MARX: ESTADO, PODER E IDEOLOGIA
José Luiz Quadros de Magalhães
Professor
Marx é um dos pensadores fundamentais para a compreensão do mundo em que vivemos. Alguns de seus escritos são de uma atualidade impressionante. Infelizmente, decorrente das diversas interpretações de suas idéias que formaram o marxismo e da aplicação prática destas em busca de uma sociedade justa, o seu nome foi sacralizado de forma positiva por alguns e de forma negativa por outros. No Brasil as palavras Marx e marxismo foram utilizadas, pela direita autoritária, como sinônimo de perda de liberdade e totalitarismo, e para muitos passaram a ser palavras vinculadas ao medo de perder sua propriedade e sua vida privada. Logo a direita autoritária que perseguiu, matou, torturou e privou milhões de brasileiros do acesso a um mínimo de dignidade e liberdade.
As conseqüências disto tudo são muito negativas, pois afasta do conhecimento da maioria um pensador que teve a coragem de desafiar os dogmas de uma sociedade excludente e buscou compreender suas engrenagens propondo alternativas. A sacralização de seu nome teve o efeito negativo de impedir o acesso a sua obra, e muitos o abominam sem nunca ter lido uma pagina do que ele escreveu.
Na academia, que se orgulha de ser um espaço de liberdade de pensamento (e me refiro neste momento aos cursos jurídicos) o seu pensamento foi, na maioria dos casos, vinculado à ausência da democracia, a algo superado que não merece nem ser conhecido, logo Marx, um radical defensor da democracia na sua forma mais ampla, includente e participativa.
Neste ensaio nos propomos dialogar um pouco com Marx e Engels, tentando entender sua idéia de Estado os problemas do exercício do poder deste, envolvendo, portanto a importante discussão sobre a ideologia como distorção do real e encobrimento dos jogos de poder.
Importante lembrar que as teorias enquanto simplificações coerentes e sistematizadas do real observado constroem códigos próprios, que passam a ser instrumentos, não só de compreensão mas também de limitação do campo de compreensão, e, muitas vezes, como exercício de poder de grupos sobre outros grupos. Ou seja, se o conhecimento pode ter o condão de libertar, o conhecimento elitizado, escondido em códigos secretos, ou labirintos lingüísticos, torna-se fator de dominação ideológica, dominação esta fundamental para a legitimação de poderes excludentes.
Simplificando e procurando simplificar a saída do labirinto, podemos pensar que o conhecimento científico, organizado e sistemático, construído sobre bases metodológicas, explica e reorganiza práticas que têm seu método e coerência própria, ou em outras palavras: o conhecimento popular e as práticas sociais não se resumem às manifestações tradicionais não reflexivas, fundamentos religiosos e preconceitos; da mesma forma que a ciência moderna impregnou-se de preconceitos, novas sacralizações e verdades formais arrogantes e pré-potentes. Sem negar um e outro, ou sem escolher um ou o outro, a história pode nos ensinar que por meio de uma racionalização podemos organizar a produção de um conhecimento construído no cotidiano, retirando os preconceitos e tradições não reflexivas do que chamamos “senso comum”, desde que a ciência também não construa preconceitos sofisticados e novas sacralizações para uma nova prática religiosa.
Ou: muitas pessoas em muitos momentos da história acharam que inventaram a roda, e muitos ainda continuam inventando.
Um outro problema decorre destas reflexões e se refletem diretamente no Direito moderno: a crença no individuo como unidade desconectada do entorno, como uma pretensão de soberania de vontade que permanece no tempo e como uma pessoa que permanece essencialmente a mesma. Em outras palavras uma identidade individual permanente. Esta ficção liberal pretende atribuir aos indivíduos criações, construções, invenções, inovações que são construções permanentes. Assim, em algum momento, a partir de uma construção histórica coletiva, alguém chega a um resultado, uma nova teoria, uma descoberta científica, uma inovação tecnológica, uma obra artística, etc. A lógica individualista leva a que esta pessoa se aproprie de anos, décadas, séculos de construção. Assim aprendemos que fulano inventou isto, cicrano descobriu aquilo outro e assim por diante. Essa pretensão nos retira a nossa compreensão de pessoas singulares e coletivas que somos, sempre fruto da vivencia com os outros, assim como recorta processos criativos. Marx não produziu sua teoria do nada, assim como Santos Dumont não partiu do zero para a construção de seu 14 Bis, e assim por diante. Tudo é fruto de processos coletivos de construção permanente, inclusive nós mesmos. A genialidade de alguns de nós, humanos, nos faz visualizar uma espécie de pescador: alguém que sem esforço encontra melodias, pesca sinfonias, e como que uma antena aberta ao universo é capaz de visualizar obras magistrais. Outros de nós são sistematizadores, capazes de captar séculos de construção e sintetizá-los em uma criação útil. Mas o que é fundamental para compreensão do complexo processo de transformação por que passamos, é a percepção de uma dinâmica e complexa unidade de uma história que se constrói permanentemente.
