livre uso é o toque humano no sagrado. Este contágio pode restituir o sagrado ao profano.
A função de separação, de consagração, ocorre nas sociedades contemporâneas em diversas esferas onde o recurso ao mito juntamente com rito cumpre uma função de separação, de retirada de coisas, idéias, palavras e pessoas do livre uso, da livre reflexão, da livre interlocução, criando reconhecimentos sem possibilidade de diálogo. A religião como separação, como sacralização, há muito invadiu a política, a economia e as relações de poder na sociedade moderna. O capitalismo de mercado é uma grande religião que se afirma com a sacralização do mercado e da propriedade privada. As discussões que ocorrem na esfera econômica são encerradas com o recurso ao mito para impor uma idéia sacralizada a toda a população. No espaço religioso do capitalismo não há espaço para a racionalidade discursiva pois qualquer tentativa de questionar o sagrado é sacrilégio. Não há razão e sim emoção no espaço sacralizado das discussões de política econômica. Por isto os proprietários reagem com raiva à tentativa de diálogo, pois para eles este diálogo é um sacrilégio, questiona coisas e conceitos sacralizados há muito tempo.
Este recurso está presente no poder do estado e em rituais diários do poder: a posse de um juiz, de um presidente, a formatura, a ordenação de padres e outros rituais mágicos transformam as pessoas em poucos minutos, separando a pessoa de antes do ritual para uma nova pessoa após o ritual. Isto ganha tanta força no mundo contemporâneo que varias pessoas que freqüentam um curso superior hoje não pretendem adquirir conhecimentos, o processo de passagem por um curso não é para adquirir conhecimentos mas para cumprir créditos (até a linguagem é econômica) para no final passar pelo rito que o transformará de maneira mágica em uma nova pessoa. O objetivo é o rito, a certificação da passagem por meio do diploma e não a aquisição do conhecimento. O espaço universitário está sendo transformado pela religião capitalista em algo mágico, onde o conhecimento a ser adquirido no decorrer de um processo que deveria ser transformador perde importância em relação ao rito (a formatura) e o mito (o diploma).


2-Importante lembrar que não negamos a condição autopoiética da vida. Somos seres interpretativos. Tudo é interpretação e a interpretação é condicionada por cada condição humana. A representação distorcida com o objetivo de manipulação é feita com este objetivo. Estamos aqui falando de honestidade nas comunicações. Honestidade dos argumentos utilizados no diálogo democrático. A representação distorcida que encobre os jogos de poder é desonesta. O objetivo é dominar, enganar e não dialogar.
“...a ideologia oculta o caráter contraditório do padrão essencial oculto, concentrando o foco na maneira pela qual as relações econômicas aparecem superficialmente. Esse mundo de aparências constituído pela esfera de circulação não só gera formas econômicas de ideologia, como também é um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem, onde reinam a liberdade e igualdade. (O Capital I, cap. VI) “Sob este aspecto, o mercado é também a fonte da ideologia política burguesa: a igualdade e a liberdade são, assim, não apenas aperfeiçoadas na troca baseada em valores de troca, como também a troca dos valores de troca é a base produtiva real de toda igualdade e liberdade. “(Crundise, Capítulo sobre o capital) “Mas é claro que a ideologia burguesa da liberdade e da igualdade oculta o que ocorre sob o processo superficial de troca, onde essa aparente igualdade e liberdade individuais desaparecem e revelam-se como desigualdade e falta de liberdade.” (Dicionário de pensamento marxista editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).

3- Algumas palavras problemáticas apareceram no texto: ideologia e desejo. Palavras cheias de sentidos diversos, localizadas no tempo e no espaço. A palavra ideologia aparece no sentido marxista: “Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciaram diretamente o conceito de ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica a religião desenvolvida pelo materialismo francês e por Feuerbach e, de outro, a crítica da epistemologia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito realizada pela filosofia alemã da consciência (ver idealismo) e particularmente por Hegel. Não obstante, enquanto essas críticas não conseguiram relacionar as distorções religiosas ou metafísicas com condições sociais especificas, a crítica de Marx e Engels procura mostrar a existência de um ele necessário entre formas “invertida” de consciência e a existência material dos homens. É esta relação que o conceito de ideologia expressa, referindo-se a uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais (ver contradição) e as oculta. Em conseqüência disso, desde o início, a noção de ideologia apresenta uma clara conotação negativa e critica. .” (Dicionário de pensamento marxista editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).

4- ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l´intolérance. Climats, 2004, Paris, pag. 18. Interessante não apenas ler este livro como a obra deste fascinante pensador esloveno. Vários livros já foram traduzidos e publicados no Brasil: Bem vindo ao deserto do real e As portas da revolução são duas obras importantes.

5- Marx e Engels, obras escolhidas em três tomos, tomo I, Edições Avante – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo, 1982, pág. 71. A mesma tradução para o português mantida no livro “A ideologia alemã – Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista”, Marx e Engels, Editora Martins Claret, São Paulo, 2006, pág. 97.

6- CREVELD, Martin van Creveld. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004 e CUEVA, Mario de la. La idea del Estado, Fondo de Cultura Econômica, Universidad Autônoma de México, Quinta Edição, México, D.F., 1996.

