HERMENÊUTICA
CONSTITUCIONAL
Jose Luiz Quadros de Magalhães
1 NOVAS REFLEXÕES SOBRE A INTERPRETAÇÃO
Não vamos, neste ponto, repetir o que já foi escrito de forma competente por diversos juristas contemporâneos.1 Cada um, de acordo com seu marco teórico, desenvolveu reflexões importantes que devem ser conhecidas e estudadas. Vamos, aqui, desenvolver nossas reflexões sobre o tema procurando oferecer uma contribuição a esse debate. As reflexões que se seguem são construções teóricas efetuadas a partir do debate com o pensamento dos autores acima citados, dentre outros, e no que diz respeito especialmente à questão do conflito de princípios, a partir do diálogo com as obras de Robert Alexy e Ronald Dworkin, tomando este último como referencial teórico capaz de nos oferecer maior segurança diante da incerteza, relatividade e complexidade descoberta.
O Direito Constitucional evolui com grande velocidade nesses anos de crise. Podemos dizer que nunca na história os dois grandes sistemas ocidentais de Direito se comunicaram com tanta intensidade e trouxeram contribuições importantes um para o outro como a partir do final do século XX.
A mudança da compreensão do significado do que é Constituição muda a partir de exigências de um mundo dinâmico e complexo. Constituição não é texto e Direito não é regra, e não pode ser assim considerado, sob pena de se tornar obsoleto. É inimaginável a possibilidade de o parlamento acompanhar e prever todas as possíveis situações fáticas decorrentes dos avanços da tecnologia (biomédica, biotecnologia, tecnologia das comunicações, tecnologia da produção entre outras), na vida das pessoas. A vida se mostra muito mais complexa do que a ciência (simplificadora por exigência) e os seres humanos felizmente não se adaptam aos sistemas prontos. Assistimos desmoronar, diante de nossos olhos, os sistemas teóricos econômicos, sociais, políticos construídos durante os séculos XVIII e XIX e implementados nos séculos XIX e XX. Assim vimos morrer a promessa liberal, o socialismo real, nos conformamos ao adiamento do sonho comunista e anarquista, assim como presenciamos propostas que se diziam mais realistas e, portanto, mais tímidas, como a social democracia, o social cristianismo, entrar em crise radical. Assistimos, hoje, a patéticos economistas televisivos, arrogantes e presunçosos (sua única defesa), afirmarem que não há salvação fora de suas pobres teorias (daí o caos que vivemos) que mandam no mundo (teorias que transformaram os seres humanos em pouco mais que ratos que reagem a estímulos de consumo e poupança). A economia neoliberal (neoconservadora) se transformou em uma nova religião inquestionável. Felizmente, começa a ser desmascarada e lentamente abandonada.
Diante deste mundo surpreendente, o desafio é perceber sua complexidade, sua diversidade e sua relatividade. Diante disso, uma nova consciência jurídica começa a se expandir. A superação de um legalismo pobre é exigência do nosso tempo. O Direito não pode ser resumido a regra pois não há possibilidade de previsão de regras para solucionar todos os conflitos de um mundo complexo. O Direito principiológico vinculado à história, vinculado ao caso concreto, tornou-se uma exigência democrática. Para compreendermos as origens históricas das reflexões contemporâneas do Direito Constitucional, e como antes das teorizações elas já eram realidades históricas, vamos começar a estudar essa questão pela da compreensão da contribuição do Direito Constitucional inglês e norte-americano para o Direito contemporâneo, que é, nesse sentido, (enquanto método e processo), global ou universal.