DA ATUALIDADE DE MARX NA PERCEPÇÃO DA IDEOLOGIA COMO DISTORÇÃO DO REAL, COMO ENCOBRIMENTO DOS INTERESSES QUE MOVIMENTAM A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA.
O processo ideológico distorce a realidade e cria certezas construídas sobre fatos pontuais que procuram explicar uma situação complexa. O elemento de dominação presente procura construir certezas na opinião pública uma vez que a afirmação vem acompanhada de um fato real que a pessoa pode constatar e a televisão o faz ao trazer a imagem. Portanto, a partir de uma situação que efetivamente ocorre mas que de longe não pode ser utilizada para explicar a complexidade do tema “socialismo”, quem detém a mídia constrói certezas e as certezas são o caminho curto para o preconceito. Quanto mais certezas as pessoas tiverem, quanto mais preconceituosas forem as pessoas, mas facilmente elas serão manipuladas por quem detém o poder de criar estas “verdades”. A certeza é inimiga da liberdade de pensamento e da democracia enquanto exercício permanente do dialogo. Quem detém o poder de construir os significados de palavras como liberdade, igualdade, socialismo e democracia, quem detém o poder de criar os preconceitos e de representar a realidade a seu modo, tem a possibilidade de dominar e de manter a dominação.
Entretanto, este poder não é intocável. A dominação tem limites e estes limites não são ficções cinematográficas.
Este poder encoberto pela representação distorcida (propositalmente distorcida) funda-se em ideologias, em mentiras. A grande mentira na qual estamos mergulhados é a mentira do mercado, da liberdade econômica fundada numa naturalização da economia como se esta não fosse uma ciência social mas uma ciência exata. A matematização da economia sustenta a insanidade vigente.
A força da ideologia se mostra quando ela é capaz de fazer com que as pessoas, pacificamente, concordem com o assalto privado aos seus bolsos. É impressionante a incapacidade de reação contra o sistema financeiro que furta do trabalhador diariamente sem que este esboce alguma reação. A falta de reação pode se justificar pela incapacidade de perceber a ação ou da aceitação da ação como algo natural. Tudo isto encontra fundamento em uma grande capacidade de geração de representações nas quais a pessoas passam a viver. Viver artificialmente em um mundo que não existe: matrix.
Se as pessoas acreditam que a história acabou, que chegamos a um sistema social, constitucional e econômico para o qual não tem alternativa, pois ele é natural, não há saída. Para estas pessoas, a alternativa que está gritando em seus ouvidos não é ouvida, a alternativa que está em seu campo de visão não é percebida pela retina.
Se a economia não é mais percebida como ciência social, se o status de suas conclusões passa para o campo da ciência exata, logo a economia não pode mais ser regulada pelo estado, pelo direito, pela democracia. Não posso mudar uma equação física ou matemática com uma lei. De nada vai adiantar. A matematização da economia é a grande mentira contemporânea. Se a economia é uma questão de natureza, se a economia não é história, quem pode decidir sobre a economia são os sábios e jamais o povo. Isto ajuda a entender, por exemplo, como um governo que se pretendia de esquerda adota uma política econômica conservadora de direita. Esta é a ideologia que sustenta um mundo governado pelo desejo cego de poder, dinheiro e sexo. A razão não manda no mundo, jamais mandou. O desejo conduz o ser humano. O problema não é o desejo comandar. O problema é que não são os nossos desejos que comandam, mas os desejos de poucos que nos fazem acreditar que os seus desejos são os nossos desejos.
A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder econômico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek “a luta pela hegemonia ideológico-politica é por conseqüência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas.” Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos mas sim direitos naturais quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Se afirmarmos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história e logo, o conteúdo destes direitos é construído pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto no qual todos possam fazer parte. Ao contrário, se afirmarmos estes direitos como naturais fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro. Este outro irá dizer o que é natural. Quem diz o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza?
FINALMENTE MARX: UM DIALÓGO COM O AUTOR SEM NENHUMA PRETENSÃO DE SER SEU FIEL TRADUTOR.
Após fazer um exercício de como a obra de Marx repercute na contemporaneidade (e no pensamento de importantes autores da esquerda democrática contemporânea como Giorgio Agambem, Slavoj Zizek, Alain Badiou entre outros) neste ponto vamos até Marx, estabelecendo um diálogo direto com alguns textos de sua obra.