7- Marx e Engels, obras escolhidas em três tomos, tomo I, Edições Avante – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo, 1982, pág. 72. A mesma tradução para o português mantida no livro “A ideologia alemã – Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista”, Marx e Engels, Editora Martins Claret, São Paulo, 2006, pág. 98

8- Marx e Engels, obras escolhidas em três tomos, tomo I, Edições Avante – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo, 1982, pág. 72. A mesma tradução para o português mantida no livro “A ideologia alemã – Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista”, Marx e Engels, Editora Martins Claret, São Paulo, 2006, pág. 98.

9- O pensador Giorgio Agamben (AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris, 2005, Editora Payot et Rivages) faz uma importante reflexão a respeito da construção das representações e da apropriação dos significados, o que o autor chama de sacralização como mecanismo de subtração do livre uso das pessoas as palavras e seus significados; coisas e seus usos; pessoas e sua significação histórica. O Autor começa por explicar o mecanismo de sacralização na antiguidade. As coisas consagradas aos deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas. Há uma subtração do livre uso e do comércio das pessoas. A subtração do livre uso é uma forma de poder e de dominação. Assim consagrar significa retirar do domínio do direito humano sendo sacrilégio violar a indisponibilidade da coisa consagrada. Ao contrário profanar significa restituir ao livre uso das pessoas. A coisa restituída é pura, profana, liberada dos nomes sagrados, e logo, livre para ser usada por todos. O seu uso e significado não estão condicionados a um uso especifico separado das pessoas. A coisa restituída ao livre uso é pura no sentido que não carrega significados aprisionados, sacralizados. Concebendo a sacralização como subtração do uso livre e comum, a função da religião é de separação. A religião para o autor não vem de “religare”, religar, mas de “relegere” que significa uma atitude de escrúpulo e atenção que deve presidir nossas relações com os deuses. A hesitação inquietante (ato de relire) que deve ser observada para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une os homens aos deuses mas sim aquilo que quer mantê-los separados. A religião não é religião sem separação. O que marca a passagem do profano ao sagrado é o sacrifício.

10- A representação pode ajudar a compreender as relações de poder ou pode ajudar a encobri-las. O poder do Estado necessita da representação para ser exercido e neste caso a representação sempre mostra algo que não é, algumas vezes do que deveria ser, mas, em geral, propositalmente o que não é. A Representação pode, de um lado, ao distorcer a aparência revelar o que se esconde atrás desta e de outra forma encobrir os reais jogos de poder, os reais interesses e as reais relações de poder.

11- Várias são as formas de dominação. Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos significantes. Tem poder quem é capaz de tornar as coisas naturais, “a automatização das coisas engole tudo, coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo da guerra.” (Ler GISNSBURG, Carlo. Olhos de madeira, editora Companhia das Letras, São Paulo, 2001). Diariamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida social e privada nos leva a automação a que se refere Ginsburg. A automação nos impede de pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há porque pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonhá-lo. Basta repetir o roteiro previamente escrito e repetido pela maioria. Tem poder quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se eu tenho certeza não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza.

12- Marx e Engels, obras escolhidas em três tomos, tomo I, Edições Avante – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo, 1982, pág. 73. A mesma tradução para o português mantida no livro “A ideologia alemã – Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista”, Marx e Engels, Editora Martins Claret, São Paulo, 2006, pág. 99.

13- Marx e Engels, obras escolhidas em três tomos, tomo I, Edições Avante – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo, 1982, pág. 72. A mesma tradução para o português mantida no livro “A ideologia alemã – Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista”, Marx e Engels, Editora Martins Claret, São Paulo, 2006, pág. 100.

14- AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris, 2005, Editora Payot et Rivages.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

61 a 64 - Teoria da Constituição 10 a 13 - Poder Constituinte - Amplitude, titularidade e natureza

A TEORIA DO PODER
CONSTITUINTE

José Luiz Quadros de Magalhães


A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE


            Conforme temos trabalhado até o momento, os teóricos do Direito Constitucional são quase unânimes em afirmar que o constitucionalismo moderno começa a ser formado no processo que se inicia com a Magna Carta na Inglaterra em 1215. Entretanto, ali não está presente a ideia de uma Assembleia Nacional Constituinte que, elaborando uma Constituição, dará início a uma nova realidade constitucional, fruto da vontade de um poder soberano e baseado na vontade popular. Temos, portanto, duas realidades constitucionais que hoje parecem, lenta e gradualmente, se fundirem, mas que ainda são muito distintas.
            Embora o Brasil tenha sofrido influência do Direito estadunidense (a partir da Constituição de 1891 copiando diversas instituições dos Estados Unidos da América, como o federalismo, o presidencialismo, o seu modelo bicameral, o modelo de Suprema Corte e o modelo de controle difuso de constitucionalidade), nossa tradição constitucional é construída a partir do modelo continental europeu, fazendo do nosso constitucionalismo complexo e rico, pois representa uma síntese de dois grandes sistemas jurídicos modernos, o que pode ser expresso no nosso controle misto de constitucionalidade das leis.
            Entretanto, há algo em comum entre o modelo estadunidense e o europeu continental não compartilhado pela Inglaterra: a existência de um poder constituinte originário, inicial, soberano e de primeiro grau, capaz de romper com a ordem anterior e iniciar uma nova vida jurídica constitucional com a nova Constituição.
Vamos procurar explicar de forma sintética e em uma linguagem acessível ao maior número de pessoas, a teoria moderna (europeia e norteamericana) do poder constituinte, adotada no Brasil, para que possamos participar do debate sobre a possibilidade de uma "constituinte exclusiva" para o Brasil.

