terça-feira, 26 de novembro de 2013

1382- Artigo de Luis Greco e Alaor Leite sobre a Teoria do Domínio do Fato.

LUIS GRECO E ALAOR LEITE
Fatos e mitos sobre a teoria do domínio do fato
A teoria não condena quem, sem ela, seria absolvido. Não dispensa a prova da culpa nem autoriza que se condene com base em presunção
Desde o julgamento do mensalão, não há quem não tenha ouvido falar na teoria do domínio do fato. Muito do que se diz, contudo, não é verdadeiro.
Nem os seus adeptos, como alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, nem os que a criticam, como mais recentemente o jurista Ives Gandra da Silva Martins, parecem dominar o domínio do fato.
Talvez porque falte o óbvio: ler a fonte, em especial os escritos do maior arquiteto da teoria, o professor alemão Claus Roxin. Mesmo os técnicos tropeçam em mal-entendidos, de modo que o público merece alguns esclarecimentos.
Primeiro, um fato. Simplificando (vide nosso estudo "O que é e o que não é a teoria do domínio do fato", RT 933, 2013, p. 61-92), a teoria do domínio do fato define quem é o autor de um crime, em contraposição ao mero partícipe. O autor responde por fato próprio, sua responsabilidade é originária. Já o partícipe responde por concorrer em fato alheio --sua responsabilidade é, nesse sentido, derivada ou acessória.
O Código Penal brasileiro (art. 29 caput), embora possa ser compatibilizado com a teoria do domínio do fato, inclina-se para uma teoria que nem sequer distingue autor de partícipe: todos que concorrem para o crime são, simplesmente, autores.
A teoria tradicional diz que fatos alheios também são próprios; emprestar a arma é matar.
Para o domínio do fato, porém, o autor, além de concorrer para o fato, tem de dominá-lo; quem concorre, sem dominar, nunca é autor. Matar é atirar; emprestar a arma é participar no ato alheio de matar.
Na prática: a teoria do domínio do fato não condena quem, sem ela, seria absolvido; ela não facilita, e sim dificulta condenações. Sempre que for possível condenar alguém com a teoria do domínio do fato, será possível condenar sem ela.
Passemos aos mitos. A teoria não serve para responsabilizar um sujeito apenas pela posição que ele ocupa. No direito penal, só se responde por ação ou por omissão, nunca por mera posição.
O dono da padaria, só pelo fato de sê-lo, não responde pelo estupro cometido pelo funcionário; ele não domina esse fato --noutras palavras, ele não estupra, só por ser dono da padaria.
Parece, contudo, que, em alguns dos votos de ministros do STF, o termo "domínio do fato" foi usado no sentido de uma responsabilidade pela posição. Isso é errôneo: o chefe deve ser punido, não pela posição de chefe, mas pela ação de comandar ou pela omissão de impedir; e essa punição pode ocorrer tanto por fato próprio, isto é, como autor, quanto por contribuição em fato alheio, como partícipe.
A teoria do domínio do fato não é teoria processual: ela nem dispensa a prova da culpa, nem autoriza que se condene com base em presunção --ao contrário do que se lê no voto da ministra Rosa Weber, que fala em uma "presunção relativa de autoria dos dirigentes", e na entrevista de Ives Gandra.
Sem provas, ou em dúvida, absolve-se o acusado, com ou sem teoria do domínio do fato.
A teoria tampouco tem como protótipos situações de exceção, como uma ordem de Hitler. Isso é apenas uma parte da teoria, talvez a mais famosa, certamente a mais controvertida, mas não a mais importante.
Um derradeiro fato. A teoria do domínio do fato não pode ter sido a responsável pela condenação deste ou daquele réu. Se foi aplicada corretamente, ela terá punido menos, e não mais do que com base na leitura tradicional de nosso Código Penal. Se foi aplicada incorretamente, as condenações não se fundaram nela, mas em teses que lhe usurparam o nome.
Não se deve temer a teoria, corretamente compreendida e aplicada, e sim aquilo que, na melhor das hipóteses, é diletantismo e, na pior, verdadeiro embuste.

domingo, 17 de novembro de 2013

1379- Novo blog: JLQM1962.blogspot.com

Oi todos.
Criei um novo blog só com textos variados, reflexões e videos. São textos novos e antigos (relidos e reescritos) e alguns videos.
Lendo alguns textos mais antigos percebi que mudei muito de opinião. Ainda bem. Assim criei este novo blog só com textos que correspondem a este novo momento, que não sei o quanto vai durar, pois vou mudando com tudo e como tudo, todo dia. São ensaios, crônicas e artigos que aos poucos vou postando. Este blog permanece com a proposta inicial dele, com programas das disciplinas dos cursos de Direito e Ciencias do Estado; livros; artigos; colunas; cinema; noticias; arte; dança; música...