2 O CONSTITUCIONALISMO INGLÊS
A Constituição inglesa (ou o constitucionalismo inglês para alguns) começa a nascer simbolicamente com a Magna Carta de 1215. Três são as instituições protagonistas da histórica constitucional inglesa: o Rei, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns. O predomínio de cada um desses protagonistas marca períodos da história política e constitucional do Reino. No período que vai de 1215 até o século XVII, predomina a autoridade do Rei, marcando um período monárquico. Entre o século XVII e meados do século XIX, prevalece a Câmara dos Lordes, marcando o período aristocrático, e desde de final do século XIX até os dias de hoje ocorre o predomínio da Câmara dos Comuns, que seria, então, o período democrático. Alguns autores vêem no século XVIII um período misto, no qual, então, ocorreria uma união ideal das três formas clássicas de governo: a monarquia, a aristocracia e a democracia.2
Muitos equívocos foram cometidos a respeito da Constituição inglesa. Dizia-se que a Inglaterra3 (leia-se Reino Unido) não tinha Constituição ou, então, que não tinha Constituição escrita, duas incorreções. Alguns começaram a separar o inseparável, a constituição moderna de constitucionalismo, afirmando que na Inglaterra e Israel, dentre outros países, havia constitucionalismo sem Constituição (bobagem). O equivoco estava em reduzir a Constituição à sua forma, não compreendendo que Constituição pode até ser forma e pode até ser matéria específica, historicamente localizada, mas seu único elemento permanente é a sua hermenêutica, a Constituição sempre será interpretação, compreensão, leitura histórica, portanto temporal e geograficamente localizadas. Aliás constituição é vida e vida é interpretação. Tudo é interpretação, e a interpretação é história, cultura, vida, e portanto complexidade.
Para fins de referencial histórico, a maior parte dos autores menciona a Magna Carta de 1215 como o marco inicial de formação da Constituição inglesa. A Magna Carta não é a primeira Constituição, mas nela podemos encontrar os elementos essenciais do constitu-cionalismo moderno: limitação do poder do Estado e declaração de direitos da pessoa.
A Constituição inglesa, a partir de então, começa a se construir sobre um tripé cuja Magna Carta constitui apenas o início. Por Constituição na Inglaterra compreende-se três bases:
• As leis escritas produzidas pelo parlamento que podemos chamar de Statute Law. As leis constitucionais produzidas pelo parlamento são Constituição não porque são elaboradas por um poder constituinte originário ou derivado, ou por observarem procedimentos legislativos especiais, mas são Constituição, porque tratam de matéria constitucional, ou seja, limitação do poder do Estado com distribuição de competência e organização da sua estrutura e território e a declaração e proteção dos direitos fundamentais da pessoa;
• As decisões judiciais de dois tipos: o Common Law e os Cases Law. Por Common Law compreendemos as decisões judiciais (escritas) que incorporam costumes vigentes à época. Por Cases Law temos as decisões judiciais que se traduzem por interpretações e reinterpretações, leituras e releituras das normas produzidas pelo parlamento;
• As Convenções constitucionais, que são acordos políticos efetuados no parlamento, não escritos, de conteúdo constitucional (entenda-se por conteúdo constitucional aqui as normas de organização e funcionamento do Estado, distribuição de competência e limitação do poder do Estado e as declarações e posteriormente garantias de direitos fundamentais).
Como se vê, a Constituição inglesa existe e é essencialmente escrita, pois dois dos três pilares de sua estrutura são escritos. Importante ainda ressaltar que as convenções constitucionais não escritas são obrigatórias e, por força da tradição, são de difícil alteração. Uma Convenção constitucional pode se transformar em lei do Parlamento, e nesse caso o seu cumprimento ou não pode ser objeto de decisão judicial. Entretanto, enquanto Convenção constitucional, esta é de competência do parlamento, e o fato de uma ruptura com uma Convenção não autoriza o Judiciário a decidir sobre o fato.
Em outras palavras, devemos entender o seguinte: uma Convenção constitucional é um acordo parlamentar não escrito, alguns durando séculos, que tem enorme força, sendo de difícil alteração. Entretanto, para romper com uma Convenção, basta não mais aplicá-la. Esse fato para nossa cultura pode parecer fácil, mas, na cultura inglesa, extremamente tradicional, e difícil acontecer. Uma vez rompida com o acordo, esta rompido, e este rompimento não pode ser objeto de análise do Judiciário.