1 O PODER CONSTITUINTE


            Segundo a visão de diversos constitucionalistas, a diferenciação entre Poder Constituinte e Poder Legislativo ordinário ganhou ênfase e concretização na Revolução Francesa, quando os Estados-Gerais, por solicitação do Terceiro Estado, se proclamaram como Assembleia Nacional Constituinte sem nenhuma convocação formal.
            Na França revolucionária (1789), foram superadas as velhas teorias que determinavam a origem divina do poder, afirmando, a partir de então, que o povo (seja diretamente ou através de uma assembleia representativa), era o titular da soberania e, por isso, titular do Poder Constituinte. Entendia-se, então, que a Constituição deveria ser a expressão da vontade do povo, a expressão da soberania popular. Ideias que podem parecer um pouco românticas ou artificiais em uma compreensão teórica transdisciplinar contemporânea. Podemos dizer que as dificuldades (ou impossibilidade) contemporâneas para afirmar a existência de uma (única) vontade popular, em sociedades de extrema complexidade, é bem maior hoje que no passado, mas sempre estiveram presentes no Estado moderno. Por mais democrático que tenha sido qualquer poder constituinte, vamos encontrar no complexo jogo de poder, por trás da constituinte, aqueles que têm a capacidade ou a possibilidade de impor seus interesses com mais força do que outros.
            Podemos dizer que a elaboração geral da teoria do poder constituinte nasceu, na cultura europeia, com SIÉYÈS, pensador e revolucionário francês do século XVIII. A concepção de soberania nacional na época, assim como a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos com poderes derivados do primeiro é contribuição deste pensador.
            Siéyès afirmava que objetivo ou o fim da assembleia representativa de uma nação (leia-se do povo, ou seja, dos que se sentem parte do Estado nacional) não pode ser outro senão aquele que ocorreria se a própria população pudesse se reunir e deliberar no mesmo lugar. Ele acreditava que não poderia haver tanta insensatez a ponto de alguém, ou um grupo, na assembleia geral, afirmar que os que ali estão reunidos devem tratar dos assuntos particulares de uma pessoa ou de determinado grupo.1
À conclusão da escola clássica francesa compreendendo a Constituição como um certificado da vontade política do povo nacional, – sendo que para que isso ocorra deve ser produto de uma assembleia constituinte representativa da vontade deste povo – se opõe Hans Kelsen, que afirma que a Constituição provém de uma norma fundamental.2  Importante ressaltar, neste ponto, que os conceitos dos diversos autores serão influenciados pela compreensão da natureza do poder constituinte: seja um poder de fato ou um poder de direito.
            Outro aspecto que devemos compreender sobre o poder constituinte é relativo à sua amplitude. Alguns autores entendem que o poder constituinte se limita à criação originária do Direito enquanto outros compreendem que esse poder constituinte é bem mais amplo, incluindo uma criação derivada do Direito por meio da reforma do texto constitucional, adaptando-o aos processos de mudança sociocultural,3 e ainda o poder constituinte decorrente, característica essencial de uma federação, quando os entes federados recebem (ou permanecem com) parcelas de soberania, expressas nas competências constitucionais dos estados membros elaborarem suas constituições e os municípios suas leis orgânicas.
            Finalmente, um terceiro aspecto a ser compreendido, e sobre o qual também existem divergências, diz respeito à titularidade do poder constituinte.
Para a melhor compreensão desta matéria, é necessário estudar separadamente cada um desses elementos. Não se pode vincular, como pretenderam alguns, o posicionamento com relação à natureza do poder constituinte com a sua amplitude e mesmo com sua titularidade em determinados casos.