O ENDEREÇO DO NOVO BLOG:

sábado, 16 de novembro de 2013

1378- Ensaios José Luiz Quadros: Infiltrações - direito à diferença e direito à diversidade



INFILTRAÇÕES 
(Direito à diferença e direito à diversidade)
por José Luiz Quadros de Magalhães

            
             Vimos que a Constituição brasileira anuncia uma nova perspectiva de compreensão dos direitos de igualdade e diferença ao reconhecer o direito à diferença como direito individual e coletivo. Compreendemos que a modernidade se funda em um projeto hegemônico e europeu que para justificar-se estabeleceu e reproduziu a lógica binária de subalternização do outro diferente: nós versus eles. Assim o direito e o estado moderno tem um objetivo essencial que persegue nestes duzentos anos de modernidade e do qual depende a continuidade do poder centralizado, hegemônico e hierarquizado deste estado moderno: a uniformização de valores e comportamentos que passa pela uniformização do direito de família e de propriedade, o que viabiliza o poder central do estado e da economia moderna. Partindo destes pressupostos vamos desenvolver a ideia de um direito à diversidade individual e coletivo como um novo paradigma constitucional que ultrapassa a lógica binária e um direito à diferença como direito também individual e coletivo.

            Antes de analisarmos a diferença entre estes direitos de diferença e diversidade vamos procurar compreendê-los como infiltrações modernas. O que seriam estas infiltrações? Como elas ocorrem e quais podem ser suas consequências?

            No conceito que brevemente construímos de modernidade vimos que esta é europeia, não existe para todos, é hegemônica e necessita de uniformizar os menos diferentes, expulsando, excluindo, exterminando, encarcerando os considerados mais diferentes nestes 500 anos de modernidade europeia. Delimitando o conceito de modernidade em sua tarefa hegemônica de criação de uniformidades (padrões), podemos compreender como "infiltrações" os movimentos que contrariam este objetivo.

            Temos uma hipótese que se abre para comprovações e refutações que muito poderão ajudar na compreensão deste projeto moderno. Em medidas distintas, os movimentos de resistência e por ruptura, reproduzem os elementos essenciais da modernidade: padronização, uniformização e pensamento binário subalternizado (nós civilizados versus eles incivilizados), que se reproduzem em discursos mitológicos da modernidade como o "universalismo" europeu; a separação do indivíduo da natureza; o desenvolvimento linear que sustenta o discurso civilizatório ocidental. Mais, em medidas distintas, os pensamentos político, econômico e filosófico modernos reproduzem estas hegemonias e mitos, o que pode ser encontrado, por exemplo, em Hegel, Kant, Marx, e nas construções políticas, econômicas e filosóficas do liberalismo, socialismo, comunismo, social-democracia e claro, no conservadorismo de direita, assim como nas exacerbações modernas do fascismo e do nazismo. Há algo de não moderno? Onde existem as infiltrações e quais são os movimentos de resistência efetiva que escapam do núcleo moderno?

            Neste sentido analisamos o direito a diferença (individual e coletivo) e o direito à diversidade (individual e coletivo).

           

DIEITO À DIFERENÇA



            Em que medida ou quantas vezes a luta e a conquista de direitos dos grupos subalternizados não foi transformada em permissões de "jouissance" que enquadraram os "diferentes" nos padrões modernos? O direito à diferença pode ser considerado uma infiltração na modernidade que pode destruir sua represa de uniformização e subalternização?

