terça-feira, 5 de outubro de 2010

74- Teoria da Constituição 22 - Autopoiesis

HERMENÊUTICA
CONSTITUCIONAL


Jose Luiz Quadros de Magalhães


4 UM PRESSUPOSTO: A AUTOPOIÉSIS É UMA CONDIÇÃO HUMANA

Um pressuposto fático e não apenas teórico é a condição de que, enquanto vivos, estarmos condenados a autopoiésis. Somos necessariamente, como seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos e essa condição se manifesta também nos sistemas sociais e jurídicos.
Dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela,13 biólogos, trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na biologia resgatam a idéia de auto-referência que se aplica para toda a ciência.14
Estudando a aparelho ótico de seres vivos,15 os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua, quando era lançada para pegar uma presa, ia também na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.
A partir dessa simples experiência, temos uma conclusão que pode ser absolutamente óbvia, mas que, entretanto, foi ignorada pelas ciências durante séculos, ciências que buscavam um verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.
O fato é que entre nós e o mundo existe, sempre, nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma dessas lentes.
Assim, para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado que é capaz de perceber cores e uma série de coisas, mas que não é capaz de perceber outras, ou por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.
Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim, quando estamos deprimidos, percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e a interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes ou quando tomamos drogas como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por essa condição química. Cada vez que recordamos um fato, essa condição influencia nossa lembrança. Daí a dificuldade de contar com provas testemunhais em processos judiciais ou administrativos, especialmente quando o depoimento ocorre muito tempo depois do fato. Um mesmo fato presenciado por diversas pessoas será descrito de maneira diferente por cada uma das testemunhas. A percepção diferente do mesmo fato ocorre, uma vez que cada observador é um mundo, um sistema auto-referencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim, podemos dizer que outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo são nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros. Aproximando-se do campo do Direito, temos a cultura, que traduz uma série de círculos sistêmicos, que parte do mais estreito (espacialmente falando) no qual há uma maior sintonia fina para os mais amplos. Assim, somos influenciados em nossa percepção do mundo pelos valores e pré-compreensões decorrentes da cultura de nossa família, nossa cidade, nossa região, nosso país, nosso continente, assim como compartilhamos algumas compreensões universais. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim, o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos que dificilmente são universalizáveis.
Chegando ao campo do Direito, quando procuramos entender uma Constituição e um sistema legal de outro Estado nacional, de outra cultura e história, enfrentaremos os problemas de diferentes compreensões e percepções do mundo, especialmente quando tratamos de princípios, palavras cheias de sentido, que se localizam, por isso, geograficamente e historicamente. Ao lermos o texto de uma Constituição vamos deparar com palavras como liberdade, igualdade, soberania, etc. Quando lemos o texto vamos atribuir o sentido a essas palavras, de nossa cultura, de nosso conhecimento e compreensão do mundo, entretanto essa não será a compreensão dessas palavras para o sistema jurídico estudado. Para nos aproximarmos do sentido do texto para aquele sistema jurídico, temos de buscar sua compreensão nos julgados, nas decisões judiciais que interpretam o texto naquele sistema.
Somos seres autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reprodutivos), e não há como fugir desse fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Somos a dimensão de nosso mundo.
A linguagem e a série de conceitos que ela traduz constituem nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado.
Assim, não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades científicas absolutas, pois é impossível separar o observador do observado.16 Daí existirão tantas verdades quanto observadores existirem. Esse universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, às intolerâncias. A compreensão da autopoiésis significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo à tolerância, à relatividade, à compreensão e à busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia. Entretanto, um problema fundamental se coloca para o Direito, o qual abordaremos a seguir: é necessário construir mecanismo de interpretação jurídica que ofereça o mínimo de segurança possível e desejável, em que o grau de relatividade seja controlado. Deve existir um mínimo de previsibilidade na inevitável relatividade. Lembremos que a tentativa de eliminar a relatividade na busca da previsibilidade pode levar ao absolutismo, ao totalitarismo ou, no mínimo, ao autoritarismo, gerando sempre injustiça.

Um comentário:

  1. Muito bom, professor!!!!
    O mais difícil, muitas vezes, é reconhecer a qualidade de autopoiético daqueles que não pensam como nós! Tentar não uniformizar o outro é um grande desafio.

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