terça-feira, 14 de setembro de 2010

53- Teoria da Constituição 2

O CONSTITUCIONALISMO EM
BUSCA DA CONSTRUÇÃO DO ESTADO
DEMOCRÁTICO E SOCIAL DE DIREITO:
A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO RESGATE DA
DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
E DO ESTADO SOCIAL

Jose Luiz Quadros de Magalhães

1 A CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

Um dos temas mais discutidos no âmbito das ciências sociais é a democracia. Podemos, no decorrer da história, encontrar uma grande e rica viagem do seu sentido, desde sua inicial construção no pensamento e na prática da Antigüidade até as sofisticadas e variadas discussões sobre a democracia participativa, a democracia dialógica e a construção do Estado Democrático e social de Direito.
Assistimos, nestes tempos de profundas transformações, à crise da democracia liberal, da democracia social e a insuficiência da democracia representativa, além da apropriação do discurso democrático pelo poder econômico privado, concentrado nas mãos de poucos, incluindo o importante poder de controle e manipulação da mídia global.1 No mesmo momento, entretanto, percebemos claramente o surgimento e o fortalecimento de alternativas. A globalização das comunicações, a Internet, a mídia alternativa, as TVs comunitárias, os jornais locais, as rádios comunitárias, enfim, toda uma gama de informação democrática alternativa que, uma vez organizadas em rede (e obviamente não me refiro, aqui, às falsas redes meramente reprodutoras de um conteúdo produzido por uma única fonte, mas a uma rede democrática sem centro, multipa¬radigmática, uma rede de comunicações entre diversas culturas que se unem em torno de princípios – e não conceitos – comuns), o mundo pode ser transformado em direção a um processo dialógico de construção permanente de uma grande democracia global.
Partindo de um conceito de democracia participativa e dialógica, podemos perceber outros impasses contemporâneos. Um desafio muito claro está na necessidade de democratizar o que no senso comum ainda é aceito como democracia, ou seja, desenvolver mecanismos que possam fazer com que a democracia representativa, vítima do marketing, da concentração econômica e da manipulação da opinião pública, possa ser mais democrática do que já conseguiu ser no passado. Os exemplos do comprometimento e da necessidade de adaptar essa democracia representativa de forma que ela possa ser democratizada estão claros à nossa volta, pois se acentuam nos momentos de graves conflitos de interesses, como no caso da Segunda Guerra do Golfo. Várias indagações surgem a partir da constatação de fatos:

I – na Espanha, o Primeiro – Ministro Aznar decide, contra mais de 85% por cento da opinião pública espanhola, apoiar a guerra, e os espanhóis se perguntam se vivem em uma democracia;
II – nos Estados Unidos, o presidente, manipulando uma mídia concentrada e controlada pelo poder econômico privado consegue o apoio de 70% da população para uma guerra injustificada perante a opinião pública mundial. Os norte-americanos, em sua maioria, têm certeza de que vivem em uma democracia (na realidade americana percebemos como é mais importante a crença na democracia do que sua efetividade);
III – nos países islâmicos, governos alinhados aos Estados Unidos são obrigados pelas manifestações públicas a mudar seu discurso para acalmar os ânimos que podem, se mais exaltados, ameaçar o seu poder não democrático.