            O direito à diferença confronta e desafia a tarefa do estado e do direito moderno de uniformização de comportamentos e valores, e de encobrimento, expulsão, encarceramento ou eliminação daqueles grupos ou pessoas que resistem ou não se adéquam à padronização. O padrão moderno de hegemonia do "homem branco europeu" construiu uma sociedade androcentrica, estabelecendo a sua primeira "outra" diferente: a mulher. A relação entre homens e mulheres, marido e mulher, explicita o dispositivo "nós" superior e "elas" inferior[1]. As lutas das mulheres pela ressignificação de seu sentido social, pode se apresentar de três formas: como resistência; como busca por ruptura; ou ainda, como infiltração, ao negligenciar o padrão masculino. Em todos os casos, vemos uma ameaça ao projeto moderno.

            Esta luta por direitos das mulheres (direito a diferença enquanto um direito individual) e os seus mais recentes fatos e construções teóricas, é importante para exemplificarmos o que entendemos por resistência; busca de ruptura (confronto); negligencia (infiltrações); assim como a transformação desta luta em assimilações e permissões por contaminações pela modernidade.

            O luta pelo direito à diferença pode ser entendido como uma infiltração no projeto moderno de uniformização e subalternização do outro (diferente) na medida em que, os movimentos sociais diversos, que lutam por "reconhecimento", forçam sua entrada no sistema, criando tensões e contradições que podem levar ao comprometimento, transformação e até ruptura do sistema moderno. Será? Como o sistema reage a estas tensões? Primeiro, ao pedir reconhecimento, este pedido significa entrar no sistema. O pedido de reconhecimento pelo sistema é um pedido de acolhimento pelo sistema, o que pode significar que estamos a um passo da transformação de um direito em uma permissão, assim como a contaminação desta luta pela lógica do sistema. Assim, esta luta por reconhecimento deixa de ser contradição em relação ao sistema (moderno) e passa a ser comandada pelos mesmos princípios uniformizadores e binários subalternizados da modernidade.

            Um exemplo disto podemos encontrar na história, na luta de mulheres revolucionárias, que já foi por um novo sistema (ainda há exceções) que supere as exclusões e passou a ser majoritariamente uma luta pelo reconhecimento de direitos pelo sistema, o que mantém algum tipo, sempre, de exclusão. A líder operária norteamericana "Mother Jones" (Mary Harris, imigrante pobre irlandesa que participou da fundação do partido socialista dos EUA em 1901) discursou no inicio do século XX: "Fora a derrota total do sistema capitalista, não vejo nenhuma solução. Em meu juízo, o pai que vota pela perpetuação deste sistema é tão assassino quanto se pegasse um revolver para matar seus próprios filhos."[2]

            O projeto de mudar todo o sistema é transformado, nas últimas décadas do século XX, em reivindicações pontuais e fragmentadas, de grupos que passam a atuar individualmente e reproduzem a lógica moderna "nós x eles" como por exemplo "nós" mulheres versus "eles" homens. Judith Butler[3] nos chama atenção para muitos casais gays femininos que reproduzem a lógica binária "masculino versus feminino" fundado no pensamento binário de subalternidade do outro, onde se vê uma pessoa assumindo o papel masculino de opressão (com violência física e/ou moral) sobre a outra pessoa do casal que desempenha o papel histórico moderno da subalternidade feminina.

            Butler nos chama a atenção para a necessidade de superar o pensamento binário na questão de gênero (ou mesmo superar o gênero) para evitar reproduzir a opressão binária presente no conceito de sexo (bilógico) e de gênero (social cultural naturalizado).

            Citando Judith Butler:

            "Aunque algunas lesbianas afirman que la identidad lésbica masculina no tiene nada que ver con "ser hombre", otras sostienen que dicha identidad no es o no ha sido más que un camino hacia el deseo de ser hombre. Sin duda estas paradojas ha proliferado en los últimos años y proporcionan pruebas de un tipo de disputa sobre el género que el texto mismo no previó."[4]

            Ao se referir ao não previsto no texto, Judith Butler se refere a um texto seu que fundamentou o inicio do desenvolvimento da teoria Queer.

            Vemos aí o exemplo de que, o que aparece como resistência, se transforma em luta por ruptura e reconstrução de sentidos, pode acabar por se transformar em aceitações de "permissões" que contaminam a luta por direitos de diferença reproduzindo de novo o padrão moderno "uniformizador" e "binário opressivo" que rebaixa ou subordina um outro, qualquer outro.

