terça-feira, 5 de outubro de 2010

73- Teoria da Constituição 21 - constitucionalismo norte-americano

HERMENÊUTICA
CONSTITUCIONAL


Jose Luiz Quadros de Magalhães


3 O CONSTITUCIONALISMO NORTE-AMERICANO

De forma diferente do constitucionalismo inglês, nos Estados Unidos houve um poder constituinte originário que produziu, em 1787, um texto codificado, rígido e sintético com aspecto essencialmente princi¬piológico e inicialmente político, incorporando a declaração de direitos individuais fundamentais a partir da dez emendas que constituíram o Bill of Rights.
O constitucionalismo estadunidense criou o sistema de governo presidencial, o federalismo, o controle difuso de constitucionalidade, mecanismo sofisticados de freios e contrapesos e uma Suprema Corte que protege a Constituição, sendo sua composição uma expressão do sistema controle entre os poderes separados.
Sobre a Constituição norte-americana muito tem sido dito, por isso muitos são também os equívocos. Primeiro diz-se que os Estados Unidos tiveram apenas uma Constituição, mas esta não parece ser a compreensão de seus intérpretes e estudiosos. Alguns autores afirmam encontrar-se nos Estados Unidos da América ao menos três Constituições, outros falam em sete Constituições diferentes. Isso significa que, embora desde 1787 o texto com sete artigos permaneça em vigor com 27 emendas, ocorreram modificações interpretativas que atribuíram sentidos diversos aos significantes do seu texto, e essas mudanças de compreensão geraram novos direitos.
Para compreender o que foi dito, é importante lembrar que Constituição não é texto. O texto é um sistema de significantes aos quais atribuímos significados. Nesse sentido toda leitura de um texto significa atribuição de sentidos e atribuição de sentidos significa atribuir valores, que mudam com a mudança da sociedade. A sociedade muda por meio das contradições e conflitos internos e externos. Logo, quando muda a sociedade, mudam os valores, logo, mudam os conceitos das palavras (significantes), aos quais, portanto, passamos atribuir novos significados.
O processo evolutivo da Constituição dos Estados Unidos da América ocorre, principalmente, por meio das suas mutações interpretativas, decorrentes da evolução de valores de uma sociedade em permanente conflito.
Jorge Miranda7 afirma que a Constituição norte-americana é, simultaneamente, rígida e elástica. Rígida porque a alteração formal de seu texto é complexa e diferenciada do processo legislativo de elaboração de uma lei ordinária. Para alterar o texto ou promover emendas aditivas ou supressivas, é necessária a participação dos Estados-Membros da federação em um processo lento e complexo. Isso explica, em parte, o número reduzido de emendas. Entretanto, o principal motivo da existência de poucas mudanças formais do texto, por meio de emendas é o fato de que esse texto sintético e principiológico permite mutações interpretativas, mudança de compreensão de seu sentido e do conceito de seus princípios, que torna desnecessária o recurso constante a mudança do texto, pois muda-se a Constituição mudando o seu sentido, a sua compreensão, sem ter de mudar o texto.
Importante ressaltar que a mudança interpretativa tem limites, impostos pelo próprio texto. Logo, um texto sintético, que contenha mais princípios do que regras8 permite maiores mudanças interpretativas do que um texto analítico, com excesso de regras que travem mudanças de compreensão dos princípios. Quanto mais detalhado o texto, quanto mais regras, quanto maior o detalhamento do texto, que em alguns casos pode construir modelos, conceitos e traduzir valores, menor o espaço para as mudanças interpretativas. Entretanto, podemos dizer que mesmo um texto detalhado, minucioso, também muda de sentido, embora o espaço da mudança seja menor. Podemos concluir nesse aspecto, que, ao contrário do que se diz, a Constituição dos Estados Unidos da América não é pequena, pois o seu texto sintético permite construções interpretativas muito amplas, fazendo que a constituição dos Estados Unidos da América, juntamente com a Inglesa, seja uma das maiores Constituições do planeta, pois para compreendê-la é necessário buscar a leitura que os tribunais fazem do seu texto. Integram a Constituição as decisões judiciais que dão densidade aos seus princípios diante do caso concreto.
Esse é o ponto que nos interessa de perto para a construção da idéia de jurisdição constitucional: o que ocorre nos Estados Unidos da América ocorre em todo o mundo, com intensidade diferente. A interpretação, a atribuição de sentido ao texto, é fato que sempre ocorre. O texto por si só não existe, ele só passa a existir quando alguém o lê, e quando isso ocorre, necessariamente, quem o lê e lhe atribui sentido, o faz a partir de suas compreensão dos significantes ali apresentados, jogando na compreensão do texto os valores, as pré-compreensões adquiridas do decorrer de sua vida. Podemos afirmar que é impossível não interpretar.
Pode-se imaginar, a partir daí, que a relatividade e as variações das compreensões são muito grandes, e isso também é fato. O que cabe ao jurista buscar é a segurança jurídica possível diante do universo de compreensão que se abre com essa descoberta. A segurança que se buscou no legalismo extremado, gerador de injustiças, não é de forma nenhuma a solução. A inflação normativa, com a criação de regras para tudo, é uma ilusão que não gera segurança, mas gera, sim, injustiça e imobilismo autoritário.
Vivemos inseridos em sistemas de valores, em universos de compreensão que se inserem uns dentro dos outros. Quanto maior o espaço de abrangência do sistema de compreensão, menor a sintonia fina existente, menores os recursos de comunicação. O sistema jurídico constrói um universo de compreensão não uniforme, mas que oferece maior segurança se o compreendermos em sua dimensão histórica e em sua dimensão sistêmica e teleológica. Esse assunto será enfrentado mais adiante e nos valemos das reflexões de Ronald Dworkin para fazê-lo, não adotando sua teoria mas pensando a partir dela.
Voltemos, pois, a história constitucional norte-americana para procurarmos entender a evolução constitucional daquele país e a importante contribuição de sua prática histórica para as reflexões que envolvem a hermenêutica constitucional em todo o mundo.9
Vamos tomar uma frase (em português) mas originária da declaração de independência dos Estados Unidos:

TODOS OS HOMENS NASCEM
LIVRES E IGUAIS EM DIREITO

Como o leitor compreende essas palavras hoje, no século XXI? Provavelmente da maneira como a grande maioria das pessoas: todas a pessoas, indistintamente, sem diferenciação em razão de credo religiosos, etnia, cor, sexo, origem econômica ou nacional, nascem livres e iguais em Direito.
Como vemos, a frase “todos os homens nascem livres e iguais em Direito” conquistou hoje o senso comum de milhões de pessoas em quase todos os lugares do planeta onde há uma Constituição de um Estado nacional relativamente democrático, com um significado que se universalizou. Entretanto, para lermos e compreendermos essa frase como a compreendemos hoje foram séculos de história, séculos de conflitos e lenta conquista de direitos. A atribuição desse sentido aos significantes da frase, embora não seja realidade efetiva em diversas sociedades, representa uma busca comum de boa parte da humanidade. A compreensão geral desse principio é hoje bastante generalizada, embora a compreensão mais profunda da idéia de igualdade não seja tão uniforme, e nem deva ser, em um universo cultural diversificado, plural e democrático.
Se buscarmos, no entanto, a compreensão dessa frase no século XVIII, pouco depois da independência dos Estados Unidos da América, vamos perceber que as palavras ganham outro sentido, e logo as normas decorrentes desse princípio serão outras. O olhar de um juiz norte-americano sobre essas palavras, expressando os valores daquela época, vai permitir que ele extraia dessa frase a seguinte compreensão: todos os homens (sexo masculino) brancos e protestantes, nascem livres e iguais em direito. A mesma frase, com os mesmos significantes ganha sentido completamente diverso, pois o olhar do interprete é condicionado pelos valores sociais e as pré-compreensões desses valores decorrentes em determinado momento da história. As compreensões são historicamente e geograficamente localizadas. Com outro sentido, as normas decorrentes deste principio estabelecem uma ordem jurídica fundada sobre valores completamente diferentes e um sistema normativo também completamente diferente.
A situação de exclusão e um desenvolvimento econômico distinto no norte industrializado e progressista e um sul escravocrata e conservador geraram conflitos que levaram a guerra civil norte-americana. Os conflitos sociais, políticos e econômicos empurram a sociedade a mudanças comportamentais, novos valores se afirmam e as compreensões do mundo mudam gradualmente. Novos conceitos se afirmam diante de novas realidades, um novo universo de pré-compreensões é paulatinamente construído e reconstruído. Novos significados se afirmam para os mesmo símbolos, para os mesmos significantes, para as mesmas palavras. Um novo mundo se constrói na linguagem, que é reconstruída pela marcha econômica e social do capitalismo do século XIX. Essas mudanças ocorrem na cabeça das pessoas. Novas demandas se apresentam perante o Poder Judiciário, e juízes que incorporam essas novas compreensões constroem soluções, novas normas diante do caso concreto que refletem esses valores. No final do século XIX, as mesmas palavras que traduzem o princípio da igualdade ganham novo significado e normas diferentes são criadas, regulando as relações sociais, políticas e econômicas de forma diferente.
A frase “todos os homens nascem livres e iguais em direito” passa a ter novo sentido, podendo ser traduzida da seguinte forma: todos os homens (sexo masculino), brancos e negros, nascem livres e iguais em direitos, mas devem viver separados. A existência de escolas só para brancos e só para negros, ônibus ou lugares nos transportes coletivos só para brancos e só para negros, assim como outras separações, são permitidas, desde a qualidade dos serviços sejam iguais para brancos e negros.10 Está criada a doutrina fundada sobre a idéia de separados mas iguais. Esse processo de mutação interpretativa é muitas vezes lento, aparecendo pontualmente em algumas decisões judiciais, até se firmar como paradigma de compreensão durante algum tempo.