Uma referência ao Estado como poder aparece na “A ideologia alemã: Feuerbach – a contraposição ente as cosmovisões materialista e idealista”:
“Entre os povos antigos, uma vez que muitas tribos viviam juntas em uma mesma cidade, a propriedade tribal aparece como propriedade do Estado, e o direito do individuo sobre ela, como simples possessio (lat.: posse) que, todavia, limita-se como a propriedade tribal em geral, apenas à propriedade da terra. A propriedade privada no seu sentido próprio começa, tanto entre os antigos como entre os povos modernos, com a propriedade imobiliária”
Neste momento a palavra Estado aparece como sinônimo de poder organizado sem necessariamente ser acompanhado do conceito de povo nacional (como identidade), território e soberania. Não há referencia a Hobbes e a sua compreensão de Estado moderno a partir do século XV após as lutas internas onde o poder do Rei se afirma perante os poderes dos senhores feudais, unificando o poder interno, unificando os exércitos e a economia, para então este mesmo poder se afirmar perante os poderes externos, os impérios e a Igreja. Neste conceito o Estado moderno tem um poder unificador numa esfera intermediária, pois cria um poder organizado e hierarquizado internamente, sobre os conflitos regionais, as identidades existentes anteriormente a formação do Reino e do Estado nacional que surge naquele momento. Este é o processo que ocorre em Portugal, Espanha, França e Inglaterra. Destes fatos históricos decorre o surgimento do conceito de uma soberania em duplo sentido: a soberania interna a partir da unificação do Reino sobre os grupos de poder representados pelos nobres (senhores feudais), com a adoção de um único exército subordinado a uma única vontade; a soberania externa a partir da não submissão automática à vontade do papa e ao poder imperial (multi-étnico e descentralizado).
Estado para Marx, aparece em um primeiro momento como exercício de poder e ainda como referência ao poder coletivo da tribo. A propriedade deste Estado seria a propriedade de toda tribo uma espécie de propriedade pública se contrapondo a propriedade privada que começa a aparecer sobre os bens móveis. Outro aspecto importante é o reconhecimento do direito à propriedade como um direito histórico, construído conceitualmente nas sociedades antigas e reconstruído permanentemente na história. Logo, o direito a propriedade privada não pode ser um direito natural, mas é sim um direito histórico, conceito que se torna preponderante no direito contemporâneo. Isto está claro quando no mesmo texto, continuando a referencia anterior, Marx e Engels se referem às mudanças do conceito de propriedade
“até chegar ao capital moderno, condicionado pela grande indústria e pela concorrência universal, que é a propriedade privada pura, que se despiu de toda aparência de comunidade e excluiu toda a influência do Estado sobre o desenvolvimento da propriedade. A essa propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno, o qual, comprado pouco a pouco pelos proprietários privados por meio dos impostos, termina por ficar completamente sob o controle destes pelo sistema da divida publica, cuja existência depende, por causa do jogo da alta da baixa dos valores do Estado e da baixa dos valores do Estado na Bolsa, inteiramente do crédito comercial que é concedido pelos proprietários privados, os burgueses.”
Lembramos que este texto foi escrito no século XIX e nos mostra o processo de privatização do poder do Estado que se torna refém do capital privado. Reconhecendo a natureza pública do Estado na história, Marx e Engels nos mostram como ocorreu na modernidade capitalista, a conquista do poder do Estado pelos burgueses. O momento histórico é de existência de um direito liberal puro, onde o direito de propriedade aparece como um direito absoluto. Embora a propriedade privada venha a ser limitada constitucionalmente a partir do constitucionalismo social e socialista no inicio do século XX (1917 – México e Rússia), os limites aos poderes dos proprietários dos meios de produção (especialmente a indústria) e do sistema financeiro (os bancos), se tornam cada vez mais escassos neste século XXI.
Uma idéia muito importante nos ajuda a enxergar o Estado burguês e a separação liberal entre estado e sociedade civil que este conceito promove. O trabalho de Marx e Engels em seus escritos consiste em revelar a verdade encoberta pela ideologia. Na Ideologia Alemã quando os autores trabalham as relações do Estado e do Direito com a propriedade estes observam que o Estado adquire uma existência particular, do lado de fora da sociedade civil, quando ocorre a emancipação da propriedade (agora privada) com relação à comunidade:
“mas tal Estado não é mais do que a forma de organização que os burgueses adotam, tanto para garantir reciprocamente a sua propriedade e a de seus interesses tanto em seu interior como externamente. Hoje em dia, a autonomia do Estado se verifica apenas nos países em que os estamentos ainda não se desenvolveram totalmente à condições de classes em que desempenham ainda algum papel (enquanto nos países mais evoluídos são extintos); são países que apresentam um situação híbrida, onde por conseqüência, nenhuma parcela da população pode vir a dominar a outra. Esse é o caso principalmente da Alemanha. A América do Norte é o exemplo mais acabado de Estado moderno. Os escritores franceses, ingleses e americanos, em geral, dizem todos que o Estado só existe por causa da propriedade privada, de tal maneira que esta idéia acabou por passar para o senso comum.”