            A história  do movimento gay, em busca de revolução e construção de uma outra sociedade onde haja espaço para "todxs"[5], nos ajuda a compreender as perigosas armadilhas modernas e nos leva ainda a entender como, mesmo exigindo uma outra sociedade igualitária economicamente (e não só), a esquerda caiu em várias armadilhas modernas: "En la noche del 27 de Junio de 1969, la polícia irrumpe en Stonewall Inn, un bar gay de Nueva York frecuentado por travestis afroamericanos y portorrinqueños. Aropellos, redadas, arrestos: el control se excede e degenera. Se suceden tres noches de motines que radicalizan el movimiento homosexual y desenbocan en la creación del Gay Liberation Front (GLF)".[6]

            Na obra "Gay Manifesto" de Carl Wittman (1970)[7], o autor assiná-la que é necessário unir a luta dos oprimidos associando compromisso revolucionário com emancipação social. Para o autor é necessário perceber que os heterossexuais, assim como os brancos, homens, anglofonos e capitalistas, só percebem o mundo em um registro binário hierarquizado onde 1 é inferior a 2 que é inferior a 3 e assim por diante. Não há lugar para a igualdade e as oposições binárias sempre remetem a um inferior: homem/mulher; heterossexual/homossexual; patrão/empregado; branco/negro; rico/pobre. Nos EUA o movimento revolucionário Gay pretende estabelecer uma nova ordem que lute por um mundo sem os padrões uniformizadores e o padrão binário de subalternização do outro. Na década de 1960/70 o discurso do GLF seduziu o Black Panther Party (BPP) e os lemas "Black is Beautiful" e "Gay is good" foram vistos juntos. Em 1970, na "Revolutinary People's Constitutional Convention" defendia-se a união das lutas dos "outros" subalternizados e excluídos pela modernidade: a união de negros, mulheres e gays para a construção de um outro mundo.

            Na década de 1970, dezesseis grupos revolucionários como o Gay Liberation Front, representando 10 países, se reuniram para formar uma Internacional Homossexual Revolucionária (IHR). Na França, a Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR) associava a defesa de mudanças radicais dos costumes e transformação social. Esta história nos é especialmente importante para pensarmos nossa hipótese. A defesa da Frente é a mudança da sociedade, ruptura com o capitalismo e o que este sistema econômico traz com ele: a uniformização de costumes e valores assim como com os registros binários (o dispositivo moderno nós superiores versus eles inferiores). Tratava-se mais do que uma resistência, era a ruptura e a ressignificação do mundo. Em que medida esta ruptura poderia efetivamente romper com os elementos essenciais da modernidade acima mencionados? O movimento representava mais do que uma infiltração nas estruturas modernas, não se tratava apenas (o que não é pouco) de pessoas e coletivos fazendo diferente no meio do sistema[8], era abertamente contrário, combatia os alicerces modernos uniformizadores e binários: não apenas negligenciava (profanava) o sistema mas o combatia frontalmente[9].

            Na luta por transformação a FHAR procurou alianças políticas. Os seus militantes atuavam em grupos de trabalhos temáticos, distribuíam folhetos e organizavam reuniões de informação. A aproximação com o Partido Socialista francês não funcionou. Bem moderado, o Partido atuava dentro do jogo político representativo moderno e entendendo ser prudente e conveniente para seus interesses, dizia que as preferências sexuais pertenciam à esfera privada (grave equivoco) e que não mereciam posições políticas. O Partido Socialista Unificado, é mais simpático às FHAR mas não compartilha das propostas revolucionária da Frente. Diante disto, os olhares se voltam à extrema esquerda. Guy Hocquenghem, comprometido com a organização maoista VLR (Vive la Revolution) sugeriu a utilização do períodico "Tout", na época dirigido por Jean Paul Sartre, que abre as portas à Frente. Alguns membros das FHAR redigem as quatro páginas centrais do periódico. Defendem, entre outras coisas, que os homossexuais saiam do gueto mercantil em que a sociedade burguesa os colocou. No dia 1 de Maio de 1971 as FHAR procuram se aproximar ainda mais do movimento operário. Alguns gays radicais desfilam ao lado dos sindicatos carregando um grande cartaz que diz: "Abaixo a ditadura dos normais". Entretanto, a aceitação do movimento revolucionário gay encontrará muitas dificuldades e será combatido à direita e à esquerda. De maneira que ilustra bem a nossa hipótese (da necessidade de compreender a modernidade para compreender o capitalismo e as possibilidades de sair deste sistema), o discurso binário de esquerda é reafirmado: a luta é entre capital e trabalho; trabalhadores versus capitalistas, e não entre normais e anormais. Este discurso ignora todos os ataques ao pensamento e a luta de esquerda que foi criminalizada e "anormalizada" no decorrer do século XIX e XX, sendo combatida com o direito penal, a medicina e a psiquiatria. Este discurso reproduz o pensamento binário subalternizado e a uniformização, essenciais à modernidade, e tarefa principal do estado e do direito modernos. A esquerda caía na armadilha moderna, se é que, efetivamente, esteve, de forma majoritária, fora dos grilhões da modernidade[10], em algum momento. A concepção de história, de esquerda, foi, e ainda é, em muitos casos, uma concepção linear moderna, encontrando, entretanto, importantes críticas em autores como Walter Benjamin. [11]

