A CLASSIFICAÇÃO DAS
CONSTITUIÇÕES
José Luiz Quadros de Magalhães
Tema clássico no Direito Constitucional é a tradicional classificação das Constituições que encontramos em vários manuais de Direito Constitucional. Pode parecer desatualizado tratarmos dessa classificação diante das novas compreensões decorrentes do giro hermenêutico e da idéia, decorrente dessas indagações, de construção diária da Constituição diante da complexidade da vida e da constante mutação dos valores a partir dos conflitos, fatos geradores da mudança. Entretanto, é possível e, talvez, mesmo necessária a adaptação dessa classificação às novas compreensões, como uma forma de atualizar as antigas compreensões e permitir um comunicação entre o antigo e o novo paradigma, sistemas que devem e podem, sempre, se comunicar.
1 CONSTITUIÇÃO ORTODOXA E ECLÉTICA
A primeira classificação que encontramos é a que se estabeleceu entre Constituições ortodoxas e ecléticas. Essa classificação é muito importante para o que temos trabalhado nos Tomos I e II do Curso de Direito Constitucional quando abordamos os paradigmas constitu-cionais dos estados liberal, socialista e social (e o totalitarismo social fascista de extrema-direita).
Podemos dizer que tomando o texto constitucional como base para essa análise (e é obvio que o texto é base para a construção inter¬pre¬tativa adequada aos valores localizados no tempo e no espaço), é possível facilmente encontrarmos elementos que indicam o caráter fechado de um texto constitucional liberal e socialista, uma vez que este se limita a uma ideologia fechada, de um lado puramente liberal, no qual encontramos referência apenas a direitos individuais como direitos contra o estado e direitos políticos de votar e ser votado como a essência da democracia e, do outro lado, (socialista) a primazia dos direitos sociais e econômicos como direitos de implementação imediata e a limitação expressa dos direitos individuais e políticos como estratégia de transformação da sociedade para a conquista da liberdade.
Portanto, ortodoxos seriam textos que delimitam um modelo econômico e social específico, limitando, portanto, a atuação do governo na definição de suas políticas sócioeconômicas. Quanto mais fechado o texto, menor o espaço de definição de políticas de governo.
Importante notar que, embora o texto tenha caráter liberal ou socialista, sua aplicação à realidade sócioeconômica, à construção jurisprudencial diante da complexidade da sociedade e dos valores mutáveis na história das culturas, pode fazer com que a Constituição (que não é texto, mas, sim, interpretação do texto) passe a ter no mundo da vida uma compreensão não mais ortodoxa, embora o seu texto, descontextualizado da sua história possa indicar isto, numa leitura afastada da jurisprudência.
A partir dessa compreensão (atualizada) da classificação proposta, o Estado social (modelo eclético) não seria um modelo eclético pelo simples fato de combinar contribuições, no texto, dos dois outros modelos, uma vez que é possível perceber claramente a influência dos movimentos políticos e sociais da época na constituição desse tipo de Estado. A principal diferença do Estado social em relação aos modelos ortodoxos seria a maior possibilidade de definição das políticas públicas sociais e econômicas do governo, em um leque de ações que varia de ações liberalizantes (mas não liberais) até ações socializantes (e não socialistas). Dessa forma, as típicas Constituições sociais (que marcam o capitalismo social intervencionista ou a social-democracia européia pós-Segunda Guerra), tem um grau de variação de modelos constitucionais muito maior, abrigando modelos de Constituições socializantes mais fechados ou mais abertos, com modelos liberalizantes (mais fechados ou mais abertos) e modelos constitucionais abertos que permitem a adoção de políticas públicas sociais e econômicas que tenham um grau de variação muito grande, uma vez que a Constituição, embora adote uma ordem econômica e social (como é típico das Constituições sociais), constrói esse modelo permitindo alto grau de mobilidade das políticas públicas adotadas pelos os governos.