2- A AMPLITUDE DO PODER CONSTITUINTE

            Vamos encontrar em diversas obras clássicas do constitucionalismo nacional e estrangeiro a afirmativa de que o Poder Constituinte é o poder de criar, emendar e revisar a Constituição, assim como aqueles que discordam, afirmando que o poder constituinte será apenas aquele que cria a Constituição.
            A importância dessa discussão teórica, aparentemente de menor valor, reside nas fundamentações teóricas da força do poder de reforma (por meio de emenda e revisão), que chegaria no entendimento de alguns, a quase a força de uma nova constituinte, em que os limites materiais, circunstanciais, formais e temporais, praticamente desapareceriam. O problema central dessa discussão é a segurança que a Constituição deve oferecer às relações jurídicas. Se admitirmos a compreensão de que o poder de reforma pode tudo, chegaríamos a uma situação de grande insegurança, pois maiorias qualificadas no parlamento poderiam quase tudo. É obvio que o simples fato de chamarmos o poder de reforma de poder constituinte derivado não é o bastante para lhe oferecer tal força, mas é importante que isso fique bem claro, e para tal enfrentamos essa questão, para posteriormente discutirmos o mais importante: os limites necessários ao poder de reforma, seja através de emendas ou seja por meio de revisão.
            Retornamos, pois, à antiga discussão para compreendermos o perigo que reside por detrás dos rótulos, teorias que, ao oferecerem muita força ao Legislativo ordinário para mudar a Constituição, podem retirar o que de há de essencial no constitucionalismo moderno, ou seja, a busca da segurança, até mesmo contra maiorias qualificadas no parlamento, que podem estabelecer uma espécie de absolutismo da maioria ou ditadura da maioria que, como um rolo compressor, desmonta a Constituição. Essa discussão é ainda especialmente importante quando presenciamos problemas vividos pela democracia representativa, em que o financiamento privado de campanha, o poder econômico concentrado, inclusive na mídia, além de outros mecanismos de controle, constroem maiorias parlamentares que muitas vezes defendem interesses de poucos em detrimento de muitos, mas que se legitimam por intermédio da aparente democracia representativa.
            Importante notar que muitos dos autores clássicos, ao negarem a amplitude maior do poder constituinte, incluindo o poder de reforma como poder constituinte derivado, não tinham sempre a intenção de preservar a Constituição, protegendo, assim, a segurança jurídica e os direitos fundamentais diante de maiorias autoritárias ou sem limites. Essa é a questão central que nos interessa.
            Seguindo essa linha de raciocínio e buscando na sociologia elementos essenciais para a compreensão do fenômeno constituinte, podemos afirmar que, embora o poder constituinte originário não tenha limites no ordenamento jurídico positivo com o qual está rompendo, esse poder sofre, de maneira clara e inegável, limitações de caráter social, cultural e forte influência do jogo de forças econômicas, sociais e políticas no momento da elaboração da Constituição.
            Talvez seja necessário, neste ponto, uma diferenciação importante: o que são os limites legítimos a ação da assembleia constituinte? Podemos dizer que os limites decorrentes das influências dos diversos grupos de interesses presentes numa sociedade complexa, e que são elementos legitimadores e democráticos do processo constituinte, são aqueles manifestos de forma livre e dialógica na relação entre sociedade e representantes constituintes, e os limites ilegítimos, não democráticos, são decorrentes de influências do poder econômico no processo eleitoral de escolha dos representantes, mediante abuso do poder econômico e de pressão econômica ou outras formas não democráticas, puramente corporativas, sobre o processo de votação na assembleia constituinte. Importante lembrar, que essas formas ilegítimas, sempre estiveram presentes nos Estados de economia capitalista, com maior ou menor influência, pois são decorrentes da própria lógica do jogo capitalista, inerente a esse sistema econômico. O que resta fazer, neste sistema, é desenvolver mecanismos que permitam diminuir as influências ilegítimas, pois decorrentes de pequenos grupos egoístas que querem impor seus interesses perante a maioria e perante todos os outros grupos de interesse de maneira não equilibrada e ideológica (compreendendo ideologia no sentido negativo de encobrimento e distorção proposital das ideias e fatos) .

Temos então, até aqui, as seguintes conclusões:

