quarta-feira, 15 de setembro de 2010

56- Teoria da Constituição 5

5 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E DEMOCRACIA DIALÓGICA

JOSE LUIZ QUADROS DE MAGALHAES

Discutimos a democracia e a organização territorial do Estado brasileiro. Agora é importante discutir a fascinante experiência de construção da democracia participativa no Brasil para, então, verificar a importância de continuar em direção a descentralização coordenada e concertada.
O Brasil vem vivendo experiência muito importante de democracia participativa, que se iniciou com o primeiro orçamento participativo municipal em Pelotas, Rio Grande do Sul, sendo depois levada para administração de Porto Alegre. É importante lembrar que a organização da sociedade civil que permite o avanço do poder local democrático participativo encontra suas bases nos movimentos de resistência à ditadura civil-militar de direita (1962–1985), no movimento de formação das comunidades eclesiais de base e no movimento sindical no final da década de 1970, movimentos que estão na base da criação do Partido dos Trabalhadores.
O orçamento participativo é um importante mecanismo de democracia participativa que permite a integração do cidadão e de grupos de cidadãos na construção da democracia local do Brasil. 9
Discutimos um pouco a questão da crise da democracia representativa e o fortalecimento de uma nova democracia representativa a partir do fortalecimento da participação popular ou da democracia participativa. O fortalecimento da democracia representativa passa pela ampliação dos instrumentos de participação popular mediante a criação de mecanismos que ofereçam permeabilidade ao poder do Estado, criando canais de participação cada vez maiores para que se supere gradualmente a velha dicotomia liberal entre Estado e sociedade civil. Essa participação popular desejada que resulte em decisão, mais democracia e controle social efetivo ocorrerá de maneira efetiva e eficiente, justamente, no poder local.
No Brasil, observamos a busca de maior descentralização e fortalecimento do poder local integrado em uma federação. É importante ressaltar que não basta descentralizar, é fundamental que o processo de descentralização leve em consideração a democracia participativa local e busque um desenvolvimento territorial equilibrado, reduzindo as desigualdades sociais e regionais. Para que isso ocorra, é necessária a correta distribuição de competências entre as diversas esferas de poder no território, desde a União, passando pelos Estados-Membros, chegando aos municípios. As esferas de coordenação de políticas macro de desenvolvimento equilibrado têm de permanecer com os entes territoriais maiores, que poderão, dessa forma, produzir o equilíbrio por meio de políticas de compensações tributárias para as diferentes realidades regionais e municipais.


6 PODER LOCAL E O RESGATE DA DEMOCRACIA SOCIAL

Para nós, no Brasil, que não vivemos um Estado Social efetivo capaz de oferecer saúde, educação e previdência de qualidade para todos, o caminho para a inclusão e a efetiva participação do nosso povo como cidadãos é o da fragmentação coordenada do poder, a descentralização radical de competências, fortalecendo os Estados e, principalmente, os municípios, assim como tornando permeável o poder, com a criação de canais de participação popular permanentes, como os conselhos municipais, o orçamento participativo e outros mecanismos de participação, assim como o incentivo permanente à organização da sociedade civil e o fortalecimento dos meios alternativos de comunicação, como as rádios, jornais e televisões comunitárias. Podemos, construir uma democracia social e participativa a partir do poder local.
No Brasil, menos de um ano depois da promulgação da Constituição democrática e social de 1988, assistimos ao início do desmonte da nova ordem econômica e social prevista pela Constituição. Nesse mesmo momento, como suporte teórico do desmonte do Estado social, cresceu a crítica simplificadora proveniente do pensamento neoliberal e neoconservador e ratificada por parte nova esquerda (como o novo trabalhismo de Tony Blair). Essa crítica ao Estado social que vem dar suporte ao seu desmonte aponta o caráter assistencialista como gerador de um exército de clientes que se amparam no Estado, não mais produzindo, não mais criando, enfim, o Estado social de caráter autoritário, por retirar espaços de escolha individual, é gerador de não-cidadãos, ao incentivar as pessoas a viver às custas do Estado. Essa crítica toma um problema pontualmente localizado no tempo e no espaço como regra para explicar a crise do Estado social.
O discurso recorrente dos críticos do Estado social é que este não deve sustentar os que não querem trabalhar, pois essa postura incentiva a expansão dos não-cidadãos e sobrecarrega os que trabalham e o setor produtivo com alta carga tributária. O pobre deve trabalhar para ter acesso àquilo que necessita, mas como não há trabalho para todos, (nem mesmo o trabalho indesejável e mal pago destinado a estes excluídos), aumenta a população carcerária. O Estado social assistencialista é substituído pelo Estado penal da era neoliberal. O criticado cliente do assistencialismo da segurança social foi transformado em cliente do sistema penal da segurança policial.
Nesse novo paradigma, a pobreza não decorre das barreiras sociais e econômicas, mas, sim, do comportamento do pobre. O Estado não deve atrair as pessoas a uma conduta desejável por meio de reconhecimento, mas deve punir os que não agem como o desejado. O não-trabalho passa a ser um ato político que exige o recurso à autoridade. O Estado social passa a ser visto como permissivo, pois não exige uma obrigação de comportamento a seus beneficiários. A direita conservadora mais reacionária e a autoproclamada vanguarda da nova esquerda dão eco a vozes como a de Charles Murray, que afirma que as uniões ilegítimas e as famílias monoparentais seriam a causa da pobreza e do crime e, por sua vez, o Estado social com sua política permissiva incentivava tais práticas. Além disso, a classe média produtiva se revoltava cada vez mais com a obrigação de pagar tributos para sustentar essas práticas.10
Os críticos do Estado social defendem cortes radicais nos orçamentos sociais e a retomada por parte da polícia dos bairros antes operários, hoje ocupados pelos clientes preferenciais do sistema social que tem de deixar de existir.
O resultado dessas políticas (tanto da direita conservadora como da nova esquerda) é conhecido nosso no século XXI: mais exclusão, mais concentração econômica, mais violência, mais controle social, mais desemprego, menos Estado de bem-estar e mais Estado policial. O mais grave é o fato de que, ainda hoje, vozes que se dizem democráticas e à esquerda, continuam sustentando o mesmo discurso contra o Estado social, defendendo uma sonhada e desejável democracia dialógica construída pela sociedade civil livre, sem perceber que os novos excluídos estão fora do diálogo democrático, passando a fazer parte da crescente massa de clientes do sistema penal em expansão.
Importante notar que essa sociedade civil que hoje se organiza em nível local e global e se comunica, organiza e age local e globalmente, em muitas manifestações, resiste ao desmonte do Estado de direito, das conquistas dos direitos sociais e busca uma nova ordem econômica onde não haja exclusão econômica.
Com menos vigor e contundência que os movimentos sociais, mas com importante papel no cenário de resgate de um paradigma social, o discurso e a prática de novos governos de centro-esquerda, no final do século XX e início do século XXI na América Latina demonstram uma retomada do papel do Estado na economia e na questão social, abandonando gradualmente o modelo neoliberal.
No Brasil, o caminho para a construção de uma democracia participativa e dialógica, de resistência ao desmonte do Estado social e democrático de direito passa pela questão local.


9 Há uma vasta literatura sobre o tema da qual citamos: SANCHEZ, Félix. Orçamento participativo: teoria e prática. São Paulo: Cortez, 2002; GENRO, Tarso; SOUZA, Ubiratan de. Orçamento participativo: a experiência de Porto Alegre. 4. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001; CALDERÓN, Ignácio, CHAIA, Vera (Org.). Gestão municipal: descentralização e participação popular. São Paulo: Cortez, 2002; MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001; DANIEL, Celso et al. Poder local e socialismo. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.
10 Essa crítica esta muito bem construída no livro de Loic Wacquant, Prisões da miséria (Rio de Janeiro: Zahar, 2001).

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