domingo, 27 de junho de 2010

3- Crise - Coluna do professor José Luiz Quadros de Magalhães

Crise

José Luiz Quadros de Magalhães


            Consultando dicionários encontramos a palavra crise ligada a significados de mudança brusca, conflito anormal e grave. A ideia de anormalidade leva a ideia de transitoriedade. Em outras palavras não se pode viver em crise uma vez que o caráter de anormalidade intrínseco a ideia de crise desapareceria. No dicionário encontramos a significado de crise vinculado a súbita alteração no curso de uma doença: assim, a crise, se não controlada, pode levar a morte e com a morte a crise desaparece, pois não há mais sistema para estar em crise.
            Podemos nos perguntar quanto tempo a crise precisa permanecer para deixar de ser crise e virar padrão de normalidade. Uma ou duas gerações vivendo em situação de guerra; insegurança; medo; bastaria para afirmarmos que a crise do oriente médio não é crise, mas sistema construído com base nos problemas que o sustentam? Em outras palavras, não há crise do sistema político, social e internacional uma vez que os sintomas que demonstram a crise não são excepcionais, não representam uma mudança de curso abrupta, não levarão ao fim do sistema pois são a essência do sistema. O sistema se alimenta do que se chamou de crise, o que nada mais é do que a normalidade do sistema.
            Se os sintomas que representam a crise no campo do semblante, da representação, desaparecerem, o sistema perece: a solução da crise não resolve o problema do sistema e sim desintegra o próprio sistema.
            Se, desaparecido os sintomas, que na representação do sistema são identificados como crise, desaparece o sistema, não estamos diante de uma crise e sim de um sistema onde a normalidade é o sintoma chamado de crise para encobrir a essência do sistema. Em outras palavras, chamando a normalidade do sistema de crise, ao se resolver à crise desaparece o sistema. Logo não há crise e sim condição de existência do sistema. Este talvez possa ser um critério para identificar a crise. A crise não pode ser essência do próprio sistema que ela ameaça. Não teríamos assim um critério temporal para a duração da crise e sim um critério estrutural.
            No direito, a crise é combatida com mecanismos constitucionais que chamamos de estado de sitio, estado de emergência, estado de defesa ou estado de exceção. A ideia de exceção confere a crise o caráter de provisoriedade, algo que tem de ser eliminado pois ao contrário o sistema perece. Diante do recrudescimento do capitalismo e com ele o egoísmo; o individualismo e o materialismo consumista percebemos o aumento da exclusão e da intolerância com a perda dos referenciais de comunidade. As conseqüências são o aumento da exclusão, da desigualdade, nos níveis nacional e internacional, e logo o que é considerado crime no espaço local e terrorismo no plano internacional. Criminalidade e terrorismo são sinais de crise ou recrudescimento do sistema? A resposta pode ser encontrada quando nos perguntamos se estamos em um estado de exceção permanente.
            Se estamos mergulhando em um estado de exceção permanente, com mais polícia, mais controle social, mais câmeras, presídios e penas, podemos suspeitar que não há crise mas sim que estamos diante da face do sistema. Ele exclui, é inseguro, depende do medo, da opressão, do desemprego, da desigualdade.
            Um exemplo da confusão de crise com a essência do sistema pode ser dado na cidade industrial capitalista. Nela as situações de desordem e ilegalidade superam em média a situação de ordem e legalidade. A cidade ilegal supera a cidade legal. No Brasil a cidade ilegal chega a 60% dos espaços urbanos. A cidade está em crise ou a cidade capitalista construída em nosso sistema periférico é essencialmente o espaço de incluídos e excluídos?. O máximo da ordem da cidade capitalista é conseguida quando são separados claramente espaços distantes para excluídos e incluídos: Paris de Haussman e Napoleão III (a reforma urbana de Paris no século XIX) ou Brasília (a cidade do futuro).
            Estudando especificamente o quadro urbano brasileiro o sistema não está em crise: a essência das nossas metrópoles industriais capitalistas é a geração de ilegalidade e desordem. Quanto mais o sistema evolui mais exclusão e desordem e mais presídios e direito penal fingindo solucionar o que não tem solução no sistema. A solução é o fim do sistema. Este sistema estará em crise quando os valores comunitários conseguirem se destacar aos valores individualistas. O sistema estará em crise quando as pessoas em comunidade rejeitarem a ordem e construírem alternativas. Esta pode ser a crise do sistema. A crise radical do sistema é a solução. A solução está na crise radical do sistema.
            Aí aparece uma grande confusão: explicando o jogo de palavras nas quais confundem representação e realidade, jogos simbólicos onde o semblante confunde e encobre o real, esfumaça a visão e distorce a compreensão, a crise do sistema econômico, urbano e legal não é crise, não é temporária, ela é o próprio sistema e logo se pretende permanente. O agravamento da crise não é ameaça ao fim do sistema mas sim sua radicalização. Desta forma a crise não é crise se não ameaça, se não é temporária. A verdadeira crise do sistema é a negação da ordem da desordem, a negação da exclusão, é a negação dos seus valores intrínsecos, ou seja, a negação do individualismo, do egoísmo, do consumismo, da exclusão e do materialismo. O sistema verdadeiramente estará em crise quando um sistema plural, diverso e democrático desafiar a ordem da desordem. A forma de colocar o sistema em crise é gerar mais solidariedade, e acabar com a lógica inclusão versus exclusão, ou seja, criar um espaço onde haja lugar para todos e cada um, um espaço de diversidade individual e coletiva. A maneira de colocar o sistema em crise é negar os seus valores essenciais. Negar o consumo, negar a exclusão, negar a prisão em nome da liberdade e opor a liberdade ao direito penal e o estado penitenciário. A crise do sistema é a negação do pensamento binário que subalterniza e exclui. Não há mais anormais pois não há mais padrão de normalidade. A ruptura com o sistema que se chama crise não ocorre com a normalização de algo considerado anormal ou a legalização de algo considerado ilegal assim como a transformação em ilegal de algo legal e normal de algo anormal. Isto seria manter o dispositivo nós versus eles. Isto significa manter a lógica hegemônica binária de subalternização do outro. Quem diz o que é normal? Quem diz o que é legal? Quem tem força para dizê-lo.
            Poderia dizer que a crise radical do sistema é o que mais desejo, pois pode ser a possibilidade de construir algo diferente: melhor do que construir um lugar diferente é a possibilidade de construir um caminho diferente. No lugar de caminharmos em círculos buscando solução onde só há reforço do sistema que se chama crise (mas que não é crise) podemos buscar outros caminhos em varias outras direções. Está será a crise do sistema: quando pararmos de andar em círculos; pararmos de praticar atos que só reforçam o sistema e tivermos a coragem de fazer diferente. Nossa possibilidade de liberdade está na crise, na crise radical, na crise sem volta, na crise que destrua definitivamente o sistema. Iremos construir outra coisa, pode ser até uma rosa com um outro nome; corremos riscos, a opressão sempre ronda disfarçada, mas quem sabe construímos coletivamente outro significado para a liberdade: um significado livre pois construído democraticamente por meio de processos dialógicos não hegemônicos. O mais importante, entretanto, é que estaremos caminhando, estaremos tentando, e ser for necessário, e será, teremos outra crise radical como esperança de liberdade e justiça.

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