• O poder constituinte originário é o poder de criar a Constituição e logo uma nova ordem jurídica soberana.
• Esse poder é soberano e não sofre limites no ordenamento jurídico-positivo anterior com o qual ele está rompendo.
• Embora não haja limites jurídico-positivos no ordenamento anterior, há limites de ordem social, cultural e econômico. Estes limites e condicionamentos são legítimos desde que manifestos de forma democrática e dialógica, em um processo de comunicação entre os representantes e os diversos grupos e campos de interesse presentes na sociedade e nos movimentos sociais.
• A legitimação democrática do poder constituinte originário não se esgota na eleição dos membros da assembleia nacional constituinte ou de uma possível ratificação popular da Constituição por meio de um referendo.
• Há, entretanto, pressões de pequenos grupos privilegiados (corporações, poder econômico concentrado, mídia concentrada, etc) que, de maneira diferenciada em sociedades diferentes, exercem pressão ilegítima, pois desequilibram de forma não democrática o complexo processo de construção de um texto constitucional que represente e proteja o direito de todos e grupos e pessoas existentes na sociedade, sem privilégios e sem desigualdades.
• A amplitude do poder constituinte significa o reconhecimento de outras formas de poder constituinte além do poder de criar a Constituição.
• Essas outras formas de poder constituinte seriam o poder de reforma chamado de poder constituinte derivado e o poder constituinte decorrente pertencente aos entes federados de um Estado federal, que no nosso caso são os Estados-Membros e os municípios que podem elaborar suas próprias Constituições (é correto chamar as leis orgânicas municipais de constituições).
• O poder constituinte originário é um poder soberano e sem limites no ordenamento jurídico-positivo anterior, enquanto o poder de reforma (por meio de emenda e revisão que pertence ao Congresso Nacional) e o poder constituinte dos Estados-Membros e Municípios, são sempre limitados pela força do poder originário, sendo, portanto, de segundo grau e subordinado.
• O reconhecimento do poder de reforma como poder constituinte derivado não é mera questão de rótulo, mas pode carregar a ideia de que esse poder possa ser tão amplo que seria capaz de alterar radicalmente a Constituição, trazendo, com isso, uma insegurança indesejável, pois destrói um dos elementos essenciais do constitucionalismo, que é a segurança nas relações jurídicas.
• O poder de reforma se divide em poder de revisão e de emenda, sendo que alguns juristas vêm defendendo a possibilidade, de mediante revisão, alterar-se radicalmente a Constituição, o que traz insegurança, pois fortalece muito o legislativo ordinário contra a noção de um poder que envolva amplamente a sociedade no processo excepcional de elaboração de uma Constituição.
• A democracia não se resume no simples processo de escolha de possíveis representantes, mesmo porque, em grande parte, esses representantes não representam a todos, mas, ao contrário, devido ao financiamento privado de campanha e a grande mídia concentrada nas mão de muito poucos, muitas vezes representam pequenos grupos ou a si mesmos.
• Democracia é participação, diálogo, construção conjunta de consensos, oportunidade real de construção de uma sociedade onde haja espaço para todos e para cada um. Democracia implica em ausência de privilégios e hegemonias no debate livre de ideias em busca de um consenso.
 • Como conclusão parcial, podemos dizer que, reconhecendo o caráter de poder constituinte derivado ao poder de reforma por meio de emenda e revisão, é fundamental que se ressalte o seu caráter de subordinação ao poder constituinte originário, fruto das soberania popular.
            O poder constituinte derivado, ou de reforma, portanto, divide-se em dois: o poder de emenda e o poder de revisão. Enquanto o poder originário pertence a uma assembleia eleita com finalidade exclusiva de elaborar a Constituição, deixando de existir quando cumprida sua função (sendo assim um poder temporário), o poder de reforma é um poder latente, que pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e observados os seus limites materiais.
            O poder de reforma por meio de emendas pode, em geral, manifestar-se a qualquer tempo, sofrendo limites materiais, circunstanciais, formais e, algumas vezes, temporais. Esse poder consiste em alterar pontualmente uma determinada matéria constitucional, adicionando, suprimindo, modificando alínea(s), inciso(s), artigo(s) da Constituição.
            O poder de revisão, em geral, tem limites temporais, além dos limites circunstanciais, formais e materiais, ocorrendo, em algumas Constituições, sua manifestação periódica. Na nossa Constituição, houve a previsão de manifestação deste poder uma única vez, não podendo ocorrer de novo, pois estava prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). A revisão é mais ampla que a emenda, pois, como sugere o nome, trata-se de uma revisão sistêmica do texto, respeitados os limites previstos na Constituição. No Brasil, entretanto, a nossa revisão foi atípica, manifestando-se por meio de emendas. Entretanto, bem ou malfeita, o que ocorreu foi uma revisão, pois se deu respeitando os aspectos formais processuais da revisão prevista no ADCT. 
            Devemos, pois, compreender o poder de reforma por meio de emendas e revisão e os seus limites, materiais, circunstanciais, formais e temporais. Quanto aos limites, podemos dizer o seguinte:
• Os limites materiais dizem respeito às matérias que não podem ser objeto expresso ou implícitos de emenda.
• Os limites materiais implícitos dizem respeito à própria essência do poder de reforma. Mesmo que não haja limites expressos, a segurança jurídica exige que o poder de reforma não se transforme, por falta de limites materiais, em um poder originário. O poder de reforma pode modificar o texto, mantendo a essência da Constituição, ou seja, os princípios fundamentais e estruturantes da Constituição, pois reforma não é construir outro, mas modificar mantendo a estrutura e os fundamentos.
• São limites materiais implícitos o respeito aos princípios fundamentais e estruturais da Constituição, que só poderão ser modificados por intermédio de outra assembleia constituinte, ou seja, de outro poder constituinte originário. Este poder constituinte originário surge, apenas, diante de uma força social maior que o próprio ordenamento jurídico. É o reconhecimento pela teoria da constituição da possibilidade de revolução, da possibilidade legitima de ruptura popular.
• O art. 60, § 4º incisos I ao IV, da CF trazem os limites materiais expressos, dispondo que é vedada emenda tendente a abolir a forma federal, os direitos individuais e suas garantias, a separação de poderes e a democracia.
• Considerando a teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais, podemos afirmar que não pode haver emendas que venham, de alguma forma, limitar os direitos individuais, políticos, sociais e econômicos fundamentais.
• Pode haver emendas sobre a separação de poderes, a democracia, os direitos individuais e suas garantias (os direitos fundamentais ou os direitos humanos em uma perspectiva constitucional) e o federalismo, desde que sejam para aperfeiçoar, jamais para restringir.
• A proteção ao federalismo significa a proteção ao processo de descentralização essencial ao nosso federalismo centrífugo. Em outras palavras, podem existir emendas para fortalecer os estados e municípios, jamais para enfraquecê-los.
• além dos limites materiais expressos no art. 60, § 4º incisos I ao IV, da CF 88, encontramos limites circunstanciais que proíbem emendas ou revisão durante situações de grave comprometimento da estabilidade democrática, como Estado de sitio, Estado de defesa e intervenção federal.
• Como afirmado acima, há limites materiais implícitos que representam a própria essência do poder constituinte derivado.
• O poder de reforma, como o nome sugere, diz respeito à alteração de elementos secundários de uma ordem jurídica, pois não é possível, por meio de emenda ou revisão, alterar os princípios fundamentais ou estruturais de uma ordem constitucional.
• Os princípios fundamentais e estruturantes são a essência da Constituição e mesmo que não haja cláusula expressa que proíba emenda ou revisão, a essência não pode ser alterada.
• Reforma significa alterar normas secundárias, as regras, mas, jamais, a estrutura, a essência, o fundamento de uma ordem jurídica.
• Reforma não significa a construção de novo.
• Outro limite óbvio implícito diz respeito às regras constitucionais referentes ao funcionamento ao poder constituinte de reforma;
• Essas regras não podem ser objeto de emenda.
• As regras de funcionamento do poder constituinte derivado, o poder de reforma, por motivos óbvios, não podem ser objeto de emenda ou revisão, pois, caso contrario estaríamos condenados à mais absoluta insegurança jurídica.
• Alem disso, é limite ao poder de reforma a proibição de revisão antes de cinco anos contados da promulgação da Constituição (limite temporal).
• A proibição do funcionamento do poder de reforma (emendas ou revisão) durante Estado de defesa, Estado de sítio ou intervenção federal constitui limites circunstanciais como já mencionado.
• Os limites formais obrigam que a emenda se dê mediante quorum de três quintos em dois turnos de votação em seção bicameral, enquanto a revisão (contrariando a lógica doutrinaria que exigia processo mais qualificado) ocorreu em seção unicameral por maioria absoluta (50% mais um de todos os representantes).
• Quanto aos limites temporais, a Constituição de 1988 estabeleceu que a revisão ocorreria após cinco anos da promulgação da Constituição, não havendo limites temporais para a reforma por meio de emendas;

