sábado, 18 de setembro de 2010

58- Teoria da Constituição 7

8 PODER LOCAL E A EFETIVIDADE DA DEMOCRACIA

Jose Luiz Quadros de Magalhães

A construção de uma democracia dialógica, radical, participativa no Brasil passa por uma discussão territorial e, especialmente no nosso caso, pela discussão do pacto federativo. Só em nível local conseguiremos incluir uma população que deseja e luta por justiça.
O povo sabe o que quer e, aos poucos, está aprendendo a diferenciar o discurso da prática política. Todos os discursos podem ser iguais, mas poucos têm um projeto e uma prática de libertação política e de libertação da miséria. O povo simples pode não saber ainda a diferença teórica entre neoliberalismo e socialismo, mas sabe a diferença entre ser escravo e ser dono da sua própria vida. Se a discussão teórica a respeito do neoliberalismo está distante da compreensão de muitos no Brasil, ao trazermos esta discussão para a concretude do município, ela fica clara para todos: neoliberalismo significa a má qualidade do ensino ou a falta da escola; a má qualidade da saúde ou a falta do posto de saúde e do hospital; a falta de saneamento, etc. No município as teorias ganham concretude.
A descentralização de nada adianta sem a mudança das bases de poder no município, criando mecanismos de participação popular, como os conselhos municipais ou o orçamento participativo.17
Reformas que afastem os problemas da democracia representativa no Brasil são necessárias para facilitar o processo de transformação social e econômica e o fortalecimento da sociedade civil organizada com a busca da superação da dicotomia Estado e sociedade civil.
Entretanto, esse conjunto de reformas, por si só, não tem a força de transformação da realidade, uma vez que elas são principalmente estruturais. Nada ocorrerá sem uma sociedade civil ativa e organizada, o que vem ocorrendo de maneira crescente na história recente do Brasil.
Em Porto Alegre a democracia local começou a ser construída a partir da administração do Partido dos Trabalhadores, com a importante experiência do orçamento participativo. Excluindo-se os recursos constitucionalmente vinculados a determinados serviços, como saúde, educação e o pagamento do funcionalismo público, os outros recursos da Prefeitura passavam por discussão popular.
A peculiaridade da experiência de Porto Alegre foi o fato da existência de uma sociedade civil com grau de organização já bastante desenvolvido. Havia, portanto, uma comunidade de moradores já organizada que realizou o diálogo com o Executivo municipal nessa primeira experiência.
Havia, por parte da associação dos moradores e de setores do P T uma proposta da formação de conselhos populares. A nova administração local, entretanto, apresentou uma proposta fechada. Nesse ponto, a proposta das associações dos moradores rejeitando o modelo pronto e propondo a construção do processo de participação a partir dos próprios moradores foi fundamental para evitar um equívoco inicial. Se a proposta é participação popular, como já chegar com tudo pronto, estabelecendo a forma como o povo deve participar? Esse é um dado importante na história da construção do orçamento participativo. A partir dessa experiência, a forma de iniciação do processo é por meio do diálogo que permita atrair a população para participar na construção das regras que servirão para normatizar o próprio processo de participação popular. Em outras palavras, a população irá dizer como se dará a sua participação. É o processo de construção das regras que regulamentam o processo participativo da construção do orçamento.
Nessa primeira experiência e a partir desse conflito inicial, foi estabelecida uma das mais importantes características do orçamento participativo de Porto Alegre: as comunidades populares devem se auto-regulamentar. Não existe um regulamento previamente elaborado pela Prefeitura, nada é imposto. Em cada regional será organizada uma Assembléia Popular convocando o povo para o debate de criação das regras de funcionamento do processo de orçamento participativo. Portanto, são as assembléias populares que fazem o regulamento para seu próprio funcionamento. Eles se auto-regulamentam, sendo dever da Prefeitura fornecer os dados técnicos indicando o recurso disponível e as carências de cada região do município.
Em muitos casos, na votação popular o governo não dispõe de representante. Entretanto, há experiências diferenciadas. No que diz respeito ao processo de auto-regulamentação, um novo regulamento será elaborado todo ano, iniciando-se o processo em Dezembro e Janeiro, no final do ano fiscal e inicio do outro ano.
Após esse processo inicial, em março será o momento onde o Governo, por intermédio de uma Secretaria, (pode-se criar uma secretaria especial para o orçamento participativo, ou pode o orçamento estar ao encargo da Secretaria de Planejamento ou na Secretaria da Fazenda) levará às diversas regionais e às diversas assembléias populares, a disponibilidade de recursos, as obras necessárias, as obras em curso, o custo para cada obra, enfim, os dados técnicos para a tomada de decisão popular. Serão, então, discutidos quais os critérios para se repartir recursos entre as diversas regiões. Posteriormente serão escolhidos os conselheiros em cada uma dessas regiões para participar de uma reunião específica para a discussão da repartição dos recursos entre as diversas regionais. Nos critérios, os aspectos técnicos e democráticos devem ser observados.
Os critérios normalmente adotados levam em consideração aspectos demográficos, a carência territorial de bens, a existência ou não de uma estrutura de melhor saneamento, a existência de estrutura de saúde e educação e, por fim, é observada a exeqüibilidade da demanda, ou seja, se o que a população deseja é possível ser feito.
É necessária, portanto, uma assessoria técnica por parte da Prefeitura com relação à exeqüibilidade da obra. No município de Belo Horizonte, inseriu-se, a partir de 1993, o novo mecanismo chamado Caravana do Orçamento Participativo, em que conselheiros escolhidos em cada regional18 discutem a repartição dos recursos entre as regionais. A decisão da divisão de recursos é precedida de visitas às várias regiões e bairros da cidade, verificando de perto as carências, necessidades e infra-estrutura existente.
Esse mecanismo tem se mostrado eficaz, permitindo aos conselheiros, originários de diferentes regiões, conhecer a realidade do todo (deve-se lembrar que estamos falando de cidades de milhões de habitantes, como São Paulo; Belo Horizonte e Porto Alegre). Os conselheiros que representam regiões distintas podem, com isso, conhecer a realidade de todas as regiões do município, processo que tem tido resultados interessantes, pois gera conhecimento e sensibilidade dos problemas locais, permitindo a superação de um sentimento egoísta. No momento da votação, é costume estabelecer três prioridades de intervenção do Estado municipal.
Os representantes do Executivo municipal são, em geral, assessores técnicos com direito a voz mas sem direito a voto. A deliberação é popular. Após tomadas as decisões, estas são encaminhadas ao Executivo, para que técnicos possam montar a lei orçamentária, que será encaminhada no final do ano para a Câmara dos Vereadores (o Legislativo municipal).
Não é necessário que haja vinculação obrigatória do Executivo municipal em relação às decisões populares no momento da montagem da lei orçamentária, uma vez que surge, com o crescimento da participação popular, clara vinculação eleitoral. O prefeito (ou governador) que não respeitar o que o povo deliberou dificilmente será eleito para qualquer cargo, pelo menos naquele nível territorial. Ocorre, portanto, um controle social.
Outra questão pode surgir: o Legislativo é obrigado a aprovar o projeto de lei proposto pelo Executivo a partir da deliberação popular? É claro que não. É uma proposta do Executivo para o Legislativo segundo a Constituição do Município (a lei orgânica), ou seja, o Executivo não está obrigado a observar as deliberações populares nem o legislativo está obrigado a aprovar o projeto de lei orçamentária. Mas vale o mesmo raciocínio: se a Câmara não aprovar a deliberação da população, deve ter explicações convincentes para o seu eleitorado. Nesse mecanismo podemos perceber a revalorização da democracia representativa a partir do funcionamento da democracia participativa.
Pode-se perceber, nas experiências relatadas, que o orçamento participativo atua de forma complementar à democracia representativa; ele não substitui a democracia representativa, há o prefeito, os legisladores, a aplicação de recursos públicos por meio da proposta de uma lei orçamentária por parte do Executivo que deverá ser aprovada pelo Legislativo, ou seja, a democracia participativa não substitui a democracia representativa, mas contribui para o seu aperfeiçoamento. Em outras palavras, a democracia participativa garante que a democracia representativa seja mais democrática.
O sucesso do orçamento participativo é demonstrado pelo crescente interesse de municípios brasileiros e em todo o mundo na adoção desse mecanismo. No Brasil, entre 1989 e 1992, 12 municípios realizaram o orçamento participativo. De 1993 a 1996 foram 36 municípios; de 1997 a 2000 foram 103 municípios; e de 2001 até início de 2004, estima-se que cerca de 300 municípios adotaram o orçamento participativo.
Durante esse tempo, ocorreram algumas experiências intermediárias, ou seja, algumas experiências de orçamento participativo meramente consultivo, o que não resultou em muito sucesso. Por exemplo, na Prefeitura de Recife, em Pernambuco, foi criado um orçamento participativo de caráter consultivo. Eram realizadas reuniões com a população, ouvia-se a população e, depois, o Executivo fazia suas próprias escolhas e remetia à Câmara.
Essa experiência resultou numa correspondência entre aquilo que o povo queria em termos de orçamento participativo e o que realmente era efetivado em torno de 30% a 40%, enquanto no sistema deliberativo o resultado de efetivação das obras escolhidas pelo povo tem a média de 87% das deliberações populares, ou seja, 87% do que o povo escolhe se concretiza em obras públicas para a população do município. Esse resultado pequeno do sistema consultivo em relação ao sistema deliberativo tem afastado o povo das assembléias consultivas, o inverso do que ocorre no sistema deliberativo, que a cada ano recebe mais participação popular.
A democracia participativa tem de se inserir nas reflexões sobre a resistência ao poder econômico global, ao neoliberalismo, uma vez que o grande capital, as grandes corporações globais detêm um enorme poder de propaganda; eles detêm os meios de comunicação, o poder econômico e impõem aos Estados nacionais, uma situação de exclusão e de miséria.

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