1 AS FUNÇÕES DO ESTADO CONTEMPORÂNEO
Jose Luiz Quadros de Magalhães
Superando a clássica divisão de poderes (funções) do Estado, entre Legislativo, Judiciário e Executivo, podemos dizer que o Estado, hoje, necessita de um sistema mais sofisticado de exercício de funções que permita a garantia dos processos democráticos. A Constituição brasileira de 1988 reconheceu a necessidade de nova função de fiscalização, e embora o constituinte não tenha tido a iniciativa de mencionar um quarto poder, efetivamente, criou essa quarta função autônoma essencial para a democracia e a garantia da lei e da Constituição, que é a função de fiscalização. O Ministério Público, encarregado dessa função, para exercê-la de maneira adequada, necessita de efetiva autonomia em relação às outras funções (poderes), não pertencendo nem ao Executivo, nem ao Legislativo, tampouco ao Judiciário. O mesmo ocorre com os Tribunais de Contas que, embora necessitem nova forma de escolha de seus membros para que assumam esse novo status, não podem pertencer a nenhum dos poderes tradicionais para exercer com eficiência sua função fiscalizadora.
Como já foi dito, podemos dizer que hoje é necessário separar as seguintes funções autônomas do Estado democrático: a função legislativa ordinária (de elaborar as leis infraconstitucionais); a função legislativa constitucional (de emendar e revisar a Constituição); a função jurisdicional; a função de governo; a função administrativa; a função de fiscalização (acima mencionada); e uma função simbólica (típica do chefe de Estado, função que, pelo seu simbolismo, não deve se confundir com a função de governo, esta de poder político).
Trabalhamos em outros momentos a acumulação de funções, fato típico do presidencialismo, em que o presidente acumula a função simbólica (chefe de Estado) de representação dos valores nacionais; a função de governo (de decisão política, definição de políticas publicas); e a função de chefe da administração pública civil e militar (função técnico-política). O acúmulo dessas funções na figura de uma única pessoa é responsável por grandes distorções do sistema político representativo, fazendo que o jogo político se torne equivocadamente personalista.
Para o adequado funcionamento da administração pública, as funções de governo (poder político) e as funções administrativas (de natureza técnico política) devem ser separadas. Percebemos um movimento em diversas democracias contemporâneas no sentido de separar funções de governo de funções administrativas, decorrente da necessidade de eliminar os males de um sistema administrativo baseado em cargos de confiança, em que, para se conseguir apoios em votações no parlamento, o governo distribui cargos de chefia na administração pública, comprometendo a eficiência da administração e distorcendo o jogo político, que deveria ser em torno de projetos, idéias, programas, e não fundado em vaidades e interesses pessoais por cargos, privatizando o público e destruindo o Estado.
A questão que passamos a analisar, portanto, é como separar a função de governo da função administrativa e quais critérios podemos adotar para efetivar essa divisão que coloque o governo democraticamente eleito na sua função constitucional, que não é a de distribuir cargos em troca de apoios provisórios e inspirados em interesses personalistas, mas, sim, de fazer com que a administração pública funcione de forma eficiente, apta a cumprir as determinações do governo e do parlamento de acordo com os princípios de eficiência, legalidade (leia-se constitucionalidade), impessoalidade, moralidade e publicidade.
2 GOVERNO X ADMINISTRAÇÃO, DEMOCRACIA, POLÍTICA
E EFICIÊNCIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO E SOCIAL DE DIREITO
O excesso de cargos de confiança e o uso inadequado aos interesses públicos da possibilidade de escolha das chefias da administração pelos governantes, comprometendo uma eficiente gestão dos entes da administração, levaram à busca de alternativas que resguardassem a eficiência administrativa, oferecendo uma administração que deve servir as determinações políticas com competência técnica.
Essa discussão ocorre sob outra perspectiva contemporânea não menos importante: a busca da descentralização e fragmentação coordenada de poder, permitindo maior celeridade nas decisões, responsabilidade do administrador, uma vez que quem decide está próximo do administrado e, em decorrência de proximidade entre administrado e administrador, a possibilidade concreta de controle social.