Estado não é só o Estado burguês moderno, e a separação estado/sociedade civil é uma criação ideológica da burguesia não correspondente às formas estatais anteriores, onde a propriedade ainda não havia sido desvinculada da comunidade. Podemos também destacar o fato de que a idéia de espaço público não se confunde com o Estado para Marx e Engels: existe um estado, que se confunde com a sociedade, caracterizado pela democracia radical participativa sendo, portanto, espaço público; existe um estado privatizado pela burguesia que se transforma em instrumento de repressão e proteção da propriedade privada e demais interesses desta burguesia, um falso espaço público justificado ideológicamente para exercer o controle policial; existe uma sociedade sem estado, grande expressão da democracia radical final.
Lembrando que este texto foi escrito em 1845/46, Marx e Engels observam que quando a burguesia deixa de ser um estamento e se torna uma classe, esta se vê obrigada a organizar-se em nível nacional, e não apenas localmente, e de forma ideológica passa a dar seus interesses particulares forma universal. A forma estamental implica que cada grupo da sociedade tem seu “status” jurídico próprio. Cada grupo permanece na sua posição com regime jurídico próprio, sendo que neste Estado cada um pode subsistir e permanecer. Quando a burguesia ultrapassa seus limites originários assumindo o poder político, passa a ter um projeto de poder nacional e global. Seus valores, suas idéias, seus projetos, seus interesses são postos para todos como sendo universais. Este processo de construção de uma ideologia que distorce a realidade e transforma em senso comum, falsas verdades, ganha força e sofisticação com o tempo, sendo hoje um processo sofisticado que faz com que milhões, bilhões de pessoas, sejam levadas a acreditar no capitalismo e na propriedade privada como valores religiosos, e logo passem a agir e a sustentar um sistema que é contra elas mesmas. É a sacralização de palavras e objetos como trata Giorgio Agambem.
Marx e Engels nos levam a refletir sobre a construção do senso comum, a grande luta que travamos hoje na contemporaneidade, onde o grupo no poder tem a possibilidade de construir o significado dos significantes.
O Estado (burguês) neste ponto aparece claramente como instituição que tem a função de assegurar e conservar a dominação e a exploração de classe. A atenção que os autores dão a separação do Estado da sociedade civil, vinculada à separação da propriedade da comunidade (com a sacralização da propriedade privada) nos leva a entender qual a democracia é defendida pelos autores e daí para a compreensão de outros conceitos desenvolvidos na obra de Marx: a democracia não pode ser a democracia institucionalizada na democracia representativa presente na estrutura do Estado, que como visto é uma instituição existente para manter a dominação de um grupo sobre o outro. Esta democracia só pode apresentar um resultado sempre favorável a burguesia e seus limites são postos pela Constituição, não se admitindo nenhuma mudança que vá alem das mudanças permitidas na Constituição e, por muito tempo, sustentadas por uma idéia de direito natural construída pelo mesmo grupo que se encontra no poder em um momento, ou como critica Marx, em um outro momento reduzindo o Direito à Lei. Daí percebermos como, mesmo a democracia representativa, é meramente tolerada pela burguesia, pois uma vez que adotamos estes processos democráticos burgueses para transformar a sociedade, afetando os interesses da burguesia, ocorre imediatamente uma ruptura com a ordem jurídica institucionalizada e constitucionalizada (Brasil 1964; Chile 1973; Venezuela 2002).
A democracia para Marx será a democracia participativa, popular, que não permita a cisão entre Estado e sociedade, e que não trabalha com esta dicotomia liberal Estado e sociedade civil e nem tampouco com o conceito de sociedade civil mas de uma sociedade que assume o controle do destino do Estado, que se confunde com o Estado até sua superação.
Ainda em referência ao trecho anteriormente citado, o estado moderno se afirma com o capitalismo industrial, no momento em que se refere aos Estados Unidos como exemplo acabado de estado moderno. A referência para a adoção deste entendimento é obviamente a mudança dos modos de produção e o surgimento de uma burguesia como classe social antagônica ao proletariado assalariado. No trecho seguinte, entretanto, se refere a afirmação da modernidade com o fim do feudalismo, indicando um processo histórico dinâmico de construção do estado moderno que começa com a superação do feudalismo no século XV e avança para a forma de capitalismo liberal no século XVII e XVIII.
Em outro trecho mas ainda no mesmo texto da “A ideologia alemã” encontramos a referência a um espaço público não estatal. Marx e Engels observam ainda que o direito privado desenvolve-se ao lado da propriedade privada como conseqüência da desintegração da comunidade natural:
“Entre os romanos, o desenvolvimento da propriedade privada e do direito privado não teve nenhuma conseqüência industrial ou comercial porque todo o seu modo de produção continuava a ser o mesmo. Entre os modernos, em que a comunidade feudal foi dissolvida pela indústria e o comércio, o surgimento da propriedade privada e do direito privado marcou o começo de uma nova etapa, capaz de um posterior desenvolvimento.”