            O flerte entre o movimento revolucionário e o projeto revolucionário operário tem um triste episódio que pode ilustrar como o Partido Comunista Francês sucumbe à modernidade, e logo, compromete qualquer projeto revolucionário efetivo[12]. Em 1972, Pierre Juquin resume a posição do Partido Comunista Francês afirmando que: "La cobertura de la homossexualidad o de la droga nunca tuvo nada que ver con el movimiento obrero. Tanto una como la otra representan incluso lo contrario del movimiento obrero."[13]

            Durante um encontro do Partido, Jacques Duclos (que foi candidato à presidência da França pelo PCF), ao ser perguntado por um militante das FHAR se o Partido Comunista tinha revisto suas posições sobre supostas perversões sexuais, agride verbalmente de forma violenta todos os militantes gays com um discurso muito semelhante a um discurso religioso de direita, ao afirmar que "as mulheres francesas são sãs; o PCF é são; os homens são feitos para amar as mulheres".[14]

            O que assistimos desde então, é uma cada vez maior fragmentação das lutas por direitos, o que compromete o seu sucesso, facilita o atendimento de demandas por meio de permissões, divide os grupos oprimidos ("elxs") e inviabiliza ou dificulta extremamente qualquer projeto alternativo de construção de uma sociedade plural, não hierarquizada (entre nós versus eles) e não excludente. Um ponto para investigação e reflexão pode ser realizado a partir destas conclusões: em que medida o movimento gay, o movimento feminista, entre outros, de movimentos de resistência, de ruptura ou de negligencia (profanação) em relação à modernidade, se transformaram em movimentos reivindicatórios de permissões de "jouissance" por parte do estado. Fica, por enquanto, a provocação.

            Ao combater o capitalismo moderno, as esquerdas e vários de seus mais importantes pensadores (não generalizando, é claro), reproduzem a lógica binária; a linearidade histórica e o universalismo "europeu", estranhando e subalternizando o diferente. Mais uma vez ocorre a contaminação pela modernidade de lutas de resistência ou de lutas por rupturas. Vislumbramos lutas internas de transformação  da modernidade, mas as pretensões de rupturas revolucionárias não se mostraram tão profundas, pois, ao pretender romper com a economia capitalista moderna, estes movimentos não foram capazes de ver dispositivos modernos uniformizadores e excludentes, mantendo-os intactos. Pensando desta forma, a ruptura não era tão grande assim, e talvez este ponto tenha sido um de seus grandes problemas: a violenta ruptura revolucionária manteve funcionando os dispositivos e mecanismos modernos mencionados. A revolução deve ser para a superação da modernidade (sua essência excludente uniformizadora e binária opressora) e não apenas contra um sistema de produção essencialmente excludente pois binário opressor e uniformizador: o capitalismo. Acrescentamos neste ponto uma reflexão importante a partir de Agambem e o seu conceito de profanação: talvez a revolução não precise e não deva ser contra a modernidade, mas a revolução radical ocorrerá com a "profanação" da modernidade, com a negligência diária aos seus mecanismo excludentes e uniformizadores: a isto chamamos de infiltrações. Estas infiltrações diárias aumentam constantemente até um ponto de possível ruptura da "barragem" moderna ou sua superação por meio de transformações estruturais. Um trabalho a ser feito, pode ser o de identificar as pequenas diárias "profanações".