Isso posto, perguntamos: O chefe de governo deve escolher os reitores das universidades, diretores de escolas, diretores de hospitais e de órgãos de pesquisa, dentre outros. A resposta óbvia diante do que já foi discutido anteriormente é não. O governo deve estabelecer as grandes políticas de investimento nos mais diversos setores de interesse público, como investimentos em saúde, educação, meio ambiente, definição de políticas econômicas, incentivo à produção, escolha de grandes diretrizes técnicas, dentre outras questões, mas não há motivo para que esse mesmo governo encarregado de definições políticas e de modelos técnicos e científicos que se adaptem às suas políticas (e nunca o contrário), escolha o profissional que vai gerir o dia-a-dia de uma escola de primeiro e de segundo grau, ou o gestor de um hospital, ou de uma universidade, ou de um instituto de pesquisa, etc. Temos, então, um indicativo para estabelecer a diferença entre uma função administrativa e uma função de governo. Entretanto, a questão não é tão simples. Se gerir uma escola é preponderantemente uma função técnica, não é exclusivamente técnica. Ao mesmo tempo, se a definição de grandes linhas de políticas públicas é uma função preponderantemente política, não pode ser exclusivamente política, pois necessita de suportes técnico-científicos que, entretanto, devem se subordinar sempre à decisão política.
Por esse motivo, embora seja necessária a divisão em função administrava distinta da função de governo, a função administrativa não deve ser, em geral (sempre há exceções), uma função exclusivamente técnica, acrescendo, sempre que possível, aspectos democráticos que incentivem o controle social na escolha dos cargos de chefia. Daí falarmos em eleição de reitores de universidades, diretores de escolas, diretores de hospitais, desde que cumpridos critérios técnicos.
Assim, podemos dizer que a gestão de serviços públicos deve ser deixada para entes administrativos autônomos (criados por lei com competências próprias em que o poder central não possa intervir e, sempre que possível, com a participação do administrado na escolha do gestor), enquanto as escolhas políticas e a construção de políticas públicas de investimentos, políticas econômicas, de saúde e educação, dentre outras, devem ser do governo. Não deve o governo escolher o diretor de uma escola e de um hospital, assim como não pode um ente administrativo autônomo, sob o pretexto de escolhas técnicas, assumir escolhas políticas encobertas pelo discurso pseudoneutro da técnica. De acordo com esse raciocínio, o Banco Central do Brasil não pode nunca ter autonomia para escolher políticas monetárias, por ser essa autonomia inconstitucional ao retirar do espaço político-democrático do governo democraticamente eleito a possibilidade de escolhas das várias opções técnicas econômicas relativas às políticas econômicas para o setor.
3 A QUESTÃO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
As agências reguladoras, mecanismo copiado de uma tradição administrativa norte-americana que nada tem em comum com nossa história administrativa, se inserem no raciocínio realizado no parágrafo anterior, daí sua inconstitucionalidade, além de sua absoluta inadequação à nossa cultura.
Sérios problemas para um governo democraticamente eleito surgem com a adoção desse sistema, que se insere em uma lógica administrativa adequada ao modelo neoconservador (chamado neoliberal), que privatizou serviços públicos de telefonia, transporte, água, energia elétrica, encarecendo o sistema que, obviamente, expandiu-se procurando mais lucros. Hoje muito mais pessoas têm acesso a uma linha de telefone, por exemplo, que, por serem muito mais caros, não tem possibilidade de pagá-los2 . Mas a questão não é essa, pois poderíamos citar muitos outros exemplos como o desastre no setor de geração e distribuição de energia após a privatização. A questão que nos interessa é que, para regular esses serviços públicos privatizados e, portanto, sujeitos aos interesses privados que se impõem na prática aos interesses do público, criaram-se agências reguladoras, que passaram a assumir competências de escolhas e definições de políticas públicas desses setores, claramente usurpando funções de governo e, portanto, funções democráticas, o que não tem amparo constitucional.
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