Os autores observam que assim que ocorre um desenvolvimento considerável do comércio e da indústria em países europeus ocorre a retomada do direito romano, sendo este elevado a categoria de autoridade. Com o crescimento do poder da burguesia e a utilização desta pelos príncipes com a finalidade dissolver o poder feudal, ocorre o desenvolvimento do Direito privado em todos os países. Mesmo na Inglaterra foram adotados princípios de direito romano na base de seu direito privado, especialmente no caso da propriedade imobiliária. Lembra Marx que, nem o direito, nem a religião, têm uma histórica própria, uma vez que as mudanças históricas ocorridas são frutos de interesses que ocorrem na esfera econômica.
“No direito privado, as relações de propriedade existentes são declaradas como o resultado da vontade geral. O próprio jus utendi et abutendi (lat.: direito de usar e abusar) exprime, de um lado, o fato de que a propriedade privada tornou-se completamente independente da comunidade e, de outro lado, a ilusão de que a própria propriedade privada repousa unicamente na vontade privada, na livre disposição das coisas. Na prática, o abuti (abusar) tem limites econômicos bem determinados para o proprietário privado, se este não quer que sua propriedade, e com ela seu jus abutendi (direitos de abusar), para outras mãos; isso porque, afinal, a coisa, considerada simplesmente em sua relação com a sua vontade, não é inteiramente uma coisa, mas apenas no comercio e independentemente do direito se torna algo, uma propriedade real (uma relação a qual os filósofos denominam de idéia). Essa ilusão jurídica que reduz o direito à mera vontade, leva inevitavelmente, no desenvolvimento posterior das relações de propriedade, ao resultado de que uma pessoa possa ter um título jurídico de algo sem realmente tê-lo.”
Explicando melhor sua idéia Marx e Engels exemplificam com o fato de que um proprietário de terra que não dispõe de capital nada poderá fazer com seu lote de terra mas mesmo assim terá o titulo jurídico de propriedade e logo o direito de ‘usar e abusar’ (jus utendi et abutendi).
Ficção pior ocorre quando o direito proclama a liberdade e a igualdade sem a existência concreta dos meios para exercício desta liberdade e igualdade. Todos são livres e iguais mas poucos têm efetivamente meios para o exercício de sua liberdade e o reconhecimento prático, real, de sua igualdade.
A referência permanente à ilusão, à representação distorcida que encobre os reais jogos de poder é de uma atualidade impressionante em tema recorrente em importantes filósofos contemporâneos do pensamento de esquerda.
CONCLUSÃO
Marx jamais fez uma análise sistemática do Estado. Entretanto em diversos momentos de suas reflexões encontramos o Estado. Talvez pela não sistematização do estudo do Estado algumas reflexões podem parecer contraditórias. Como mencionamos, leitura é interpretação, e de acordo do lugar de onde se lê, leitores diferentes compreenderão de forma diferente os sistema teórico que compreende sua obra. A obra de Marx e de Engels, assim como de todos os pensadores que transformaram a ciência e a sociedade com suas idéias, é uma obra livre. Cientifica, mas livre. É difícil escrever algo novo, transformador com as argolas pesadas dos rigores formais da academia contemporânea, preocupada com quantidade e formalidade, prendendo as idéias entre margens medidas, obras citadas, palavras chave, resumos, introduções e conclusões. Isto não é método. Método é outra coisa. Isto é aprisionamento do conteúdo à forma.
Neste trabalho procuramos estabelecer um dialogo livre com a obra de Marx, especialmente no que se refere à idéia de Estado, trabalho que não cabe nas paginas propostas. Logo estas reflexões se apresentam como reflexões iniciais e provocadoras, para que o leitor se aventure pelas páginas escritas por Marx e Engels. Não se faz ciência com preconceitos ou dogmas, nem tampouco com formas e medidas.
A concepção clássica de Estado de Marx e Engels aparece no manifesto comunista: “O executivo do Estado moderno nada mais é do que um comitê para a administração dos assuntos comuns de toda a burguesia”. Entretanto uma visão mais rica do Estado pode ser encontrada em uma visão sistêmica de sua obra especialmente no trabalho “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (1843), nos seus escritos históricos como, por exemplo, “As lutas de classe na França de 1848 a 1850” (1850); o “Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte” (1852) e “A guerra civil na França” (1871).
Escolhemos para diálogo e reflexão neste artigo, um texto de Marx e Engels, especialmente um pequeno e importante trecho de “A ideologia alemã”, visando assim trazer para o leitor reflexões, dúvidas e com isto o interesse em enfrentar uma obra que não vale apenas pelo seu valor histórico, mas que permanece atual nesta crise da modernidade, onde para entendermos o que se passa devemos entender como chegamos aqui, e ninguém melhor do Marx para nos acompanhar nesta difícil empreitada. Portanto, deixem o preconceito de lado, abram o livro e pensem livre.