A compreensão do separados mas iguais permanece até a década de 1960 nos Estados Unidos. Os conflitos raciais, o movimento pelos direitos civis na década de 195011 e 1960, com a liderança de Malcon X, o pastor Martin Luther King, a eleição de John Kennedy em 1960 e a ação de Bob Kennedy na repressão aos movimentos racistas violentos da Ku Klux Klan, empurram a sociedade norte-americana para uma nova ruptura, com a construção de uma nova idéia de igualdade. Lentamente, a doutrina do separados mais iguais vai cedendo espaço a uma nova leitura do principio da igualdade jurídica. A frase “todos os homens nascem livres e iguais em direito” passa a ser compreendida de outra maneira. Agora podemos dizer que todos os homens, brancos, negros, vermelhos, amarelos, independentemente de cor, etnia ou qualquer outra diferenciação, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser obrigados a viver separados em um sistema de segregação de qualquer espécie.
A igualdade de direitos entre homens e mulheres, entretanto, ainda vai demorar um pouco mais. Em 1972, nos Estados Unidos da América, foi proposta a 27ª emenda, reconhecendo direitos iguais para homens e mulheres. Na sua proposição, reconheceu-se que, caso a Suprema Corte mudasse a orientação a respeito da igualdade jurídica, não seria necessária a aprovação da emenda. Ela não foi aprovada, encontrando forte resistência nos Estados do sul, mais conservadores. Entretanto, a Suprema Corte passou a compreender a igualdade perante a lei de nova forma. Podemos dizer que a frase “todos os homens nascem livres e iguais em direitos” passa a ser compreendida da seguinte forma: todos os homens leia-se todos os seres humanos -, sem nenhuma distinção, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser segregados ou discriminados por nenhum motivo, seja cor, etnia, origem social ou econômica, ou sexo.
A igualdade de direitos entre mulheres e homens no Brasil só foi reconhecida expressamente com a Constituição de 1988, no seu artigo 5º inciso, I. Em muitos países, hoje respeitados como modelos de Estado de bem-estar social democráticos, os direitos das mulheres foi tardiamente reconhecido. Na Suíça, por exemplo, o voto feminino só foi admitido em nível federal a partir de 1972.
Como vimos, o princípio da igualdade jurídica percorreu um caminho de mais de duzentos anos de conflitos até que pudéssemos compreendê-lo com o significado que ele têm hoje. Esse foi o percurso de um princípio. A mutação sistêmica da compreensão do texto constitucional representa a mudança de compreensão de toda a Constituição. É como se se adotasse uma nova Constituição. Talvez o exemplo mais claro disso tenha sido a passagem de uma Constituição liberal para uma Constituição social, sem a alteração do texto, sem um processo formal de reforma e sem um novo processo constituinte. Houve uma mudança de compreensão do texto no que diz respeito à admissão da possibilidade de uma forte intervenção do Estado no domínio econômico, o que marca a introdução do Welfare State nos Estados Unidos a partir do governo Roosevelt nas décadas de 1930 e 1940, adotando um modelo econômico intervencionista de base teórica keynesiano-fordista.12
A história constitucional norte-americana reforça a idéia de uma Constituição dinâmica, viva, que se reconstrói diariamente diante da complexidade das sociedades contemporâneas. Uma Constituição presente em cada momento da vida. Uma Constituição que é interpretação, e não texto. A experiência norte-americana nos revela uma nova dimensão da jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas mais diversas funções, dizer a Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente adequadas de todas a normas e fatos. A vida é interpretação, não há texto que não seja interpretado. A interpretação do mundo, dos fatos, das normas é inafastável.

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