PARECER 2
Interessados: moradores da Rua Desengano, Vila Acaba Mundo, Belo Horizonte.
Processo: Ação Rescisória em curso no Tribunal de Alçada de Minas Gerais, da sentença transitada em julgado na Ação Reivindicatória, Processo n. 0024.02.820.603-5, 20ª Vara cível da comarca de Belo Horizonte.
Assunto: Interpretação conforme a Constituição Federal do art. 82 do CPC.
Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães
DOS FATOS
Em 27 de setembro de 2004, diversos moradores da Rua Desengano, Vila Acaba Mundo, em Belo Horizonte, ingressaram com uma Ação Rescisória no Tribunal de Alçada de Minas Gerais, visando rescindir a sentença transitada em julgado na Ação Reivindicatória, processo n. 0024.02.820.603-5, da 20ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte.
Os principais argumentos dos autores da Ação Rescisória, que ingressaram em juízo como terceiros prejudicados, conforme previsto no art. 485 do CPC, foram:
a) ausência de citação do Ministério Público;
b) inexistência de pedido certo ou determinado;
c) falta de citação dos cônjuges dos réus na sentença rescindenda.
Na verdade, a área, objeto do litígio é um espaço urbano que se tornou extremamente valorizado dada a proximidade da Praça JK, entre os bairros Mangabeiras e Belvedere, em Belo Horizonte. As famílias de baixa renda moram em barracos precariamente construídos e não têm abastecimento de água tratada, energia elétrica, nem mesmo logradouro de acesso que lhes permita possuir um endereço reconhecido. A parte mais antiga da Vila Acaba Mundo já foi urbanizada pela Prefeitura de BH em parceria com as mineradoras que atuam na área - Magnesita e Lagoa Seca -, apesar de não ter havido a regularização fundiária. A Urbel tem feito reuniões com a população local com esse objetivo.
É importante ressaltar que a área, hoje ocupada pelas famílias da Rua Desengano, não estava cercada, conforme determina o Código de Postura municipal. Assim, mesmo tendo algumas faixas de risco, foi sendo ocupada pelos “Sem Teto” sem que os “ditos proprietários” ou o Poder Público tomassem qualquer medida para evitar a ocupação irregular.
O juiz relator concedeu medida liminar suspendendo a execução da sentença que mandava desocupar os barracos de uns poucos moradores, aqueles contra os quais transitou a sentença em 1ª instância. Um fato relevante é que esses moradores contra os quais foi julgada procedente a ação reivindicatória não tiveram em nenhum momento a representação por advogado (art. 133 da CF), apenas a negativa geral por parte do defensor público, nomeado como curador à lide.
Aberta vista ao Ministério Público, o procurador Luiz Antônio de S.P. Ricardo, transcreveu diversas jurisprudências em que fica evidenciada a polêmica criada nos tribunais brasileiros sobre a necessária participação do Ministério Público nos conflitos agrários urbanos. No entanto, quando lemos atentamente o inciso III do art. 82 do CPC, artigo que já teve mudança na redação original, vemos que ele aponta para a necessária participação do Ministério Público quando a qualidade das partes e a natureza da lide o exigirem, e não apenas em questões de posse pela terra. É obvio que os governantes têm de dar uma atenção especial hoje aos diversos conflitos existentes pela posse da terra, não apenas rural, mas também os conflitos urbanos, haja vista as freqüentes mortes como aconteceu recentemente em Goiânia.
Em 25 de fevereiro, foi juntado aos autos da Ação Rescisória petição de especificação de provas protestando-se pela produção de provas testemunhal, documental e pericial.
DO DIREITO
O art. 82 do Código de Processo Civil dispõe:
Art. 82. Compete o Ministério Público intervir:
I- nas causas em que há interesses de incapazes;
II- nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de ultima vontade;
III- nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.
O Ministério Público, na Constituição de 1988, recebeu funções de fiscalização e proteção dos direitos humanos e da democracia que projetam, esta instituição, muito além daquelas funções que exercia antes da Constituição em vigor.
O art. 127 da Constituição Federal de forma expressa dispõe que o Ministério Público é instituição permanente essencial à função jurisdicional e responsável pela defesa da ordem jurídica, ou seja, do sistema jurídico que tem como fundamento a Constituição, e deve ser lido e interpretado sempre segundo a Constituição além da proteção do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, ou, em outras palavras, da proteção aos Direitos Humanos, visto que os direitos sociais e individuais são dois dos grupos de direitos fundamentais que compõem os direitos humanos (utilizamos direitos fundamentais como sinônimos de direitos humanos na perspectiva constitucional), aos quais somamos os direitos políticos e econômicos, direitos interdependentes e indivisíveis.