Encerramos estas reflexões com uma análise de uma obra de um autor contemporâneo que mostra os frutos do pensamento vivo de Marx e Engels. Entre marxistas, pós-marxistas ou neo-marxistas, o importante não é consagrar Marx, nem reproduzir integralmente seu pensamento, colocá-lo em um museu ou coisa assim. O importante é perceber na dinamicidade da histórica que o que Marx e Engels pensaram e ensinaram foi recebido e transformado, seguindo uma dinâmica que os autores foram capazes de nos revelar.
Para Giorgio Agambem, pensador italiano contemporâneo, o capitalismo tem três fortes características religiosas específicas:
a) É uma religião do culto mais do que qualquer outra. No capitalismo tudo tem sentido relacionado ao culto e não em relação a um dogma ou idéia. O culto ao consumo; o culto a beleza; a velocidade; ao corpo; ao sexo; etc.
b) É um culto permanente sem trégua e sem perdão. Os dias de festas e de férias não interrompem o culto, mas, ao contrário o reforça.
c) O culto do capitalismo não é consagrado à redenção ou a expiação da falta uma vez que é o culto da falta. O capitalismo precisa da falta para sobreviver. O capitalismo cria a falta para então supri-la com um novo objeto de consumo. Assim que este objeto é consumido outra falta aparece para ser suprida. O capitalismo talvez seja o único caso de um culto que ao expiar a falta mais torna a falta universal.
O capitalismo, por ser o culto, não da redenção e sim da falta, não da esperança, mas do desespero, faz com que este capitalismo religioso não tenha como finalidade a transformação do mundo mas sim sua destruição.
Existe no capitalismo um processo incessante de separação única e multiforme. Cada coisa é separada dela mesma não importando a dimensão sagrado/profano ou divino/humano. Ocorre uma profanação absoluta sem nenhum resíduo que coincide com uma consagração vazia e integral. Ou seja, o capitalismo profana as idéias, objetos, nomes não para permitir o livre uso mas para ressacralizar imediatamente. Um automóvel não é mais um objeto que é usado para o transporte mas sim um objeto de desejo que oferece para quem compra status, poder, velocidade, emoção, reconhecimento. O consumidor em geral não compra o bem que pode transportá-lo. O que o consumidor compra não pode ser apropriado pois o que é consumível é inapropriável. O consumidor compra o status, o reconhecimento, a ilusão de poder, a velocidade, e isto não pode ser apropriado, isto desaparece na medida em que é consumido. Trata-se de um fetiche incessante. Ao conferir um novo uso a ser consumido, qualquer uso durável se torna impossível: está é a esfera do consumismo.
Na lógica da sociedade de consumo a profanação torna-se quase impossível pois o que se usa não é o uso inicial do objeto mas o novo uso dado pelo capitalista. Logo o que se consome se extingue e desaparece e, portanto, não pode ser dado novo uso. Não há possibilidade de liberdade dentro deste sistema. O novo uso o da liberdade exige enxergarmos este processo de aprisionamento da lógica capitalista consumista.
O consumo pode ser visto como uso puro que leva a destruição da coisa consumida. O consumo é, portanto, a negação do uso que pressupõe que a substancia da coisa fique intacta. No consumo a coisa desaparece no momento do uso.
A propriedade é uma esfera de separação. A propriedade é um dispositivo que desloca o livre uso das coisas para uma esfera separada que se converte no estado moderno em direito. Entretanto o que é consumido não pode ser apropriado. Os consumidores são infelizes nas sociedades de massa não apenas porque eles consomem objetos que incorporam uma não aptidão para o uso, mas também, sobretudo, porque eles acreditam exercer sobre estas coisas consumidas o seu direito de propriedade. Isto é insuportável e torna o consumo interminável. Como não me aproprio do que consumi tenho que consumir de novo e de novo para alimentar a ilusão de apropriação. Está escravidão ocorre pela incapacidade de profanar o bem consumido e pela incapacidade de enxergar o processo no qual o consumidor está mergulhado até a cabeça.
CITAÇÕES E OBSERVAÇÕES
1- A palavra sacralização aparece aqui com o sentido que esta tem na obra Giorgio Agambem O pensador Giorgio Agambem ( AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris, 2005, Editora Payot et Rivages) faz uma importante reflexão a respeito da construção das representações e da apropriação dos significados, o que o autor chama de sacralização como mecanismo de subtração do livre uso das pessoas das palavras e seus significados; coisas e seus usos; pessoas e sua significação histórica.
O Autor começa por explicar o mecanismo de sacralização na antiguidade. As coisas consagradas aos deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas. Há uma subtração do livre uso e do comércio das pessoas. A subtração do livre uso é uma forma de poder e de dominação. Assim consagrar significa retirar do domínio do direito humano sendo sacrilégio violar a indisponibilidade da coisa consagrada.
Ao contrário profanar significa restituir ao livre uso das pessoas. A coisa restituída é pura, profana, liberada dos nomes sagrados, e logo, livre para ser usada por todos. O seu uso e significado não estão condicionados a um uso especifico separado das pessoas. A coisa restituída ao livre uso é pura no sentido que não carrega significados aprisionados, sacralizados.