            Essa discussão não é nova e encontramos nos clássicos do Direito Constitucional nacional e estrangeiro várias referências à amplitude do poder constituinte e do poder de reforma.
            A ideia essencial expressa até agora é que poder reformador está abaixo do poder constituinte e jamais poderá ser ilimitado como este. Seja como se queira chamar esse poder reformador, seja de poder constituinte constituído, como o faz Sanches Agesta; poder constituinte derivado, como o faz Pelayo e Baracho; ou poder constituinte instituído, segundo Burdeau – devemos encará-lo, como o faz Pontes de Miranda e Rosah Russomano, como uma atividade constituidora diferida ou um poder constituinte de segundo grau.
            Outro aspecto referente à amplitude do Poder Constituinte diz respeito ao Poder Constituinte decorrente, ou seja, o poder constituinte dos entes federados, no nosso caso, Estados-Membros e municípios. Já estudamos no nosso livro Direito Constitucional, Tomo II, as características principais do Estado federal. Deixamos claro que o que difere o Estado federal de outras formas descentralizadas de organização territorial do Estado contemporâneo é a existência de um poder constituinte decorrente, ou seja, a descentralização de competências legislativas constitucionais, em que o ente federado elabora sua própria Constituição e a promulga, sem que seja possível ou necessário a intervenção ou a aprovação dessa Constituição por outra esfera de poder federal. Isso caracteriza a essência da federação, a inexistência de hierarquia entre os entes federados (união, estados-membros e municípios no caso brasileiro), pois cada uma das esferas de poder federal, nos três níveis brasileiros, participa da soberania, ou seja, detém parcelas de soberania, expressas nas suas competências legislativas constitucionais, ou seja, no exercício do poder constituinte decorrente.
            Não estamos afirmando que os estados-membros, a união e os municípios são soberanos, pois soberano é o Estado federal e a expressão unitária da soberania, ou seja, sua manifestação integral, só ocorre no poder constituinte originário. O que afirmamos é que no Estado federal, além da repartição de competências legislativas ordinárias, administrativas e jurisdicionais, há também – e isso só ocorre no Estado Federal – a repartição de competências legislativas constitucionais. Essa repartição de competências constitucionais implica a participação dos entes federados na soberania do Estado, que se fragmenta nas suas manifestações.
            Entretanto, esse poder constituinte decorrente, embora represente a manifestação de parcela de soberania, não é soberano, por esse motivo deve ser um poder com limites jurídicos bem claros, que podem ser materiais, formais, temporais e circunstanciais. A Constituição de 1988 estabelece limites materiais expressos e obviamente implícitos, deixando para o poder constituinte decorrente, que é temporário (assim como o originário), prever o seu funcionamento e o funcionamento do seu próprio poder de reforma e seus limites formais, materiais, circunstanciais e temporais. O poder constituinte decorrente é de segundo grau (se dos Estados-Membros) e de terceiro grau (se dos municípios), subordinados à vontade do poder constituinte originário, expressa na Constituição Federal. A repartição de competências no nosso Estado federal ocorre da seguinte forma:
• O Estado federal é composto de três círculos não hierarquizados: União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios.
• A Constituição Federal é a manifestação integral da soberania do Estado Federal.
• A União detém competências legislativas ordinárias, administrativas, jurisdicionais e o poder constituinte derivado de reforma por meio de emendas e revisão à Constituição do Estado Federal, por intermédio do Legislativo da União (O Congresso Nacional).
• Os Estados-Membros detêm competências legislativas ordinárias, judiciais, administrativas e o poder constituinte decorrente de elaborar suas próprias constituições, além é claro, do poder de reforma de suas constituições.
• Os municípios detêm competências legislativas ordinárias, administrativas (não detêm competências judiciais) e competências legislativas constitucionais, ou seja, o poder constituinte decorrente de elaborar suas Constituições (chamadas de leis orgânicas) e lógico o poder derivado de reforma de suas Constituições.
• O Distrito Federal também se tornou ente federado a partir de 1988, mas com características diferenciadas. Detém competências legislativas ordinárias e administrativas, que podem ser organizadas pelo seu poder constituinte decorrente (competência legislativa constitucional própria), e possui o seu próprio Judiciário e Ministério Público que, entretanto, não poderão ser organizados por sua constituinte, mas serão organizados pela União para o Distrito Federal, por razão de segurança nacional. Detém, também, é claro, o poder de reformar sua Constituição (chamada também de Lei Orgânica), o que não muda a sua natureza de poder constituinte decorrente, portanto, de Constituição.
            Quanto aos limites do poder constituinte decorrente, são encontrados em vários momentos na Constituição Federal e são limites materiais expressos e implícitos. Os limites expressos ocorrem sempre que a Constituição distribui competências e normatiza condutas dos entes federados. Quanto aos limites implícitos, esses são os princípios estruturantes e fundamentais da República que se impõem a todos os entes federados, como a democracia, a separação de poderes, os direitos humanos, a redução das desigualdades sociais e regionais, a dignidade humana, dentre outros.
            Alguns entendem que a Constituição Federal deve ser quase que copiada pelos entes federados, o que no nosso entendimento é antifederal. Se a Constituição federal, expressamente, não mencionou mandamentos aos entes federados, está livre o constituinte dos Estados e Municípios para dispor, desde que respeitados os princípios que estruturam e fundamentam a ordem constitucional federal. Por exemplo, se a Constituição Federal prevê o quorum de três quintos em dois turnos para emenda à Constituição Federal como norma regulamentadora do funcionamento do poder constituinte derivado federal, nada impede que o Estado-Membro ou o Município estabeleçam quorum diferente, desde que respeitados o princípio da rigidez constitucional que caracteriza sua supremacia em relação às leis ordinárias e complementares e o princípio da separação de poderes.
3 - A NATUREZA DO PODER CONSTITUINTE

