segunda-feira, 28 de junho de 2010

9- Comentário do filme "A Vila" - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

A Vila – A segurança não está nos muros
Não é possível fugir de nós mesmos
JOSE LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES

The Village – 2004 - Shiamalan)

Segurança e liberdade não são inconciliáveis. São, em certa medida, complementares. Em tempos de criminalidade crescente, terrorismo, desemprego e insatisfação o recurso ao discurso da segurança como perda de liberdade e aumento de controle encontra respaldo em uma sociedade assombrada, amedrontada pela mídia e pelos governos.
A busca da segurança com a criação de mecanismos de controle, de isolamento, pode manter distante o perigo que vem do outro externo a uma comunidade, mas não tem como nos afastar de nós mesmos, não nos isola da condição humana. Se há a crença falsa de que alguns entre nós já nascem criminosos (o que é uma bobagem) o isolamento entre muros não nos afasta desta possibilidade que estaria na nossa natureza. Se a violência é inerente à condição humana e diante de determinadas circunstâncias todos nós podemos praticar atos violentos, de nada adianta, também, vivermos entre muros, pois o que deve ser evitado é que a paixão, a história, os encontros e desencontros não sigam determinados caminhos. Logo assim será necessário controlar a história de cada pessoa, casal, família, comunidade e sociedade. Como controlar as ações das pessoas? Como controlar as ações e desejos de agir que não podem ser percebidos pelas câmeras de controle? Colocando um mecanismo de controle dentro de cada pessoa, o medo, o sentimento permanente de medo.
O filme “A vila” cuida do controle; do isolamento; da busca de uma sociedade ideal, isolada, controlada e limitada por muros externos e pelo medo interno. Pessoas cansadas e amedrontadas querem controlar o tempo; o espaço e os valores de uma sociedade criada para não viver a violência. Mas a qual violência nos referimos? A violência do medo; do não poder; do não desejar; a violência de não sair dos muros seguros e de esconder sua própria condição de sujeito.
Do controle exercido sobre as crianças, o mais cômodo e eficaz parece ser o medo. A geração artificial do medo. Não o temor sobre o real, mas um temor que ultrapassa o real. O perigo pode estar em cada esquina, em cada pessoa, em cada ação. O desconhecido é, por essência, perigoso mesmo que seja desconhecido. O medo paralisa e quanto maiores os temores do que não existe menos nos expomos ao que existe. A segurança nestes termos não passa pelo conhecimento dos limites, mas pela limitação da ação, do desejo, trancafiando qualquer transgressão nos limites culpados de um sonho que se esconde de si mesmo.
Portanto, a segurança está em gerar um medo além dos limites do real. A partir daí tudo passa a ser idealizado e distanciado do real: os muros; o controle; as câmeras de controle policial; o efetivo policial; a armas que protegem; os presídios de segurança máxima; etc.
O medo torna as pessoas dóceis. Facilita a negociação com os direitos. As pessoas estão dispostas a abrir mão de qualquer coisa até o limite do medo que estas sentem. Quanto maior o medo mais fácil se torna a negociação.
O filme trata de uma comunidade de se afasta do real e projeta uma nova realidade controlada, idealizada e controlada pelo medo. O medo infantil do lobo na floresta, de animais desconhecidos e perigosos, o medo do escuro, o medo de sons na noite. A descoberta da violência dentro dos membros da comunidade apresenta um problema sem solução: como nos proteger de nós mesmos.
O filme foi realizado em uma realidade histórica específica: o mundo pós 2001. Os atentados terroristas e o fortalecimento dos mecanismos de controle com a concordância da população amedrontada. Quanto maior o medo do outro gerado pelo poder mais fácil se torna abrir mão de qualquer coisa. O outro é desconhecido; diferente de nós; meio humano meio selvagem. Os valores do outro não são os nossos valores e esta condição meio humana facilita a compreensão da necessidade de eliminação deste outro.
Este outro estranho aos valores “humanos”, esta invenção deste outro não humano, que não merece direitos humanos por não ser humano é necessária para não enxergamos este outro em nós. A compreensão de nossa condição se torna logo uma ameaça à segurança. Não podemos nos enxergar no outro. Este “outro” estranho passa a ser a razão de toda nossa insegurança e a sua eliminação (impossível) se torna o meio de garantir a nossa segurança.
No século XXI este outro é para alguns o terrorista; para outros o ocidental; para alguns o “monstro assassino”; para outros a polícia. Lembrando de um trecho da letra da musica “Les uns et les autres” do filme “Retratos da Vida” de Claude Lelouch: “Se cada um é outro para um, raramente ele é um para o outro, apesar de todos os discursos e os pedidos de socorro, dos outros.”
Para refletirmos este século XXI na sua busca impossível por segurança e liberdade; realização de desejos nas demandas criadas pelo mercado e a castração do sonho, vamos buscar algumas reflexões a partir da história do século XIX.