Concebendo a sacralização como subtração do uso livre e comum, a função da religião é de separação. A religião para o autor não vem de “religare”, religar, mas de “relegere” que significa uma atitude de escrúpulo e atenção que deve presidir nossas relações com os deuses. A hesitação inquietante (ato de relire) que deve ser observada para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une os homens aos deuses mas sim aquilo que quer mantê-los separados. A religião não é religião sem separação. O que marca a passagem do profano ao sagrado é o sacrifício.
O processo de sacralização ocorre com a junção do rito com o mito. É pelo rito que simboliza um mito que o profano se transforma em sagrado. Os sacrifícios são rituais minuciosos onde ocorre a passagem para outra esfera, a esfera separada. Um ritual sacraliza e um ritual pode devolver ou restituir a coisa (idéia, palavra, objeto, pessoa) à esfera anterior. Uma forma simples de restituir a coisa separada ao livre uso é o toque humano no sagrado. Este contágio pode restituir o sagrado ao profano.
A função de separação, de consagração, ocorre nas sociedades contemporâneas em diversas esferas onde o recurso ao mito juntamente com rito cumpre uma função de separação, de retirada de coisas, idéias, palavras e pessoas do livre uso, da livre reflexão, da livre interlocução, criando reconhecimentos sem possibilidade de diálogo. A religião como separação, como sacralização, há muito invadiu a política, a economia e as relações de poder na sociedade moderna. O capitalismo de mercado é uma grande religião que se afirma com a sacralização do mercado e da propriedade privada. As discussões que ocorrem na esfera econômica são encerradas com o recurso ao mito para impor uma idéia sacralizada a toda a população. No espaço religioso do capitalismo não há espaço para a racionalidade discursiva pois qualquer tentativa de questionar o sagrado é sacrilégio. Não há razão e sim emoção no espaço sacralizado das discussões de política econômica. Por isto os proprietários reagem com raiva à tentativa de diálogo, pois para eles este diálogo é um sacrilégio, questiona coisas e conceitos sacralizados há muito tempo.
Este recurso está presente no poder do estado e em rituais diários do poder: a posse de um juiz, de um presidente, a formatura, a ordenação de padres e outros rituais mágicos transformam as pessoas em poucos minutos, separando a pessoa de antes do ritual para uma nova pessoa após o ritual. Isto ganha tanta força no mundo contemporâneo que varias pessoas que freqüentam um curso superior hoje não pretendem adquirir conhecimentos, o processo de passagem por um curso não é para adquirir conhecimentos mas para cumprir créditos (até a linguagem é econômica) para no final passar pelo rito que o transformará de maneira mágica em uma nova pessoa. O objetivo é o rito, a certificação da passagem por meio do diploma e não a aquisição do conhecimento. O espaço universitário está sendo transformado pela religião capitalista em algo mágico, onde o conhecimento a ser adquirido no decorrer de um processo que deveria ser transformador perde importância em relação ao rito (a formatura) e o mito (o diploma).
2-Importante lembrar que não negamos a condição autopoiética da vida. Somos seres interpretativos. Tudo é interpretação e a interpretação é condicionada por cada condição humana. A representação distorcida com o objetivo de manipulação é feita com este objetivo. Estamos aqui falando de honestidade nas comunicações. Honestidade dos argumentos utilizados no diálogo democrático. A representação distorcida que encobre os jogos de poder é desonesta. O objetivo é dominar, enganar e não dialogar.
“...a ideologia oculta o caráter contraditório do padrão essencial oculto, concentrando o foco na maneira pela qual as relações econômicas aparecem superficialmente. Esse mundo de aparências constituído pela esfera de circulação não só gera formas econômicas de ideologia, como também é um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem, onde reinam a liberdade e igualdade. (O Capital I, cap. VI) “Sob este aspecto, o mercado é também a fonte da ideologia política burguesa: a igualdade e a liberdade são, assim, não apenas aperfeiçoadas na troca baseada em valores de troca, como também a troca dos valores de troca é a base produtiva real de toda igualdade e liberdade. “(Crundise, Capítulo sobre o capital) “Mas é claro que a ideologia burguesa da liberdade e da igualdade oculta o que ocorre sob o processo superficial de troca, onde essa aparente igualdade e liberdade individuais desaparecem e revelam-se como desigualdade e falta de liberdade.” (Dicionário de pensamento marxista editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).
3- Algumas palavras problemáticas apareceram no texto: ideologia e desejo. Palavras cheias de sentidos diversos, localizadas no tempo e no espaço. A palavra ideologia aparece no sentido marxista: “Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciaram diretamente o conceito de ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica a religião desenvolvida pelo materialismo francês e por Feuerbach e, de outro, a crítica da epistemologia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito realizada pela filosofia alemã da consciência (ver idealismo) e particularmente por Hegel. Não obstante, enquanto essas críticas não conseguiram relacionar as distorções religiosas ou metafísicas com condições sociais especificas, a crítica de Marx e Engels procura mostrar a existência de um ele necessário entre formas “invertida” de consciência e a existência material dos homens. É esta relação que o conceito de ideologia expressa, referindo-se a uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais (ver contradição) e as oculta. Em conseqüência disso, desde o início, a noção de ideologia apresenta uma clara conotação negativa e critica. .” (Dicionário de pensamento marxista editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).
4- ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l´intolérance. Climats, 2004, Paris, pag. 18. Interessante não apenas ler este livro como a obra deste fascinante pensador esloveno. Vários livros já foram traduzidos e publicados no Brasil: Bem vindo ao deserto do real e As portas da revolução são duas obras importantes.
5- Marx e Engels, obras escolhidas em três tomos, tomo I, Edições Avante – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo, 1982, pág. 71. A mesma tradução para o português mantida no livro “A ideologia alemã – Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista”, Marx e Engels, Editora Martins Claret, São Paulo, 2006, pág. 97.
6- CREVELD, Martin van Creveld. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004 e CUEVA, Mario de la. La idea del Estado, Fondo de Cultura Econômica, Universidad Autônoma de México, Quinta Edição, México, D.F., 1996.
7- Marx e Engels, obras escolhidas em três tomos, tomo I, Edições Avante – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo, 1982, pág. 72. A mesma tradução para o português mantida no livro “A ideologia alemã – Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista”, Marx e Engels, Editora Martins Claret, São Paulo, 2006, pág. 98
8- Marx e Engels, obras escolhidas em três tomos, tomo I, Edições Avante – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo, 1982, pág. 72. A mesma tradução para o português mantida no livro “A ideologia alemã – Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista”, Marx e Engels, Editora Martins Claret, São Paulo, 2006, pág. 98.
9- O pensador Giorgio Agamben (AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris, 2005, Editora Payot et Rivages) faz uma importante reflexão a respeito da construção das representações e da apropriação dos significados, o que o autor chama de sacralização como mecanismo de subtração do livre uso das pessoas as palavras e seus significados; coisas e seus usos; pessoas e sua significação histórica. O Autor começa por explicar o mecanismo de sacralização na antiguidade. As coisas consagradas aos deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas. Há uma subtração do livre uso e do comércio das pessoas. A subtração do livre uso é uma forma de poder e de dominação. Assim consagrar significa retirar do domínio do direito humano sendo sacrilégio violar a indisponibilidade da coisa consagrada. Ao contrário profanar significa restituir ao livre uso das pessoas. A coisa restituída é pura, profana, liberada dos nomes sagrados, e logo, livre para ser usada por todos. O seu uso e significado não estão condicionados a um uso especifico separado das pessoas. A coisa restituída ao livre uso é pura no sentido que não carrega significados aprisionados, sacralizados. Concebendo a sacralização como subtração do uso livre e comum, a função da religião é de separação. A religião para o autor não vem de “religare”, religar, mas de “relegere” que significa uma atitude de escrúpulo e atenção que deve presidir nossas relações com os deuses. A hesitação inquietante (ato de relire) que deve ser observada para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une os homens aos deuses mas sim aquilo que quer mantê-los separados. A religião não é religião sem separação. O que marca a passagem do profano ao sagrado é o sacrifício.
10- A representação pode ajudar a compreender as relações de poder ou pode ajudar a encobri-las. O poder do Estado necessita da representação para ser exercido e neste caso a representação sempre mostra algo que não é, algumas vezes do que deveria ser, mas, em geral, propositalmente o que não é. A Representação pode, de um lado, ao distorcer a aparência revelar o que se esconde atrás desta e de outra forma encobrir os reais jogos de poder, os reais interesses e as reais relações de poder.
11- Várias são as formas de dominação. Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos significantes. Tem poder quem é capaz de tornar as coisas naturais, “a automatização das coisas engole tudo, coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo da guerra.” (Ler GISNSBURG, Carlo. Olhos de madeira, editora Companhia das Letras, São Paulo, 2001). Diariamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida social e privada nos leva a automação a que se refere Ginsburg. A automação nos impede de pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há porque pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonhá-lo. Basta repetir o roteiro previamente escrito e repetido pela maioria. Tem poder quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se eu tenho certeza não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza.
12- Marx e Engels, obras escolhidas em três tomos, tomo I, Edições Avante – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo, 1982, pág. 73. A mesma tradução para o português mantida no livro “A ideologia alemã – Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista”, Marx e Engels, Editora Martins Claret, São Paulo, 2006, pág. 99.
13- Marx e Engels, obras escolhidas em três tomos, tomo I, Edições Avante – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo, 1982, pág. 72. A mesma tradução para o português mantida no livro “A ideologia alemã – Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista”, Marx e Engels, Editora Martins Claret, São Paulo, 2006, pág. 100.
14- AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris, 2005, Editora Payot et Rivages.
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