segunda-feira, 23 de maio de 2011

388- Direitos Humanos 46 - Democracia e autoritarismo

1 DEMOCRACIA E AUTORITARISMO



JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES



A doutrina classifica normalmente duas tendências opostas de regimes políticos na atualidade: os regimes democráticos e os regimes autoritários: “Os regimes autocráticos, autoritários ou monocráticos caracterizam-se pelo poder político de uma única pessoa. Outro ponto para apreciá-los é o relativo à origem dos governantes e dos órgãos constitucionais, desde que a escolha dos governantes não é obra dos governados.”37

Há um problema em relação a essa classificação clássica, uma vez que nem todos estão de acordo quanto à conceituação de democracia: “As democracias ocidentais permanecem fiéis ao individualismo, ao passo que as populares afirmam que também asseguram a liberdade, mas colocando os determinismos sociais em primeiro lugar.”38

Podemos dizer que, com a afirmação do Estado Social e Democrático, as democracias ocidentais, com algumas exceções, e entre elas os Estados Unidos da América do Norte, vêm abandonando o individualismo; ao mesmo tempo, algumas democracias populares européias vêm concedendo um maior espaço para o campo de ação individual. Trata-se de uma revisão crítica do individualismo, como também do socialismo estatizante, que levou a distorções, como o individualismo egoísta liberal e o socialismo massificador e estatal, comprometendo os dois modelos de democracia, uma vez que a democracia baseada no individualismo nos Estados Unidos gerou o artificialismo do bipartidarismo ocasionado por um baixo índice de participação popular e por uma perseguição feroz aos partidos de esquerda na década de 50. De outro lado, o partido único, como estrutura deixou uma parcela da sociedade sem representatividade, censurando-se qualquer voz dissonante, o que não impediu a revisão do regime, impulsionada pelos problemas econômicos.

Apesar de antagônicos, o modelo individualista de democracia norte-americana e o modelo estatizante de democracia popular soviética possuem pontos comuns: a eleição indireta do Executivo, o controle pelo “grupo” dominante dos meios de comunicação social (enquanto na União Soviética, os meios de comunicação de massa são estatizados e controlados não pela sociedade, mas por uma burocracia, nos Estados Unidos eles são controlados por uma elite econômica que também controla o Poder Estatal); e, finalmente, a inexistência de uma opção política diferente daquela que se encontra no poder, representada pelo bipartidarismo norte-americano e pelo partido único soviético.

Diferença fundamental entre esses dois modelos de “democracias” é a ênfase aos direitos sociais no modelo de democracia popular, em detrimento dos direitos individuais extremamente comprometidos, enquanto que, no modelo individualista, encontra-se o exercício dos direitos individuais, no qual a existência dos direitos sociais depende de uma economia forte e em ascensão, amparada em uma ordem econômica estruturada sobre a exploração do Terceiro Mundo.

Para evitar esse confronto entre o modelo de democracia “ocidental”, que pode ser mais individualista ou mais socializante, e o modelo de “democracias populares”, Juan Ferrando Badia classifica três grandes sistemas políticos atuais como o democrático, o social-marxista e o autoritário:



a) A democracia clássica liberal tem como fim essencial aperfeiçoar a já existente liberdade baseada no sufrágio universal, no equilíbrio de poderes, no pluralismo de partidos, no autogoverno e na supremacia da lei (é necessário compreender que será dentro deste modelo de democracia com ênfase aos direitos individuais e ausência de preocupação social do Estado que se desenvolve a democracia em direção a uma democracia social, com a crise e superação da democracia liberal, que implica o oferecimento de direitos sociais, e na democracia econômica, sendo a partir de então campo fértil para afirmação dos Direitos Humanos).39

b) O sistema social-marxista, no qual se estabelecem três fases para se chegar a uma democracia marxista, onde o homem será livre, uma vez liberado da exploração e de sua subordinação às forças da natureza: a ditadura do proletariado, o socialismo e o comunismo ou fase superior. Na fase da ditadura do proletariado e socialista se concebe a liberdade exclusivamente como a participação de cada cidadão na construção do comunismo, não tendo sentido falar em liberdades de resistência nem de limitações aos governantes. Na fase final do comunismo, o problema das limitações ao poder dos governantes não existe, uma vez que na sociedade comunista o Estado e os governantes não existirão mais. Estaremos, portanto, diante de uma democracia total, de autogestão social integral.40

c) O sistema autoritário, especialmente em suas versões do fascismo e nacionalismo, foi a melhor prova das transformações que sofre a teoria individualista das liberdades públicas.

Os regimes autoritários partem do pressuposto da inevitável inferioridade das massas em relação às elites políticas e especialmente em relação ao chefe portador de excepcionais qualidades.41



Giuseppe de Vergottini acrescenta que o Estado autoritário surgiu para fazer frente ao comunismo ou às formas estatais progressistas. Sua finalidade é a de manter situações de desigualdade social e econômica e frear os movimentos de reivindicações de igualdade e as formas difusas de participação política.42 O regime autoritário, que se afirmou nas décadas de 60 e 70, em países latino-americanos como o Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Chile, dentre outros, é, sem dúvida, o pior campo para a existência dos Direitos Humanos, pois não existe respeito a nenhum dos grupos de direitos, sejam individuais, sociais, políticos ou econômicos.

Portanto, neste estudo dos sistemas políticos, podemos notar que no atual estágio de evolução dos sistemas políticos o que melhor apresenta condições para o desenvolvimento dos Direitos Humanos é a democracia social, que reúne elementos do liberalismo – ao assegurar as liberdades fundamentais – e do socialismo – ao assegurar os direitos sociais, democracia econômica e política. E é a partir desse modelo que, aperfeiçoado, chegaremos a modelos mais democráticos e participativos de sociedades.