            Judith Butler começa a nos falar em diversidade, para além da diferença.



DIREITO À DIVERSIDADE



            Quando falamos em direito a diferença devemos perguntar: diferente de que?

            Se o direito à diferença enquanto direito individual é uma infiltração na modernidade, o direito à diferença como direito coletivo traz um potencial ainda maior de comprometimento da uniformização moderna. O estado moderno sempre reagiu com enorme violência a toda tentativa de se estabelecer um sistema alternativo de organização social que não funcionasse sobre as bases modernas uniformizadas, hierarquizadas e binárias subalternas. No Brasil, apenas no século XXI encontramos alguns processos mais efetivos de "reconhecimento" de direito dos povos quilombolas e sua forma distinta de organização de direito propriedade. Entretanto, se de um lado se ampliam os reconhecimentos e aumenta a população quilombola, de outra aumentam os ataques no sentido de descaracterizar sua cultura e forma de viver e se organizar.

            Mas, tudo isto ainda é muito moderno: ao admitirmos um direito à diferença como direito individual ou coletivo, admitimos que o estado (moderno) ainda pode e deve estabelecer padrões superiores de organização social e comportamento individual. Quanto falamos em direito à diferença devemos nos perguntar: diferente de que? Respondemos: do padrão civilizatório, do padrão do bom, do melhor, estabelecido pelo estado e seu direito: "reconheço o outro diferente, na sua diferença, mas deixo claro sua diferença enquanto algo estranho, que foge aos padrões de civilização moderna masculina, branca e europeia".

            As Constituições da Bolívia e Equador vêm construir um outro direito: o direito à diversidade enquanto direito individual e coletivo.

            Como mencionado no inicio deste texto, vários são os pontos de ruptura com a modernidade que podem ser percebidos e precisam ser discutidos. Estes pontos de ruptura podem significar uma reconstrução da Teoria da Constituição, da Teoria do Estado e mesmo da Teoria do Direito modernas. Em vários outros textos trabalhamos alguns destes aspectos, como a superação da democracia majoritária e a reconstrução da relação entre Constituição e Democracia; a superação da formula "Roma Locuta, Causa Finita" que marca o funcionamento do Judiciário moderno e da mesma democracia representativa majoritária; a superação de um sistema monojurídico com um único direito de família e de propriedade, por um sistema plurijurídico; uma nova concepção de pessoa singular plural e processual e uma nova concepção de natureza que inclui toda a vida, incluindo da pessoa.

            O núcleo destas transformações está na construção de um espaço de diversidade, na proteção constitucional ao direito à diversidade como direito individual e coletivo. O direito à diversidade não se confunde com o direito à diferença, que mencionamos anteriormente. No direito à diferença (individual ou coletivo) o estado e o sistema jurídico moderno continuam atuando no sentido de reconhecer, de incorporar aos seus padrões, ainda estabelecendo uma referência de melhor. O processo pode ser expresso na seguinte equação: o ordenamento reconhece o outro diferente (estranho, esquisito, fora dos padrões), enquadra na lei, protege sua manifestação como algo fora do padrão, e permite a existência e manifestação. Um reconhecimento de existência (como se para existir fosse preciso o olhar deste grande pai: o estado e seu direito) e uma permissão de "jouissance". As lutas de diversos grupos "minoritários" por direitos é uma luta por reconhecimento e permissão ou por conquista de direito? É uma luta pela incorporação no sistema ou pela construção de um outro sistema?

            O direito à diversidade segue outra lógica. Em primeiro lugar não há permissões nem reconhecimentos. Não há inclusão por que não pode haver exclusão. A lógica pode ser resumida na seguintes frases: "existo e me apresento na minha existência". "Não dependo do seu olhar ou de seu registro para que eu exista". Reconhecimento significa conhecer de novo, significa enquadrar no já conhecido. Trata-se de uma forma de enquadrar o novo nos padrões existentes ou de simplesmente não conhecer o novo, ou ainda não possibilitar a existência do novo, como tal, de forma autônoma. Reconhecer significa ainda manter a lógica binária incluído/excluído. Se sua existência depende do reconhecimento, ao reconhecê-lo afirmo a possibilidade, também, de não reconhecê-lo.

