Crise
José Luiz Quadros de Magalhães
José Luiz Quadros de Magalhães
Consultando dicionários encontramos a palavra crise ligada a significados de mudança brusca, conflito anormal e grave. A ideia de anormalidade leva a ideia de transitoriedade. Em outras palavras não se pode viver em crise uma vez que o caráter de anormalidade intrínseco a ideia de crise desapareceria. No dicionário encontramos a significado de crise vinculado a súbita alteração no curso de uma doença: assim, a crise, se não controlada, pode levar a morte e com a morte a crise desaparece, pois não há mais sistema para estar em crise.
Podemos nos perguntar quanto tempo a
crise precisa permanecer para deixar de ser crise e virar padrão de
normalidade. Uma ou duas gerações vivendo em situação de guerra; insegurança;
medo; bastaria para afirmarmos que a crise do oriente médio não é crise, mas
sistema construído com base nos problemas que o sustentam? Em outras palavras,
não há crise do sistema político, social e internacional uma vez que os
sintomas que demonstram a crise não são excepcionais, não representam uma
mudança de curso abrupta, não levarão ao fim do sistema pois são a essência do
sistema. O sistema se alimenta do que se chamou de crise, o que nada mais é do
que a normalidade do sistema.
Se os sintomas que representam a
crise no campo do semblante, da representação, desaparecerem, o sistema perece:
a solução da crise não resolve o problema do sistema e sim desintegra o próprio
sistema.
Se, desaparecido os sintomas, que na
representação do sistema são identificados como crise, desaparece o sistema,
não estamos diante de uma crise e sim de um sistema onde a normalidade é o
sintoma chamado de crise para encobrir a essência do sistema. Em outras
palavras, chamando a normalidade do sistema de crise, ao se resolver à crise
desaparece o sistema. Logo não há crise e sim condição de existência do
sistema. Este talvez possa ser um critério para identificar a crise. A crise
não pode ser essência do próprio sistema que ela ameaça. Não teríamos assim um
critério temporal para a duração da crise e sim um critério estrutural.
No direito, a crise é combatida com
mecanismos constitucionais que chamamos de estado de sitio, estado de
emergência, estado de defesa ou estado de exceção. A ideia de exceção confere a
crise o caráter de provisoriedade, algo que tem de ser eliminado pois ao contrário
o sistema perece. Diante do recrudescimento do capitalismo e com ele o egoísmo;
o individualismo e o materialismo consumista percebemos o aumento da exclusão e
da intolerância com a perda dos referenciais de comunidade. As conseqüências
são o aumento da exclusão, da desigualdade, nos níveis nacional e
internacional, e logo o que é considerado crime no espaço local e terrorismo no
plano internacional. Criminalidade e terrorismo são sinais de crise ou
recrudescimento do sistema? A resposta pode ser encontrada quando nos
perguntamos se estamos em um estado de exceção permanente.
Se estamos mergulhando em um estado
de exceção permanente, com mais polícia, mais controle social, mais câmeras,
presídios e penas, podemos suspeitar que não há crise mas sim que estamos
diante da face do sistema. Ele exclui, é inseguro, depende do medo, da
opressão, do desemprego, da desigualdade.
Um exemplo da confusão de crise com
a essência do sistema pode ser dado na cidade industrial capitalista. Nela as
situações de desordem e ilegalidade superam em média a situação de ordem e
legalidade. A cidade ilegal supera a cidade legal. No Brasil a cidade ilegal
chega a 60% dos espaços urbanos. A cidade está em crise ou a cidade capitalista
construída em nosso sistema periférico é essencialmente o espaço de incluídos e
excluídos?. O máximo da ordem da cidade capitalista é conseguida quando são
separados claramente espaços distantes para excluídos e incluídos: Paris de
Haussman e Napoleão III (a reforma urbana de Paris no século XIX) ou Brasília
(a cidade do futuro).
Estudando especificamente o quadro
urbano brasileiro o sistema não está em crise: a essência das nossas metrópoles
industriais capitalistas é a geração de ilegalidade e desordem. Quanto mais o
sistema evolui mais exclusão e desordem e mais presídios e direito penal
fingindo solucionar o que não tem solução no sistema. A solução é o fim do
sistema. Este sistema estará em crise quando os valores comunitários
conseguirem se destacar aos valores individualistas. O sistema estará em crise
quando as pessoas em comunidade rejeitarem a ordem e construírem alternativas.
Esta pode ser a crise do sistema. A crise radical do sistema é a solução. A
solução está na crise radical do sistema.
Aí aparece uma grande confusão:
explicando o jogo de palavras nas quais confundem representação e realidade,
jogos simbólicos onde o semblante confunde e encobre o real, esfumaça a visão e
distorce a compreensão, a crise do sistema econômico, urbano e legal não é
crise, não é temporária, ela é o próprio sistema e logo se pretende permanente.
O agravamento da crise não é ameaça ao fim do sistema mas sim sua
radicalização. Desta forma a crise não é crise se não ameaça, se não é
temporária. A verdadeira crise do sistema é a negação da ordem da desordem, a
negação da exclusão, é a negação dos seus valores intrínsecos, ou seja, a
negação do individualismo, do egoísmo, do consumismo, da exclusão e do materialismo.
O sistema verdadeiramente estará em crise quando um sistema plural, diverso e
democrático desafiar a ordem da desordem. A forma de colocar o sistema em crise
é gerar mais solidariedade, e acabar com a lógica inclusão versus exclusão, ou
seja, criar um espaço onde haja lugar para todos e cada um, um espaço de
diversidade individual e coletiva. A maneira de colocar o sistema em crise é
negar os seus valores essenciais. Negar o consumo, negar a exclusão, negar a
prisão em nome da liberdade e opor a liberdade ao direito penal e o estado
penitenciário. A crise do sistema é a negação do pensamento binário que
subalterniza e exclui. Não há mais anormais pois não há mais padrão de
normalidade. A ruptura com o sistema que se chama crise não ocorre com a
normalização de algo considerado anormal ou a legalização de algo considerado
ilegal assim como a transformação em ilegal de algo legal e normal de algo
anormal. Isto seria manter o dispositivo nós versus eles. Isto significa manter
a lógica hegemônica binária de subalternização do outro. Quem diz o que é
normal? Quem diz o que é legal? Quem tem força para dizê-lo.
Poderia dizer que a crise radical do
sistema é o que mais desejo, pois pode ser a possibilidade de construir algo
diferente: melhor do que construir um lugar diferente é a possibilidade de
construir um caminho diferente. No lugar de caminharmos em círculos buscando
solução onde só há reforço do sistema que se chama crise (mas que não é crise)
podemos buscar outros caminhos em varias outras direções. Está será a crise do
sistema: quando pararmos de andar em círculos; pararmos de praticar atos que só
reforçam o sistema e tivermos a coragem de fazer diferente. Nossa possibilidade
de liberdade está na crise, na crise radical, na crise sem volta, na crise que
destrua definitivamente o sistema. Iremos construir outra coisa, pode ser até
uma rosa com um outro nome; corremos riscos, a opressão sempre ronda disfarçada,
mas quem sabe construímos coletivamente outro significado para a liberdade: um
significado livre pois construído democraticamente por meio de processos
dialógicos não hegemônicos. O mais importante, entretanto, é que estaremos
caminhando, estaremos tentando, e ser for necessário, e será, teremos outra
crise radical como esperança de liberdade e justiça.
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