O que nos interessa no constitucionalismo inglês é a sua contribuição para o constitucionalismo norte-americano, que por essa tradição chegou até nós. A sua contribuição principal nesse caso não está na força do parlamento, mas na força do juiz. O Judiciário constrói a norma justa aplicável ao caso concreto, e se essa norma construída pelo Judiciário cuida de matéria constitucional ela é Constituição. O que acabamos de dizer vem ser teorizado com maior consistência no século XX, entretanto é praticado a séculos.
Essa construção e reconstrução da compreensão da Constituição inserida na realidade econômica, social, cultural e política é fato, que passa a ser melhor teorizado na segunda metade do século XX. A Constituição inglesa é de extrema complexidade, pois não foi construída sobre uma única base, um texto constitucional produto de um poder constituinte originário, sistematizado, codificado, dividido em títulos, capítulos, seções, artigos, incisos e alíneas, mas é formado por diversas leis que são interpretadas, reinterpretadas e formalmente modificadas, isso tudo somado a Convenções não escrita acordadas no parlamento, o que torna a compreensão da Constituição inglesa extremamente difícil para nós.
Não há na história constitucional inglesa um poder constituinte originário, eleito para elaborar a Constituição e que se dissolve depois dessa tarefa, deixando um poder constituinte derivado de reforma atuante a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais. Podemos dizer que não há na Inglaterra um poder constituinte originário nem derivado, mas um poder constituinte permanente que atua no Legislativo, no Judiciário e na cultura política. A idéia britânica da soberania do parlamento reside na afirmação antiga de que o parlamento (as câmaras e o rei) podem adotar qualquer lei. Assim, não há norma superior à lei, e logo uma lei de conteúdo constitucional pode a qualquer momento ser modificada por uma lei ordinária. A lei constitucional não o é por ter procedimento legislativo diferente, mas somente pelo seu conteúdo. Alguns ainda defendem a idéia de que aquilo que a rainha faz em seu parlamento é direito e não há limites ao que pode fazer o parlamento (ao menos limites jurídicos por ser obvio a existência de limites históricos, fáticos). Assim os tribunais não podem recusar a aplicação de uma lei sob o fundamento de invalidade ou incons¬titucionalidade, recusando-se, portanto, um mecanismo judicial de controle de constitucionalidade das leis produzidas pelo parlamento.4
Entretanto, recentemente, há um forte movimento em defesa da adoção de uma declaração de direito, de uma codificação dos direitos e liberdades com um valor supralegislativo e logo suscetível de um controle de constitucionalidade. Essa tese ainda é minoritária mas mudanças importantes vêm ocorrendo com a condição do Reino Unido de Estado-Membro da União Européia. O Ato dos Direitos Humanos adotado em 1998 tornou a Convenção Européia de Direitos Humanos diretamente aplicável. Embora a Convenção não tenha superioridade em relação as leis ordinárias do parlamento, um deputado que proponha um lei deve fazer um declaração sobre a compatibilidade desta com a Convenção. Os tribunais continuam não podendo anular uma lei do parlamento, mas devem, no caso de conflito entre uma lei do parlamento e a convenção, promover uma interpretação que as tornem compatíveis. Sendo impossível a compatibilização, esta deve ser declarada pelo tribunal. O juiz não pode afastar a aplicação da lei parlamentar mas para pôr fim o conflito o Primeiro-Ministro pode emendar a lei sem voltar ao caso concreto que gerou o conflito.5