2 CONSTITUIÇÃO ANALÍTICA E SINTÉTICA
A classificação entre Constituição analítica e Constituição sintética pertence a outro tempo do Direito Constitucional, mas pode ser atualizada. Em um paradigma constitucional no qual havia um grande apego ao texto, as Constituições sintéticas seriam aquelas pequenas, ou seja, compreendendo a Constituição como texto, as Constituições sintéticas teriam um texto pequeno, com poucos artigos, enquanto as Constituições analíticas teria texto detalhado, com diversos artigos, parágrafos, incisos e alíneas. A pergunta que devemos nos fazer é de como compreender essa classificação nos paradigmas contemporâneos.
Sabemos que a Constituição não é texto, mas, sim, compreensão do texto, e que a compreensão do texto muda quando os valores de uma sociedade mudam. Portanto, a dimensão do texto não corresponde à dimensão da Constituição. Poderíamos, mesmo, afirmar que a dimensão do texto é inversa à dimensão da Constituição, os seja, quanto mais detalhado o texto, menor o espaço para interpretação e, portanto, menor a Constituição, enquanto, de outro lado, quanto menor o texto (mais sintético) maior a possibilidade de mudanças na sua interpretação (compreensão) e, portanto, maior o espaço de mudança não formal da Constituição e, portanto, maior a Constituição.
Vamos explicar melhor o parágrafo anterior. É comum encontrarmos afirmações bastantes equivocadas como a de que a Constituição norte-americana é pequena com apenas 7 artigos e 27 emendas ou que a Inglaterra (leia-se Reino Unido) não tem Constituição ou não tem Constituição escrita. Quanto ao caso inglês, estudaremos o equivoco em outro momento. Entretanto, quando alguns constitucionalistas com tradição positivista reducionista afirmam que a Constituição dos Estados Unidos da América é pequena (por ser sintética com texto pequeno) cometem um grande equivoco. A norma não é texto, mas uma construção interpretativa que, diante do caso concreto, constrói a solução justa (a norma justa) para o caso concreto, partindo do sistema lógico integral do ordenamento jurídico-positivo que contém regras e princípios. Dessa forma, quanto mais sintético o texto, maior o espaço para mudanças interpretativas. Essa afirmativa se fortalece quando lembramos a diferença entre regra e principio. Enquanto as regras se aplicam a situações específicas tendo um enunciado mais detalhado e um grau de abrangência menor (regulam situações específicas) os princípios têm um enunciado genérico, são abrangentes e aplicam-se ao maior número de situações possíveis, sendo, portanto, palavras cheias de sentido. Palavras como liberdade, igualdade e soberania ganham sentidos diferentes em culturas diferentes (geográfico) e em momentos históricos diferentes (tempo). Portanto, à medida que mudam os valores da sociedade (geográfica e temporalmente localizadas), muda o conceito (significado) atribuído ao princípio (significante). Assim, quanto menor o texto, menor o detalhamento e menor o número de regras em relação aos princípios. Um texto principiológico é, muito mais suscetível a mutações interpretativas.
Tendo em vista essa compreensão, podemos estabelecer uma relação entre texto e compreensão. Quanto menor o texto, maior a possibilidade de mutações interpretativas e, portanto, maior a Constituição e, ao contrário, quanto maior o texto, mais regras, maior o detalhamento, menor o espaço de mutações interpretativas. Entretanto, tanto em um caso como no outro, as mudanças interpretativas decorrentes das mudanças do mundo da vida sempre e inevitavelmente existirão.
Resumindo este tópico, quanto menor o texto (sintético) maior a Constituição, pois maior as possibilidades interpretativas decorrentes do maior número de princípios em detrimento das regras. Ao contrário, os textos longos (analíticos) limitam as mutações interpretativas, uma vez que trazem um excesso de regras e, portanto, de detalha¬mentos, que devem ser respeitados para preservar a segurança constitucional, uma vez que não podemos ignorar o texto, mesmo sabendo que se trata de um sistema de significantes, sujeito a interpretações do seu sentido.
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