Diante desses três fatos da história contemporânea, podemos nos perguntar: Democracia e opinião pública são conceitos complementares? Responder sim a essa questão seria de uma insuportável simplificação, ao passo que, ao justificar o não, poderemos sempre parecer parciais.
Entretanto, há um ponto central nos três fatos acima enumerados: o atendimento da opinião pública não é sinal de democracia, não se confunde com democracia e pode ser usado contra a democracia, enquanto, de outro lado, a opinião pública pode forçar a democratização e limitar o autoritarismo. A construção de uma sociedade democrática e o funcionamento de processos democráticos dialógicos exigem uma análise extremamente mais complexa da sociedade, das instituições, da cultura, da história e do momento histórico vivido do que simplesmente a sua redução ao normal funcionamento de um parlamento, de eleições periódicas e da realização de consultas populares por meio de referendos e de plebiscitos ou de pesquisas de opinião.
Outro aspecto referente à construção do senso comum sobre democracia está no discurso econômico: a cultura jornalística ocidental e a construção teórica simplificadora de alguns manuais de Direito reproduzem, ainda hoje, o conflito do pós-segunda guerra de maneira simplificada e parcial. Desta forma é comum encontrarmos afirmativas de que países onde não há a adoção de uma economia capitalista2 não podem ser democráticos, mesmo que tenham eleições periódicas com grande participação popular.
Situações grotescas surgem a partir dessa manipulação dos meios de comunicação: os leitores devem se recordar dos discursos recorrentes dos presidentes norte-americanos no sentido de recuperar a democracia e os Direitos Humanos em Cuba. Esse discurso foi repetido pelo presidente George W. Bush em 2003, quando afirmou que o seu governo não poupará esforços para resgatar os Direitos Humanos nas ilhas cubanas. Ora se procurarmos os dados divulgados pela ONU anualmente, vamos verificar que Cuba detém os melhores índices na América Latina no que diz respeito ao oferecimento de direitos sociais como saúde e educação, com um índice de criminalidade muito baixo e uma população carcerária pequena. De forma diferente os Estados Unidos da América oferecem índices alarmantes, com uma população carcerária que ultrapassa 2 dois milhões e 700 mil detentos, população permanente entre os milhões que entram e que saem do sistema carcerário, com um número de condenações a morte só superado pela China. Segundo dados divulgados,3 em artigo do sociólogo da London School of Economics, Megan Comfort, dos 9 milhões de detentos liberados no curso do ano 2002, mais de 1 milhão e 300 mil eram portadores do vírus da hepatite C, 137 mil portadores do vírus da AIDS e 12 mil com tuberculose, o que representa respectivamente 29%, 13% a 17% e 35% do número de norte-americanos tocados por essas doenças.4
O presidente norte-americano ao se referir à situação dos Direitos Humanos em Cuba, talvez se referisse aos mais de 600 presos na base militar dos Estados Unidos em Guantanamo (território sob ocupação norte-americana na ilha principal de Cuba), sem direito a advogado, a um processo com ampla defesa e contraditório, sem sequer direito a uma acusação formal e submetidos a torturas sofisticadas diariamente, como a supressão dos cinco sentidos e a perda da referência de tempo e espaço. Muitas dessas pessoas se encontram nesta situação desde 2001, inclusive cidadãos norte-americanos.
Segundo o Patriot Act II nomeado de Domestic Security Enhancement Act, proposto pelo governo dos Estados Unidos da América em 2003, e mais duro que o USA Patriot Act, está previsto o fichamento do DNA de estrangeiros suspeitos ou de cidadãos norte-americanos suspeitos de terrorismo, prevendo ainda os pontos seguintes:

I – um cidadão norte-americano pode ser expulso dos Estados Unidos. Isso se com a intenção de se desfazer da sua nacionalidade, um cidadão norte americano se torna membro ou fornece aporte material a um grupo que os Estados Unidos tenham qualificado de organização terrorista;
II – um juiz poderá decidir se um norte-americano não merece mais ser cidadão, se sua conduta demonstrar sua intenção de não sê-lo;
III – abandono dos procedimentos judiciais que enquadram as atividades de segurança nacional permitindo detenções secretas.