O século XIX (e não só ele) foi o século do encarceramento, o afastamento físico dos não adaptados em estabelecimentos de internação coletiva como os presídios e os manicômios. Um exemplo típico de encobrimento do real.
O liberalismo econômico não saiu como esperado (por muitos). Da promessa de uma sociedade com oportunidade para todos, liberdade e igualdade, livre mercado e economia democratizada, o liberalismo se mostrou na prática o que a teoria não escondia mas o discurso disfarçava: radicalmente excludente. Se o direito liberal era para homens brancos e a democracia para homens brancos e ricos a economia não poderia oferecer oportunidades para todos. Nem igualdade perante a lei, nem oportunidade, nem tampouco liberdade foi o resultado do liberalismo no século XX, e as conquistas do voto igualitário e do voto feminino veio da ação dos partidos e sindicatos socialistas.
Desigualdade, exclusão e miséria, se não são os únicos fatores para a criminalidade são os fatores preponderantes no século XIX assim como nas sociedades e economias neoliberais contemporâneas. Não seriam necessários os muros se não houvesse tanta desigualdade que gera as novas cidades burguesas, os bairros ricos, os condomínios fechados com segurança privada, fundados na desigualdade e em valores tão individualistas. Uma sociedade fundada no individualismo, na competição e no egoísmo parece não ter muito futuro.
A equação que se formou no século XIX tem características interessantes que mostram a necessidade de encobrimento do real para aqueles que se encontram no poder. Vigia a época o voto censitário previsto na ordem constitucional liberal de boa parte dos paises ocidentais. Por este mecanismo só votava quem tivesse propriedade e renda anual superior a um determinado patamar e só poderia ser votado quem tivesse renda ainda maior. Ora, a equação é fácil. A economia denominada liberal com total ausência de intervenção estatal permitiu que poucos dominassem os mercados. Estes poucos votavam e podiam ser votados e logo estavam no poder do estado. Para eles, o sistema econômico que excluía a maioria e gerava exclusão trazendo criminalidade, exclusão, desigualdade, não era um problema mas a solução. Logo como fazer com a criminalidade: para reduzir substancialmente o problema era necessário mudar o sistema econômico o que lhes traria um enorme problema uma vez que comprometeria sua crescente riqueza. Mas no poder do Estado estes conservadores-liberais, mesmo para manter seu poder deveriam controlar a criminalidade. Logo para resolver o problema sem criar problemas para o sistema que lhes beneficiava nada melhor que desconectar os dois: separar criminalidade do sistema econômico-social. Mesmo que não se pudesse negar no mundo real uma relação entre os dois, agora no discurso os dois estão separados. A criminalidade passa ser responsabilidade exclusiva dos criminosos: que conclusão obvia diriam alguns! Mas resta uma pergunta: porque os criminosos cometem crimes? Respondem os conservadores e liberais: ora, porque nascem doentes ou maus ou adoecem ou escolhem o caminho do mal. Afinal vivemos numa sociedade livre diriam os liberais e os conservadores. Logo para resolver o problema construíram presídios e manicômios, aumentaram as penas e os crimes, radicalizaram o tratamento e expandiram as patologias. Então gradualmente todos passam acreditar que solucionariam o problema da insegurança e criminalidade com presídios, muros, códigos, penas, manicômios, drogas legais, médicos e choques elétricos. Um problema semântico é ignorado: o controle passa a ser sinônimo de solução. Mas como solucionar um problema com controle? O controle controla, logo se ele controla ele não soluciona mas simplesmente mantém a situação como está.
Este resumo de extrema simplicidade que acabo de fazer como um filme mudo em preto e branco se repete em pleno século XXI remasterizado, colorido artificialmente e com falsos diálogos científicos introduzidos com requintes de avanços biotecnológicos, pesquisas genéticas e outros espetáculos pirotécnicos que novamente buscam encobrir o real de uma parcela expressiva da classe média. A classe média existe ou é uma invenção terminológica para se referir aos trabalhadores que se sentem capitalistas, pessoas que dependem de seu trabalho para viver mas que acreditam firmemente pertencer a uma outra categoria social que não se enquadre no termo “trabalhador”. Será que alguns sujeitos de classe média se escondem de si mesmos diante do espelho? Ou, referindo-se a classe média como uma entidade, será que a “classe media” se esconde de si mesma diante do espelho? Antes de prosseguir... uma outra frase: para ser de classe média é necessário acreditar ser de classe média antes de qualquer outra coisa. Classe média é um estado mental. Classe média é uma crença.
O que eu quis demonstrar é como a ideologia pode nos desviar a atenção. Desviar nosso olhar. Enquanto a bola esta na área adversária o goleiro de nosso time pode fazer qualquer coisa pois ninguém olha para ele. Logo ele nunca faz nada pois ninguém viu. Isto me faz lembrar o filme “O medo do goleiro diante do pênalti –Die angst des tormanns beim elfmeter”, do cineasta alemão Wim Wenders de 1972.

José Luiz Quadros de Magalhães

Nenhum comentário:

Postar um comentário