            Alguns autores entendem que o poder constituinte originário é o momento de passagem do poder ao direito. É inegável que o poder constituinte originário é o momento maior de ruptura da ordem constitucional, onde o poder de fato que se instala, forte o suficiente para romper com a ordem estabelecida, é capaz de construir nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual está rompendo. Se entendermos o Direito como sinônimo de lei positiva posto pelo Estado, o poder constituinte originário será apenas um poder de fato. E é justamente nesse ponto que reside sua força. É claro que não reduzimos o direito nessa perspectiva positivista já ultrapassada, que reduz o direito a regra, transformando construção do direito em uma simples aplicação da receita pronta da lei ao caso concreto. Entretanto, isso será objeto de estudo em outro momento. O que nos interessa agora é entender a força do poder constituinte originário como poder de fato (poder político democrático), capaz de romper com a ordem vigente e, portanto, um poder ilegal e inconstitucional em relação à ordem com a qual rompe e pela qual não se limita. Essa afirmativa contém a essência da segurança que busca o constitucionalismo moderno: a Constituição, na sua essência, deve ser tão forte e perene que nenhum poder constituído pode romper com seus fundamentos e estrutura, mas somente um poder social tão forte que nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo, pois é o poder de transformação social da própria história. Nesse recurso do Direito Constitucional ao poder social, ao poder de fato, transformador e histórico, reside sua própria segurança, contra maiorias temporárias parlamentares que queiram transformar a Constituição, escrevendo uma nova, procurando se legitimar no voto que elegeu os representantes. A proteção contra o autoritarismo da maioria reside na exigência de poder social irresistível, única justificativa para a ruptura constitucional. Defensores de tese contrária procuram desenvolver mecanismos meramente representativos e consultivos (plebiscitos e referendos) para legitimar uma alteração radical do texto constitucional que afete seus princípios fundamentais, criando, na verdade, uma nova Constituição. Esses mecanismos são verdadeiros golpes contra a segurança jurídica que, como disse, só pode ser rompida pela força social irresistível que não se expressa em meras representações, pois quinhentos não podem o que só milhões poderão. Pode-se afirmar, entretanto, que esses milhões podem ser ouvidos em plebiscitos, mas, neste caso, devemos estar atentos à manipulação da propaganda, da grande mídia, do poder econômico, na construção de uma falsa vontade popular. Por isso nada pode substituir a mobilização popular, única justificativa para rupturas constitucionais profundas.
            Retornando à discussão inicial, podemos dizer, ao contrário, que se entendermos, entretanto, que o direito não se resume ao direito positivo, mas que está essencialmente ligado a ideia do justo, do correto, do direito, estaremos no campo das várias correntes do pensamento do direito natural. Nesse sentido, o direito é sinônimo de justo e, logo, a lei positiva pode ou não conter o Direito, pois só será Direito se conter uma norma justa. O conceito do que é justo muda em cada corrente do Direito natural, mas o que há em comum, nas várias teorias, é a compreensão de que Direito é diferente de lei. Seguindo essa hipótese, o poder constituinte originário será um poder de direito se representar o justo, o correto, o direito, e, ao contrário, será mero poder de fato, ilegítimo, contra o Direito, se não representar a ideia do justo, do correto, do direito.
            Não nos filiamos ao pensamento do direito natural por o considerarmos elitista e ideológico no sentido negativo do termo (uma vez que trata uma ciência social como se fosse uma ciência natural). Ao se reconhecer que existe um direito justo anterior e superior ao direito produzido pelo estado, quem será a pessoa ou pessoas que dirão o justo? Quem terá o discurso legitimado? Se o justo está na vontade divina, quem será o interprete dessa vontade? Se o justo está na razão do filósofo, qual será o filosofo que nos dirá o justo?
            Por esse motivo, entendemos que só processos democráticos dialógicos, com ampla mobilização popular, podem justificar uma ruptura que, sendo fato irresistível, se afirma com força, mas não de forma ilimitada. O direito não se encontra apenas no texto positivado ou na decisão judicial, mas latente na ideia de justiça dialogicamente compartilhada em processos democráticos de transformação social, e será essa compreensão dialogicamente compartilhada, em uma sociedade, em um determinado momento histórico, que legitimará o direito, sua compreensão democrática e sua transformação democrática, inclusive as rupturas constitucionais. O poder constituinte originário só será legitimo se sustentado por amplo processo democrático dialógico que ultrapasse os estreitos limites da representação parlamentar e penetre nos diversos fluxos comunicativos da complexa sociedade nacional.
            Portanto, podemos concluir que esse poder de fato será também de direito, se efetivamente democrático, entendendo-se democrático, como um processo dialógico amplo que envolva o debate igualitário, sem hegemonias ou desigualdades, dos mais variados interesses e valores existentes na sociedade e expressos pelos movimentos sociais.