Outro aspecto importante da tradição jurídica inglesa, que decorre de maneira lógica de tudo o que foi dito, é o recurso ao precedente, como fonte do direito constitucional. Os precedentes judiciais são Constituição, na forma de decisões que incorporam tradições e costumes, e nas interpretações e reinterpretações da lei produzida pelo parlamento. Importante lembrar que a jurisdição suprema do Reino Unido é exercida pela Câmara dos Lordes, que é também integrante do Legislativo. A Câmara dos Lordes era composta, em 1999, de 758 pares hereditários e 542 pares vitalícios indicados pela Rainha, recentemente, indiretamente pelo Primeiro-Ministro, e 25 pares espirituais, bispos da Igreja Anglicana. Com as recentes reformas do governo Trabalhista de Tony Blair, os lordes hereditários deixam de existir e se inicia um processo de democratização da Câmara dos Lordes com a eleição de pares ao lado dos pares vitalícios nomeados pelo Primeiro-Ministro por intermédio da Rainha. A reforma no sistema de designação dos lordes vitalícios ainda não foi implementada. Assim, os lordes hereditários perderam suas cadeiras com a exceção de 92, que permaneceram por serem selecionados por eleição. Finalmente, acrescente-se que, com as sucessivas restrições históricas ao poder da Câmara dos Lordes, a participação desta no processo legislativo se resume na possibilidade de vetos suspensivos que prorrogam a entrada em vigor de uma lei por no máximo um ano.6
O precedente não equivale ao que chamamos entre nós de súmula. A súmula é uma redução absurda do caso, em que uma ementa resume toda a sua complexidade. O pior é determinar que essa súmula dos Tribunais Superiores ou do Supremo Tribunal Federal deve vincular as decisões de todos os órgãos do Poder Judiciário. Para entendermos a absurda simplificação de uma súmula e a desumanização do processo no Judiciário quando impomos sua vinculação, devemos compreender o significado de um precedente. A riqueza do precedente e a sua contribuição para as compreensões da hermenêutica constitucional contemporânea estão no fato de que o precedente não se resume a uma sumula (uma ementa), mas leva em consideração toda a lógica argumentativa desenvolvida pelas partes no decorrer do processo assim como o fundamento das decisões, incluindo os argumentos de votos vencidos. Nesse sistema de precedentes, as partes devem demonstrar que, levando em consideração a situação histórica do caso em julgamento, com todo o seu pano de fundo social, cultural, econômico, pessoal, dentre outros aspectos, um precedente se aplica ou não, qual precedente se aplica ou, ainda, se é necessário criar um novo precedente. Nesse sentido, é que podemos dizer que um precedente não se revoga, mas é superado pela história, cultura e valores vigentes nas sociedades, sempre em transformação.
Partindo dessa experiência, podemos resistir à estupidez das simplificações impostas, utilizando a mesma lógica para rechaçar a aplicação de uma súmula. Para evitar a desumanização do processo, é necessário demonstrá-la, ou seja, é necessário demonstrar em cada caso a sua natureza única, a sua especificidade e a razão por que a súmula não se aplica.
Isso posto, passamos à análise do constitucionalismo norte-americano, modelo que contribuiu diretamente para nossa história constitucional. O constitucionalismo norte-americano se aproxima do nosso, uma vez que, a partir da experiência inglesa e da teoria francesa, os norte-americanos elaboraram um texto, produto de um poder constituinte originário, rígido, sintético e essencialmente principiológico, o que permite a força do Judiciário na construção e reconstrução de sua interpretação.
Embora não tenhamos uma Constituição com um texto sintético e principiológico, como a Constituição norte-americana, a influência do constitucionalismo norte-americano, a partir da nossa Constituição de 1891, ocorreu principalmente com a criação do controle difuso de constitucionalidade. A introdução dessa forma de controle no Brasil permite que recebamos importante contribuição teórica e prática, que ocorre com a introdução da idéia de construção de um sentido mais amplo e democrático do conceito de jurisdição constitucional. Essa contribuição é, hoje, importante para o direito constitucional em todo o mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário