terça-feira, 14 de setembro de 2010

52- Teoria da Constituição 1

O CONSTITUCIONALISMO
MODERNO

Jose Luiz Quadros de Magalhaes

O constitucionalismo moderno se afirma com as revoluções burguesas na Inglaterra em 1688; em Estados Unidos, em 1776, e na Franca em 1789. Podemos, entretanto, encontrar o embrião desse constitucionalismo já na Magna Carta de 1215. Não que a Magna Carta seja a primeira Constituição moderna, pois isto não e verdade, mas nela já estão presentes os elementos essenciais deste moderno constitucionalismo: limitação do poder do Estado e a declaração dos Direitos fundamentais da pessoa humana.
Podemos dizer que, desde então, toda e qualquer Constituição do mundo, seja qual for o seu tipo, liberal, social ou socialista, contém sempre como conteúdo de suas normas estes dois elementos: normas de organização e funcionamento do Estado, distribuição de competências e, portanto, limitação do poder do Estado e normas que declaram e posteriormente protegem e garantem os direitos fundamentais da pessoa humana. O que muda de Constituição para Constituição é a forma de tratamento constitucional oferecida a este conteúdo, ou seja, o grau de limitação ao poder do Estado, a forma como o poder do Estado está organizado e os meios existentes de participação popular e de respeito à liberdade de imprensa, de consciência e de expressão, o respeito às minorias e a diversidade cultural e étnica (regime e sistema político), a forma de distribuição de competência e de organização do território do Estado (forma de Estado), a relação entre os poderes do Estado (sistema de governo) e os Direitos fundamentais declarados e garantidos pela Constituição (tipo de Estado).
Outro aspecto do constitucionalismo moderno diz respeito à sua essência. O nascimento desse constitucionalismo coincide com o nascimento do Estado liberal e a adoção do modelo econômico liberal. Portanto, a essência desse constitucionalismo está na construção do individualismo e de uma liberdade individual, construída sobre dois fundamentos básicos: a omissão estatal e a propriedade privada.
A idéia de liberdade no Estado liberal, inicialmente, está vinculada à idéia de propriedade privada e ao afastamento do Estado da esfera privada protegendo-se as decisões individuais. Em outras palavras, há liberdade à medida que não há a intervenção do Estado na esfera privada e, em segundo lugar, podemos dizer, segundo o paradigma liberal, que os homens eram livres, pois eram proprietários (na primeira fase do liberalismo, as mulheres não tinham direitos e a democracia majoritária não existia). Esses dois aspectos são fundamentais para a compreensão do conceito de liberdade para o pensamento liberal do século XVII e XVIII. Convém ressaltar a importância da inserção histórica desse pensamento para a sua adequada compreensão. Em primeiro lugar, é importante lembrar contra qual Estado se insurgem os liberais. Não se pode dizer que os liberais são contrários ao Estado social ou socialista ou qualquer outra formulação histórica posterior, justamente pelo fato de que o Estado que conheciam e contra o qual lutavam era o Estado absoluto. Portanto, a primeira constatação importante é de que os liberais se insurgem contra o Estado absoluto. Quando esses pensadores visualizam o Estado como o inimigo da liberdade, têm como referencia o Estado absoluto, que eliminou toda e qualquer forma de liberdade individual para grande parte da população, e transformou os direitos individuais em direitos de poucos privilegiados. Essa compreensão histórica da teoria liberal nos ajuda a entender por que os liberais afirmam os direitos individuais como direitos negativos, construídos contra o Estado, conquistados em face do Estado. A partir do consti¬tucionalismo liberal, o cidadão pode afirmar que é livre para expressar o seu pensamento, uma vez que o Estado não censura sua palavra; o cidadão é livre para se locomover, uma vez que o Estado não o prende arbitrariamente; o cidadão é livre, uma vez que o Estado não invade sua liberdade; a economia é livre, uma vez que o Estado não intervém na economia. Lembramos que o Estado que os liberais combatiam era o Estado absoluto.
Um aspecto fundamental para a correta compreensão do constitucionalismo liberal e de qualquer idéia ou teoria é a necessidade de inserção desta no contexto histórico em que ela surge. O pesquisador, o leitor interessado em compreender o pensamento de determinado autor deve conhecer o autor, sua historia e para qual realidade esse autor escreveu ou escreve. Isso evitará muitos erros de compreensão comuns e recorrentes em diversos trabalhos ditos científicos. Não se pode compreender o pensamento de Hobbes sem conhecer sua história e o momento histórico que inspirou seu pensamento. Isso vale para qualquer outro pensador, e as grandes incompreensões das teorias decorrem justamente da falta de conhecimento do contexto histórico no qual elas foram pensadas e construídas, e mais, por quem essas teorias foram pensadas. Não se pode, por exemplo, ler Nietsche sem conhecer sua história; o risco que se corre é compreendê-lo pelo avesso ou, na verdade, não compreendê-lo. Portanto, para entender a defesa que os liberais fazem da propriedade privada, a confusão que fazem entre economia livre e omissão estatal, desregulamentação e propriedade privada dos meios de produção, é importante compreender o contexto histórico e a idéia de Estado que esses liberais tinham no momento da construção de suas teorias. Ao estudarmos a história da realidade econômica (e não do pensamento econômico) desde então, perceberemos, com clareza, que esses fatores só trouxeram opressão e exclusão, portanto, falta de liberdade para grande parte dos cidadãos.
A defesa do Estado forte defendido por Hobbes, portanto, se dá em uma realidade de caos decorrente da fragmentação de poder não coordenada, que trouxe constantes guerras e destruição. O Estado absoluto surge com a necessidade de se colocar ordem no caos, surge da necessidade de segurança, e daí decorre a construção de uma única vontade estatal encarnada no soberano e no conceito antigo de soberania una, indivisível, im¬prescritível e inalienável, já estudado no volume 2 do nosso Curso de Direito Constitucional. Do poder permanentemente negociado, da existência de diversos espaços quase soberanos, da negociação de fidelidade dos exércitos dos senhores feudais, característica final do feudalismo, surge o Estado absoluto, com um único foco de poder, uma única vontade soberana e um único exército. Isso é garantia de segurança. O Estado moderno, na sua primeira versão absolutista, surge da afirmação do poder do rei perante os impérios e a igreja (soberania externa) e perante os senhores feudais (nobres) que fragmentavam o poder do Estado, cada um possuindo seu próprio exército e poder quase soberano sobre o seu feudo. As vitórias dos reis sobre os impérios e a Igreja, de um lado, e sobre os senhores feudais, de outro lado, são a base para o surgimento do Estado moderno, que é um Estado territorial, nacional, monárquico, centralizador de todos os poderes e soberano em duas dimensões, a externa e a interna.1
O Estado nacional é uma construção histórica complexa, realizada com a força dessa única vontade e desse único exército. A criação dos Estados nacionais como Espanha e França é um exercício de imposição de um valor comum, uma história comum, um idioma comum, uma religião comum, capaz de criar um elo entre os habitantes desse Estado que os faça se sentirem parte da vontade nacional, parte do Estado nacional. O sentimento de pertinência ao Estado nacional é elemento fundamental para sua formação e permanência.
Entretanto esse Estado absoluto cresce demais e elimina cada vez mais a individualidade (o liberalismo não inventa o indivíduo, reinventa-o), eliminando a vontade individual. É nesse contexto que o pensamento liberal surge e as revoluções liberais ocorrem. Elas representam um resgate da liberdade perdida há muito tempo, uma vez que a opressão do Estado absoluto tornou insuportável a continuidade da convivência com a falta dessa liberdade. O Estado liberal não inventa o individuo, ele sistematiza e ideologiza o individualismo, mas, acima de tudo, o Estado liberal representa a vitória da burguesia, e logo a vitória dos interesses desta classe. Quanto ao povo, resta o discurso de liberdade, em que muitos ainda acreditam hoje. Resta a liberdade liberal do sonho da riqueza por meio do trabalho ou, melhor dizendo, da “livre iniciativa” e da “livre concorrência”.
A essência do constitucionalismo liberal no seu momento inicial é, portanto, a segurança nas relações jurídicas e a proteção do individuo contra o Estado. Não há uma conexão entre consti¬tucionalismo e democracia. Se a democracia é hoje elemento essencial para o constitucionalismo, no inicio do constitucio¬nalis¬mo liberal ela parecia incompatível com a essência deste. Como combinar a proteção da vontade de um com a democracia majoritária em que prevalece a vontade da maioria. A junção entre democracia e constitucionalismo liberal ocorre na segunda fase do Estado liberal, que estudamos no nosso curso de Direito Constitucional, tomo I. A idéia de que a vontade da maioria não pode tudo e que um governante não pode alegar o apoio da maioria para fazer o que bem entender decorre dessa junção importante para a teoria constitucional democrática. O absolutismo da maioria é tão perverso quanto o absolutismo de um grupo, e a confusão entre opinião pública e democracia é sempre muito perigosa. Logo, a democracia constitucional liberal, construída no século XIX, entende que a vontade da maioria não pode ignorar os direitos da minoria e os direitos de um só. Os limites a vontade da maioria são impostos pelo núcleo duro, intocável dos direitos fundamentais, protegidos pela Constituição, e que na época do liberalismo eram reduzidos apenas aos direitos individuais.
Desde então, o constitucionalismo evoluiu, transformou-se, regrediu nos últimos tempos e hoje se encontra em grave crise, quando o discurso econômico, de forma ideológica e autoritária, submete o Direito a seus pseudo-imperativos matemáticos. Entretanto podemos dizer que em todas as constituições modernas (sejam liberais, sociais ou socialistas) vamos encontrar sempre os dois tipos de conteúdos comuns em suas normas: organização e funcionamento do Estado com a sua conseqüente limitação do poder e a declaração e proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana.
A evolução do constitucionalismo moderno coincide com a evolução do Estado moderno, o que foi estudado no capítulo 1 e 2 do tomo I do livro Direito Constitucional e revisto com outro enfoque no capítulo 2 do tomo II. Portanto não cabe aqui retomarmos este tema e remetemos o leitor a leitura daqueles capítulos.2
As constituições modernas que representam o início desse longo processo de construção do constitucionalismo são a da Inglaterra (a partir da Magna Carta de 1215 e em constante processo de construção até os dias de hoje), a Constituição norte-americana de 1787 e as constituições francesas do período revolucionário de 1791, 1793, 1795, 1799 e 1804. No Brasil, a nossa primeira Constituição de 1824 (no Império) e a de 1891 (primeira republicana) são liberais e representam a primeira e segunda fase do constitucionalismo. A fase de transição para o constitucionalismo liberal no Brasil ocorre na década de 1920 e a nossa primeira Constituição social é a de 1934. A Constituição de 1937 representa a influência do social-fascismo no Brasil. Essa Constituição traz os elementos característicos dessa ideologia (ultrana¬cionalista, antiliberal, anti-socialista, anticomunista, antidemocrática, anti-operariado e autoritária). Em 1946, temos o retorno do Estado social e democrático (democracia representativa) com nova interrupção autoritária em 1964.
A ditadura do empresariado e dos generais, apoiada pelos Estados Unidos, tentou se legitimar com as constituições autoritárias (e desrespeitadas pelo próprio governo ditatorial) de 1967 e 1969. Essas constituições têm caráter social autoritário e permanecem até a Constituição de 1988, típica Constituição social que introduz, entretanto, o novo conceito de Estado Democrático de Direito, interpretado de maneira diversa pela doutrina brasileira.
Mais adiante vamos estudar a formação das constituições inglesa e norte-americana e compreender a importante contribuição que elas trouxeram para o Direito brasileiro e para hermenêutica constitucional contemporânea. Antes, porém, vamos estudar o caminho trilhado pelo Brasil em busca da construção do Estado Social e Democrático de Direito. Depois, é necessário compreender a teoria da separação de poderes como base da limitação do poder do Estado, a teoria do poder constituinte como a base da segurança jurídica e os tipos de textos constitucionais ou a classificação das constituições.


1 CUEVA, Mario de la. La idea del estado, p. 49.
2 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. t. I, Belo Horizonte. MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. t. II.

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