4- A TITULARIDADE DO PODER CONSTITUINTE

            Acreditamos que a resposta para a pergunta sobre quem deve ser o titular do poder constituinte já ficou clara no tópico anterior. Entretanto, devemos responder à pergunta sobre quem é o titular desse poder nas suas várias manifestações históricas.
            Retornando à visão (talvez um pouco romântica) dos “clássicos” da teoria constitucional, encontramos no revolucionário Siéyes a afirmação de que “a nação existe antes de tudo – é a origem de tudo. Sua vontade é invariavelmente legal – é a própria lei”. Uma visão idealista perigosa utilizada em outros momentos da história moderna, como por exemplo, Hitler e a construção teória nazista de nação, estado, constituição e poder. Podemos perceber, mesmo que a construção conceitual da ideia de nação para Siéyès constitui numa forma de legitimar a vontade do grupo no poder que atua em nome da vontade da nação. A ideia de nação é uma construção histórica recente, e não algo que existe antes de tudo, mas uma criação do próprio absolutismo. É uma construção uniformizadora, radicalmente excludente, negando a diversidade, ocultada pelo estado-nação construído nos últimos quinhentos anos.
            No Direito Constitucional brasileiro, um autor importante é Pinto Ferreira, que afirma que somente o povo tem a competência para exercer os poderes de soberania. Quando analisa as expressões “Convenção Constitucional”, “Assembleia Constituinte” e “Convenção Nacional Constituinte”, afirma que a Assembleia Nacional Constituinte é o corpo representativo escolhido para criar a Constituição. Para o autor, há dois tipos principais de organização do poder constituinte. Um será o modelo da convenção constitucional, que é o tipo primitivo, no qual há uma assembleia eleita pelo povo para elaborar a Constituição, não havendo necessidade de ratificação popular. O segundo modelo é o sistema popular direto, no qual a Constituição é votada pela convenção nacional e posteriormente é submetida à aprovação popular por meio do referendo. Para o autor, esse segundo modelo está mais próximo do espírito democrático.
Na história do Estado constitucional, o sujeito do poder constituinte, o seu titular, pode ser individual ou coletivo, capacitado para criar ou revisar a Constituição. Dessa forma encontramos na história distorções graves da teoria democrática, em que o titular é um rei, um ditador, uma classe, um grupo (o que obvio está por detrás do titular individual), todos em nome do povo ou legitimados por poderes outros que o poder que efetivamente os sustenta. O discurso esconde a real fonte do poder, ou mais. Constitui uma fonte do poder ao disfarçar, encobrir sua origem. Entretanto, encontramos também exemplos que poderes constituintes que, de forma diferentes, em graus diferentes, expressam a vontade de parcelas expressivas das pessoas.
            Não há dúvida de que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos que permitam que o processo de elaboração da constituição assim como de sua reforma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os representantes eleitos, mas através de legitima pressão dos diversos grupos sociais, movimentos sociais e pessoas.

            Esse poder será democrático à medida que o processo constituinte serve como arena privilegiada de demonstração dos grandes temas nacionais, para que, a partir daí, as manifestações do jogo de forças sociais sejam legitimamente exercidas. É fundamental, para isso, que o poder de manipulação do marketing político, da propaganda, o poder de pressão econômica, seja minado, controlado, ao máximo. Não pode uma minoria nos bastidores se sobrepor à vontade presente nas ruas e no campo.