domingo, 12 de setembro de 2010

51- Matrix - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

MATRIX

JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES


Matrix (1999): o real existe.

O real existe. O mundo ocidental vem se reencontrando com o seu passado, quando oriente e ocidente, materialismo e espiritualismo não eram cuidadosamente separados. Em um destes reencontros, a idéia de autopoiesis como essencial à vida é retomada. Um destes reencontros está na obra de dois biólogos chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela, que após experiências com a visão de animais reconstroem o conceito de autopoiesis como condição de qualquer ser vivo.
Um pressuposto fático e não apenas teórico, é a condição de que, enquanto vivos, estarmos condenados a autopoiesis. Somos necessariamente, enquanto seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos, e esta condição se manifesta também nos sistemas sociais.
Dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela , trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na biologia, resgatam a idéia de auto-referência que se aplica para toda a ciência.
Estudando a aparelho ótico de seres vivos , os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua quando era lançada para pegar uma presa, ia também na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.
A partir desta simples experiência temos uma conclusão que pode ser absolutamente obvia mas que entretanto foi ignorada pelas ciências durante séculos, ciências que buscavam uma verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.
O fato é que, entre nós e o mundo, existe sempre nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem como que lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma destas lentes.
Assim, para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber cores e uma série de coisas mas que não é capaz de perceber outras, ou por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.
Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas, e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim quando estamos deprimidos percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes, ou quando tomamos drogas como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por esta condição química. A cada vez que recordamos um fato, esta condição influencia nossa lembrança. A percepção diferente do mesmo fato ocorre uma vez que cada observador é um mundo, um sistema auto-referencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim podemos dizer que uma outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo, é constituída por nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo nos revela um mundo e esconde outros. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em um determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos, que dificilmente são universalizáveis.
Somos seres autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reprodutivos) e não há como fugir deste fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nos mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Nós somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo.
A linguagem e a série de conceitos que ela traduz é nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado.
Assim não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades cientificas absolutas, pois é impossível separar o observador do observado . Este universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, as intolerâncias. A compreensão da autopoiesis significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo à tolerância, a relatividade, a compreensão e a busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia.
Importante lembrar que o reconhecimento da relatividade do conhecimento não exclui a existência do real. O real existe além da matrix. O real é relativo e histórico mas ao mesmo tempo é diferente da mentira que busca propositalmente encobrir o real, é diferente de um mundo construindo pelo outro com o propósito de encobrir algo. Neste sentido a matrix é real enquanto algo que encobre propositalmente a possibilidade de intervir na história, ou provoca intervenções que não intencionalmente levem ao caminho oposto do desejado. O que chamamos de real, neste momento, são as relações que se constroem no mundo da vida como possibilidade de dialogo e intervenção na história não manipulada pelo outro. O real não busca estrategicamente encobrir os jogos de poder, o real é a revelação dos jogos de poder. A mentira se opôs ao real ou a uma verdade históricamente construída. Se assistirmos um assassinato em uma praça podemos encontrar neste fato o real, as verdades e as mentiras, assim como o encobrimento proposital do real. Assim o real cru está no corpo inerte, na ausência de vida, na morte de uma pessoa. As verdades que se constroem nas cabeças das testemunhas não são únicas uma vez que são interpretações da morte que ocorreu e da pessoa que morreu. As mentiras intencionais distorceram propositalmente os fatos para manipulá-los segundo interesses diversos. O encobrimento do real foi feito posteriormente com a notícia não divulgada, a arma do crime adulterada, e provas forjadas. O encobrimento não é uma simples mentira que altera o fato ou exagera o fato. O encobrimento tem uma finalidade estratégica. Com este exemplo podemos dizer de um real, de um encobrimento, de verdades históricas e de mentiras históricas.
Matrix parte desta compreensão e propõe algo assustador. E se nossa auto-referência não pertencer mais a nós mesmo, mas alguém, externo construir nossos limites de compreensão, nossas verdades? A partir deste universo o filme nos incita a outra reflexão: na medida em que outro constrói propositalmente mentiras que se transformam em verdades estamos impossibilitados de perceber o real. Este manipulador externo de nosso mundo usurpa nossa liberdade.
A partir do momento em que a matrix cria um mundo artificial de mentiras, propositalmente, para que não enxerguemos o real, podemos dizer que o real existe e pode ser alcançado. A tentação relativista da compreensão da autopoiesis pode sugerir a inexistência do real. Para superar esta tentação podemos dizer que a nossa relação com o real se constitui nas relações de interpretação e de comunicação fundadas em uma base de honestidade, de compromisso de busca de uma comunicação que parta de pressupostos de honestidade. A matrix se constrói sobre a construção proposital da mentira com fins de manipulação, de dominação e de pacificação pela completa alienação das condições reais de vida, das reais relações de poder. Alguém propositalmente me faz acreditar em suas mentiras como sendo verdades. Nas relações falsamente construídas como sendo reais.
A matrix é real. A manipulação da opinião pública, a distorção proposital do real, a fabricação de noticias e de fatos que encobrem os fatos, a criação de fatos falsos está presente no nosso cotidiano.
O interessante do filme é que as agressões no mundo da matrix são reais. Talvez o único real no mundo da matrix. Uma agressão física virtual causa feridas reais. Daí que a fuga do real na matrix não garante segurança e retira liberdade.
A verdade posta no filme está na conexão do eu com o real. Este eu que interpreta o mundo. Na matrix não há verdade, pois, não há conexão entre o eu e o real. O real foi subtraído da experiência de vida. A pessoa vive uma representação criada por outro.



Jose Luiz Quadros de Magalhães

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