A proteção dos direitos fundamentais não é faculdade mas dever, e o texto confirma ao mencionar a indisponibilidade destes direitos. O Ministério Público, diante do art. 82 do CPC lido sob a lógica do art. 127 da Constituição Federal, tem o dever de intervir para defender direitos individuais e sociais indisponíveis como o direito a uma vida digna, o direito à liberdade, o direito a moradia, o direito à inviolabilidade do domicílio, o direito à integridade física e moral; o direito ao trabalho, além de outros que se encontram direta ou indiretamente envolvidos neste caso.
Não pode o Ministério Público deixar de assumir suas importantes prerrogativas constitucionais que colocam essa instituição com status de poder, de função autônoma não subordinada a nenhum dos três poderes tradicionais.
O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO FUNÇÃO
AUTONOMA DE FISCALIZAÇÃO E DEFESA
DE DIREITOS CONSTITUCIONAIS
Um dos princípios fundamentais da democracia moderna é o da separação de poderes. A idéia da separação de poderes para evitar a concentração absoluta de poder nas mãos do soberano, comum no Estado absoluto que precede as revoluções burguesas, fundamenta-se nas teorias de John Locke e de Montesquieu. Imaginou-se um mecanismo que buscasse evitar essa concentração de poderes, em que cada uma das funções do Estado seria de responsabilidade de um órgão ou de um grupo de órgãos. Esse mecanismo será aperfeiçoado posteriormente com a criação de mecanismo de freios e contrapesos, em que esses três poderes que reúnem órgãos encarregados primordialmente de funções legislativas, administrativas e judiciárias pudessem se controlar. Esses mecanismos de controle mútuo, se construídos de maneira adequada e equilibrada, e se implementados e aplicados de forma correta e não distorcida, permitirá que os poderes sejam independentes (a palavra correta é autônomo e não independente), não existindo a supremacia de um em relação ao outro.
Com a evolução do Estado moderno, percebemos que a idéia de tripartição de poderes se tornou insuficiente para dar conta das necessidades de controle democrático do exercício do poder, sendo necessário superar a idéia de três poderes para se chegar a uma organização de órgãos autônomos reunidos em mais funções do que as três originais. Essa idéia vem se afirmando em uma prática diária de órgãos de fiscalização essenciais à democracia como os Tribunais de Contas e, principalmente, o Ministério Público. Ora, por mais esforço que os teóricos tenham feito, o encaixe desses órgãos autônomos em um dos três poderes é absolutamente artificial e, mais, inadequado.
O Ministério Público recebeu na Constituição de 1988 uma autonomia especial que lhe permite proteger, fiscalizando o respeito à lei e à Constituição, e, logo, aos direitos fundamentais da pessoa, ao patrimônio público, histórico, ao meio ambiente, aos direitos humanos, etc. Para exercer de forma adequada suas funções constitucionais, o Ministério Público não pode estar vinculado a nenhum dos poderes tradicionais, especialmente porque sua função preponderante é fiscalizar e proteger a democracia e os direitos fundamentais e não de legislar, administrar, governar, ou jurisdicizar.
Embora o constituinte de 1987-1988 não tenha dito expressamente tratar-se o Ministério Público de um quarto poder, o texto constitucional imprime força semelhante ao conceder-lhe autonomia funcional de caráter especial. Qualquer tentativa de subordinar essa função de fiscalização e defesa de direitos fundamentais típica do Ministério Público a qualquer outra função é tentativa de reduzir os mecanismos de controle democrático e, logo, inconstitucional.
DA OBRIGATORIEDADE DA INTERPRETAÇÃO
DA NORMA INFRACONSTITUCIONAL SEGUNDO
A NORMA CONSTITUCIONAL: O SISTEMA
JURÍDICO INTEGRAL E COERENTE
O Direito Constitucional tem evoluído com grande velocidade nesses anos, e com esta evolução a compreensão do significado do que é Constituição muda a partir de exigências de um mundo dinâmico e complexo. Constituição não é texto e Direito não é regra, e não pode ser assim considerado, como ocorria no passado, sob pena de se tornar obsoleto. É inimaginável a possibilidade de o parlamento acompanhar e prever todas as possíveis situações fáticas decorrentes das mudanças sociais rápidas, e muitas vezes, radicais.