            Na lógica da diversidade não há mais reconhecimento pois não há mais um padrão do melhor: diferente de que? Não há mais este "que" ou "quem" que se estabelece como referência do bom. O outro não é mais o inferior, a ameaça, o medo; o outro se transforma na possibilidade do novo. O outro é aquele que tem o que eu não tenho, e eu tenho o que ele não tem. Assim os outros representam uma possibilidade imensa de crescimento e aprendizado para todos os outros e para mim.

            Portanto, um espaço de diversidade é um espaço de existência livre comum. O espaço de diversidade é o espaço de diálogo permanente em busca de consensos sempre provisórios. O espaço de diversidade requer uma postura de abertura para com o outro, os outros. Ouço o outro não para derrotar seu argumento, não para vencê-lo, o que impossibilita o diálogo, ouço o outro para aprender com ele assim como o outro me ouve para aprender comigo. A resultante do diálogo obrigatório nos espaços de diversidade não será uma fusão de argumentos, nem uma soma de argumentos, muito menos a vitória de um argumento, mas sim um novo argumento, construído pela postura de abertura, onde todos devem abrir mão de alguma coisa para que todos possam ganhar alguma coisa, e tudo pode ser permanentemente discutido e rediscutido.

            O direito à diversidade (individual e coletivo) parte do pressuposto da complementaridade. No lugar de hegemonias, linearidades históricas, superioridades culturais, missões civilizatórias ou proselitismos, a diversidade é convivência que tem por base a lógica de complementaridade: os que os outros têm eu não tenho, os que os outros não têm, eu tenho, somos assim complementares.





[1] O lugar da mulher não é o mesmo nas "outras" culturas que foram subalternizadas na modernidade, embora a subalternidade feminina possa ser encontrada em vários outros tempos históricos.

[2] GORN, Elliot J., "Motehr Jones, la madre del sindicalismo norteamericano" in BREVILLE, Benoît et VIDAL, Dominique (compiladores); Revoluciones que cambiaran la historia - sociales, políticas, nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital Intelectual, 2012, pagina 19.

[3] BUTLER, Judith. "El genero en disputa - el feminismo y la subsversion de la indentidad", Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México, 4 impression, marzo 2011.

[4] BUTLER, Judith. "El genero en disputa - el feminismo y la subsversion de la indentidad", Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México, 4 impression, marzo 2011, pag.13.

[5] "Todxs" é uma tentativa de comunicar o que os idiomas modernos e sua gramática padronizada não nos permite. Todxs significa inclui para além de homem e mulher, qualquer dos diversos gêneros socialmente construídos e existentes, assim como para além de qualquer gênero ou classificações limitadoras.

[6] BREVILLE, Benoît, "Homosexuales e subversivos" in BREVILLE, Benoît et VIDAL, Dominique (compiladores); Revoluciones que cambiaran la historia - sociales, políticas, nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital Intelectual, 2012, pagina 19.


[7] BREVILLE, Benoît, "Homosexuales e subversivos" in BREVILLE, Benoît et VIDAL, Dominique (compiladores); Revoluciones que cambiaran la historia - sociales, políticas, nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital Intelectual, 2012, pagina 19.

[8] A ideia de infiltração como contradição interna no sistema, com a presença de práticas que negam a sua essência e pode, em um momento, comprometer o funcionamento deste, pode ser complementada pela ideia de negligência, profanação do sistema, na ideia desenvolvida por Giorgio Agambém em seu livro Profanações da editora Boitempo.

[9] Não quero dizer que negligenciar não tem a força de destruir o sistema. Talvez hoje a negligência em relação ao sistema (a profanação no significado trabalhado por Giorgio Agambem) seja a maneira mais eficaz de construir um outro mundo.

[10] Para entender o texto é necessário lembrar o sentido de "modernidade" empregado no texto.

[11] BREVILLE, Benoît, "Homosexuales e subversivos" in BREVILLE, Benoît et VIDAL, Dominique (compiladores); Revoluciones que cambiaran la historia - sociales, políticas, nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital Intelectual, 2012, pagina 35.