Esses são alguns exemplos da nova lei proposta que, entretanto, encontra alguma resistência desde a esquerda do partido democrata à direita do partido republicano.
Um exemplo recente de como a democracia representativa se torna intolerável quando afeta os interesses da elite econômica minoritária é o caso da Venezuela,5 de Hugo Chaves, que, guardadas as diferenças históricas, nos faz lembrar o golpe de 1964 no Brasil ou o golpe de 1973 no Chile.
O atual governo da Venezuela foi eleito democraticamente com amplo apoio da população, embora tivesse contra si a grande mídia privada, o que mostra que o poder da mídia é grande, entretanto não infalível. Após o governo ser eleito (primeira votação popular) convocou um processo constituinte democrático como raros na história. Foi eleita (segunda votação popular) uma assembléia constituinte, a Constituição foi votada e aprovada, depois submetida a referendo popular (terceira votação popular). A assembléia foi dissolvida (pois trata-se de poder temporário) e foram convocadas eleições para o parlamento e novamente para presidente da República (quarta e quinta votação popular). Após esse processo o governo eleito começou a promover mudanças na economia e na sociedade que afetaram interesses de uma elite que sempre se beneficiou de privilégios deixando 80% da população na pobreza ou abaixo da linha de pobreza. Esta elite, então, em nome da democracia, patrocinou um golpe de Estado com apoio de parte das Forças Armadas, depois de campanha da mídia, de sua propriedade, desmoralizando o governo. O golpe fracassou e seguiu-se uma greve na estatal de petróleo (principal fonte de recursos da Venezuela) com a intenção de inviabilizar economicamente o governo. A greve foi superada com enormes prejuízos econômicos. Depois de tudo a oposição propôs um plebiscito para tirar o governo, que não pôde governar como devia diante de tamanha instabilidade, mas que, mesmo assim, apresenta resultados sociais e econômicos positivos: o plebiscito foi novamente vencido pelo governo Chaves. A quem pertence a palavra democracia? Quem procura deter o monopólio da construção e da divulgação do conceito de democracia? Os mesmos que quando a democracia se torna desfavorável aos seus interesses, em nome da democracia, acabam ou tentam acabar com a democracia?
A democracia não é um lugar onde se chega. Não é algo que se possa alcançar e depois se acomodar, pois é caminho e não chegada. É processo, e não resultado. Dessa forma a democracia existe em permanente tensão com forças que desejam manter interesses, os mais diversos, manter ou chegar ao poder para conquistar interesses de grupos específicos, sendo que muitas vezes essas forças se desequilibram, principalmente com a acomodação da participação popular dialógica, essência da democracia que defendemos, e o desinteresse de participação no processo da democracia representativa, pela percepção da ausência de representatividade e pelo desencanto com os resultados apresentados.
Dessa forma, os que detêm determinados poderes transformam os processos em seu favor. Já trabalhamos a transformação de mecanismos que serviram à democracia norte-americana como financiamento de campanha, colégio eleitoral, bipartidarismo, imprensa privada em mecanismos de controle e perpetuação de poder e remetemos o leitor aos nossos livros Direito Constitucional, tomos I e II, já citados. Esse desvirtuamento do processo democrático se aprofunda com a concentração econômica do final do século XX. Emanuel Todd, que combate a visão economicista do mundo, observa o fenômeno no paradoxo da democratização de Estados que viveram autoritarismos históricos enquanto antigas democracias se desvirtuam em novas oligarquias populistas e ou belicistas:

No exato momento em que começa a ser implantada na Eurásia,6 a democracia enfraquece onde ela nasceu: a sociedade norte-americana transforma-se num sistema de dominação fundamentalmente desigual, fenômeno perfeitamente conceituado por Michael Lind em The next American Nation. Encontramos em especial, neste livro, a primeira descrição sistemática da nova classe dirigente americana pós-democrática, the overclass.
Mas não há que ter inveja. A França está quase tão avançada quanto nos Estados Unidos neste caminho. Curiosa democracia, esses sistemas políticos nos quais se defrontam elitismo e populismo, nos quais subsiste o sufrágio universal, mas as elites de direita e de esquerda entendem-se para impedir qualquer reorientação da política econômica que levasse a uma redução das desigualdades. Universo cada vez mais absurdo no qual o jogo eleitoral deve conduzir, ao cabo de um titânico confronto nos meios de comunicação de massa, ao status quo.7

Todd se refere, na França atual, a um mecanismo sociológico e político de bloqueio no qual no qual as aspirações dos 20% de baixo são bloqueadas pelos 20% de cima que controlam ideologicamente os 60% do meio. O resultado é que o processo eleitoral não tem qualquer importância prática, sendo que o índice de abstenção avança de maneira sensível.



1 FIGUEIREDO, Rubens. Marketing político e persuasão eleitoral. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000; KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.
2 Remeto o leitor à leitura do capítulo 2 do meu livro Direito constitucional, t. I, e dos capítulos 1, 2 e 9 do Direito constitucional, t. II, citados
3 COMFORT, Megan. Manière voir. Lê Monde Diplomatique, n. 71, p. 66, oct./nov. 2003.
4 NATIONAL COMISSION ON CORRECTIONAL HEALTH CARE. The health status of soon-to-be-released imates. Chicago, 2002.
5 HARNECKER, Marta. Um homem, um povo. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
6 Podemos mencionar também da democratização dos Estados nacionais da América Latina e diversas novas democracias africanas
7 TODD, Emanuel. Depois do Império, p. 28.

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