A democracia liberal clássica se mostrou ineficaz, posto que, ao respeitar as liberdades individuais ignorando os direitos sociais, inviabilizou o exercício dessas liberdades para grande parte da população. O sistema marxista-social nos seus dois primeiros estágios de evolução dá ênfase aos direitos sociais e econômicos, não havendo, entretanto, o pleno exercício dos direitos individuais. Sem dúvida que, ao atingir o terceiro estágio estaríamos diante da realização de todos os direitos da pessoa, o que, entretanto, parece utópico no atual estágio da evolução humana.

Retornando, portanto, à democracia social, vamos recorrer a Juan Ferrando Badia, que ressalta a importância do sistema de democracia social que surge do impacto da crítica marxista ao liberalismo e da pressão operária. Foi a partir desse momento que as democracias políticas se foram transformando em democracias sociais, e em alguns casos, que ainda são poucos, houve também a aceitação de certos princípios de democracia econômica.43

Com essas modificações essenciais do capitalismo surgiu o que se pode chamar de capitalismo social, com a fusão de princípios liberais com princípios socialistas e o aparecimento dos regimes social-democráticos, mudando o panorama inicial da crítica marxista, sendo possível o surgimento de tendências conciliadoras leste-oeste,44 o que vem se confirmando na década de 90. Este entendimento, que parece ser possível, deve-se às mudanças da democracia ocidental, que incorpora muito do socialismo, como também uma autocrítica do sistema social-marxista, que passa a modificar determinadas posições em relação às liberdades individuais entre os neo-socialistas europeus.

Ao trabalharmos, portanto, com o sistema político democrático social, devemos atentar para as graves distorções que ele apresenta, para que se possa aperfeiçoá-lo até um modelo totalmente democrático da sociedade. É ameaça constante a esse modelo a ausência de democracia econômica, especialmente a de uma gestão democrática dos meios de comunicação social. Essa ameaça pode ser notada na existência do autoritarismo estatal na realidade, contrapondo-se a uma democracia social delineada na Constituição. A realidade dos fatos se sobrepõe à realidade constitucional, amparada nos meios de controle da opinião pública, chegando ao que Luis Sanches Agesta chama de “forma autônoma de governo” baseada no carisma de um líder:



“En el horizonte político contemporaneo ha adquirido un reliéve extraordinario una nueva fundamentación del poder de autoridad que exalta la personalidad concreta de um jefe. Este concepto reconoce fáciles precedentes históricos, y hasta cierto punto puede considerarse como una forma de gobierno autónoma, si bien con las limitaciones que resultan de sus proprios caracteres.”45



A diferença fundamental desses líderes carismáticos na atualidade é que eles não necessitam amparar-se em um aparato militar repressivo, mas sim, especialmente, na propaganda divulgada pelos meios de comunicação de massa condicionantes do comportamento e das consciências. Tudo isso pode fazer parecer que um sistema autoritário tenha a aparência de uma democracia.

Procuramos colocar neste item do nosso trabalho a importância do estudo dos regimes e sistemas políticos para os Direitos Humanos. O exercício dos direitos políticos depende do sistema político adotado, com todas as implicações que envolvem essa questão. Nesse sentido é que podemos afirmar que, assim como os direitos políticos, como conteúdo dos Direitos Humanos, são essenciais para os direitos individuais, sociais e econômicos, o pleno exercício das liberdades individuais, dos direitos sociais e a existência de uma democracia econômica são garantia de efetivação dos direitos políticos.

É o mesmo que dizer: para o exercício dos direitos políticos de forma consciente é necessária a liberdade da livre formação da consciência e da liberdade de expressão (direitos individuais), que dependem do direito social à educação (formação da consciência), o qual, por sua vez, depende de uma democracia econômica através de uma distribuição equilibrada de riquezas, evitando a ameaça constante que os privilégios econômicos e o egoísmo representam para a democracia.

Isso posto, vamos estudar os direitos políticos conforme estes são colocados pelas Constituições.



CITAÇÕES



37 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Regimes políticos, cit., p. 249.

38 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Regimes políticos, cit., p. 249; HAMON, Léo. Mort des dictatures? Paris: Económica, 1982; FERNANDO BADIA, J. (Coord.) Regimenes políticos actuales. Madri: Tecnos, 1985.

39 FERNANDO BADIA, Juan. Democracia frente a autocracia. Los grandes sistemas políticos (El democrático el social-marxista y el autoritario). Madrid: Tecnos, 1989, p. 51.

40 FERNANDO BADIA, Juan. Democracia frente a autocracia. Los grandes sistemas políticos (El democrático el social-marxista y el autoritario, cit., p. 57-58.

41 VERGOTTINI, Giuseppe de. Derecho constitucional comparado. Madrid: Espasa-Calpe, 1983, p. 116.

42 FERNANDO BADIA, Juan. Democracia frente a autocracia. Los grandes sistemas políticos (El democrático el social-marxista y el autoritario), cit., p. 55-56.

43 FERNANDO BADIA, Juan. Democracia frente a autocracia. Los grandes sistemas políticos (El democrático el social-marxista y el autoritario), cit., p. 80.

44 FERNANDO BADIA, Juan. Democracia frente a autocracia. Los grandes sistemas políticos (El democrático el social-marxista y el autoritario), cit., p. 81.

45 SANCHEZ AGESTA, Luis. Princípios de teoria política. 3. ed., rev., Madrid: Nacional, 1970, p. 389.

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