[12] Na perspectiva de que a modernidade (representada pelo estado e o direito moderno) cria e sustenta o capitalismo e logo, qualquer tentativa de superar este sistema econômico deve implicar na compreensão para superação da modernidade nos seus elementos nucleares: uniformização e logo rejeição da diversidade; falsa universalização; justificativas de poder sustentadas sobre o pensamento binário de subalternização do outro; história linear; separação do individuo da natureza e concepção de um individuo monolítico, não processual e isolado.

[13] [13] BREVILLE, Benoît, "Homosexuales e subversivos" in BREVILLE, Benoît et VIDAL, Dominique (compiladores); Revoluciones que cambiaran la historia - sociales, políticas, nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital Intelectual, 2012, pagina 19.



[14] [14] BREVILLE, Benoît, "Homosexuales e subversivos" in BREVILLE, Benoît et VIDAL, Dominique (compiladores); Revoluciones que cambiaran la historia - sociales, políticas, nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital Intelectual, 2012, pagina 19.


1377- Ensaios José Luiz Quadros: a superação do pensamento binário



Alternativas: a superação do pensamento binário.
por José Luiz Quadros de Magalhães
           
            Não há possibilidade de consenso quando a minha satisfação depende da insatisfação de outro. Não é possível uma democracia efetiva consensual no sistema capitalista e as contradições binárias inerentes a este sistema. Consensos nestes sistemas, que envolvam questões socioeconomicas serão sempre ideológicos (falsos) e os consensos realizados em outros campos tendem a sofrer distorções ideológicas negativas.

            A lógica moderna fundada no pensamento binário sustenta a modernidade. Uma armadilha que precisa ser superada.

            O novo constitucionalismo democrático na América Latina, especialmente as Constituições da Bolívia e Equador, aparece como uma alternativa de superação das engrenagens uniformizadoras do estado moderno assim como fundamento para a construção de um outro sistema mundo superando este, construído a partir da hegemonia "ocidental" moderna. No lugar de uma democracia meramente representativa e majoritária concorrencial é construída a alternativa de uma democracia consensual fundada na busca do consenso na solução dos conflitos e na construção de políticas públicas. No lugar de um judiciário que funciona de forma imperial, dizendo o direito ao caso concreto, a busca permanente da mediação por meio da construção de consensos provisórios e sempre democráticos, que objetivem o equilíbrio, ou o restabelecimento do equilíbrio perdido com o conflito.

            Para que seja possível a construção de uma democracia consensual e de espaços "comuns", de um direito "comum" é necessário que algumas dicotomias naturalizadas sejam historicamente superadas como por exemplo: Capital versus trabalho.

            Quais são as dicotomias necessárias?

            Claro que não vamos responder esta pergunta agora. Podemos apenas provocar afirmando  que, mesmo as dicotomias que parecem naturais, como dia e noite, claro e escuro, são simplificações falsas e construções arbitrárias culturais. Não há um dia e uma noite mas um permanente processo de transformação das condições de clima e luminosidade que se rebelam ao contar matemático das horas, minutos e segundos. Não há um claro e um escuro mas um processo permanente de mudança de luminosidade. Sobre a falsidade da dicotomia ideologicamente (no sentido negativo e positivo do termo) naturalizada de homem e mulher sugiro a leitura de Judith Butler.[1] Não vamos desenvolver estas ideias agora. Isto exigiria muitas páginas e muitas palavras. Seria um livro inteiro. O que queremos sugerir como reflexão nestas palavras finais, neste texto, é que as dicotomias que são naturalizadas, não são naturais, e mais, que devemos superar este pensamento dicotômico binário para viabilizar consensos democráticos e a superação de uma sociedade e economia excludentes. A superação da exclusão não se dá pela inclusão, mas pela superação da dicotomia exclusão versus inclusão. Uma sociedade sem excluídos será uma sociedade sem incluídos. A mesma lógica pode ser aplicada em outras dicotomias: pobres e ricos; capital e trabalho; bem e mal; "nós versus eles"; civilizado e incivilizado. Estas dicotomias não são naturais, não são necessárias, e de sua extinção depende a construção de uma alternativa ao violento mundo moderno.






[1] BUTLER, Judith. El género en disputa - el feminismo y la subverión de la identidad, editora Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México; Quarta impresión, marzo 2011.