Diante deste mundo surpreendente, o desafio é perceber sua complexidade, sua diversidade e sua relatividade. Diante disso uma nova consciência jurídica se afirma. A superação de um legalismo simplificador é exigência do nosso tempo. O Direito não pode ser resumido a regra, pois não há a possibilidade de previsão de regras para solucionar todos os conflitos de um mundo complexo. O Direito principiológico vinculado à história, vinculado ao caso concreto, tornou-se uma exigência democrática.
Para compreender o que foi dito, é importante lembrar que Constituição não é texto. O texto é um sistema de significantes aos quais atribuímos significados. Nesse sentido, um texto significa atribuir sentidos e atribuir sentidos significa atribuir valores, os quais mudam com a sociedade. A sociedade muda por meio das contradições e conflitos internos e externos. Logo, quando a sociedade muda, mudam-se os valores, logo, mudam os conceitos das palavras (significantes), aos quais, portanto, passamos atribuir novos significados.
Esse é o ponto que nos interessa de perto para a construção da idéia de jurisdição constitucional ampla ou, melhor, o fato de que toda a jurisdição tem de ser uma jurisdição constitucional, uma vez que não se pode ler a lei infraconstitucional contra a Constituição, o que seria uma interpretação inconstitucional.
A interpretação, a atribuição de sentido ao texto, é fato que sempre ocorre. O texto por si só não existe; ele só passa a existir quando alguém lê, e quando isso ocorre, necessariamente, quem lê e atribui sentido o faz a partir de suas compreensão dos significantes ali apresentados, jogando na compreensão do texto os valores, as pré-compreensões adquiridas do decorrer de sua vida. Podemos afirmar que é impossível não interpretar.
Pode-se imaginar a partir daí que a relatividade e as variações das compreensões são muito grandes, e isso também é fato. O que cabe ao operador do direito buscar é a segurança jurídica possível diante do universo de compreensão que se abre com essa compreensão. A segurança que se buscou no legalismo extremado, gerador de injustiças, não é de forma nenhuma a solução. A inflação normativa, com a criação de regras para tudo é uma ilusão que não gera segurança, mas gera, sim, injustiça e imobilismo autoritário.
Vivemos inseridos em sistemas de valores, em universos de compreensão que se inserem uns dentro dos outros. Quanto maior o espaço de abrangência do sistema de compreensão, menor a sintonia fina existente, menores os recursos de comunicação. O sistema jurídico constrói um universo de compreensão não uniforme, mas que oferece maior segurança se o compreendermos em sua dimensão histórica e em sua dimensão sistêmica e teleológica.
O que vem ocorrendo em termos de jurisdição constitucional ampla em nossos tribunais reforça a idéia de uma Constituição dinâmica, viva, que se reconstrói diariamente diante da complexidade das sociedades contemporâneas. Uma Constituição presente em cada momento da vida. Uma Constituição que é interpretação, e não texto. Essa compreensão nos revela uma nova dimensão da jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas mais diversas funções, dizer a Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente adequadas de todas a normas e fatos. A vida é interpretação; não há texto que não seja interpretado. A interpretação do mundo, dos fatos, das normas é inafastável.
CONCLUSÃO
1. Mencionamos, em primeiro lugar, o texto do Código de Processo Civil que menciona expressamente a previsão de intervenção do Ministério Público nas causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade das partes.
2. Os fatos que originaram o processo demonstram com clareza o interesse público e a ameaça a diversos direitos fundamentais de diversas pessoas, o que reforça o enquadramento no artigo 82 do Código de Processo Civil.
3. Demonstramos que a Constituição de 1988 criou um Ministério Público que vai muito além de suas funções históricas passadas, pois é uma instituição autônoma de fiscalização e defesa de direitos indisponíveis.
4. A defesa de direitos indisponíveis não é uma faculdade, mas uma obrigação.
5. Demonstramos, posteriormente, que a norma infraconstitucional, seja ela qual for, deve ser lida de acordo com a Constituição sempre. Toda jurisdição é constitucional; pois o ordenamento jurídico é um sistema íntegro e coerente cujo fundamento é a Constituição.
6. A integridade desse sistema e sua coerência é condição fundamental para permitir que o direito responda às mudanças rápidas e às complexidades sociais contemporâneas.
Tudo exposto, podemos perceber, com clareza, que o art. 82 do Código de Processo Civil, lido corretamente de acordo com os mandamentos constitucionais, especialmente o art. 127 e os diversos artigos que dispõem sobre os direitos sociais e individuais fundamentais, impõe como obrigatória a intervenção o Ministério Público na defesa do interesse público, claramente expresso no conflito social que gera a necessidade de proteção dos direitos fundamentais ameaçados no caso que gerou o processo mencionado.
Professor Doutor
José Luiz Quadros de Magalhães
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