domingo, 15 de maio de 2011

357- Direitos Humanos 36 - Direito Econômico e Direitos Humanos

2 DIREITO ECONÔMICO E DIREITOS HUMANOS



José Luiz Quadros de Magalhães



Já vimos que não basta a norma ter um conteúdo econômico para que seja uma norma de Direito Econômico:

“O modo de tratar esse conteúdo econômico – aplicando-lhe normas próprias, destacando-lhe regras igualmente próprias e que estejam comprometidas com a regulamentação jurídica da política econômica, condicionando-a aos princípios ideológicos constitucionalmente adotados – este sim, é o seu traço diferencial.”14

Nessas afirmações podemos perceber o importante papel do Direito Econômico como instrumento de concretização dos direitos sociais. Esse ramo do Direito regulamenta juridicamente a política econômica que deve estar sujeita à ideologia constitucionalmente adotada; portanto, em uma Constituição que, como a de 1988, estabelece como princípios fundamentais o respeito à dignidade humana, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e regionais, a prevalência dos Direitos Humanos, o Direito Econômico se transforma em importante e fundamental mecanismo de transformação da realidade econômica e social, através de uma política econômica adequada aos princípios constitucionais citados.

Temos, então, no conceito de Direito Econômico, os elementos necessários que permitem visualizar com facilidade sua relação com os outros grupos de direitos que compõem os Direitos Humanos na sua perspectiva constitucional.

Em uma ordem jurídica em que os Direitos Humanos são colocados como princípios fundamentais e objetivo do Estado, a ideologia constitucionalmente adotada aponta na direção de um Estado que proporcione o bem-estar social, oferecendo e respeitando os direitos sociais e individuais, através de uma política econômica que valorize, em primeiro lugar, esses objetivos sociais. Podemos então utilizar o importante conceito de “economicidade” do Prof. Washington Albino, para afirmar que o valor maior constante em um texto constitucional como o nosso é o ser humano, sendo, portanto, este o objetivo de qualquer política econômica adotada pelo Estado.

Nesse instante utilizamos então dois institutos do Direito Econômico necessários para a realização desses Direitos Humanos: o instituto da repartição e o da intervenção, que veremos detalhadamente a seguir.

Antes, no entanto, vamos fazer outra observação. Quando falamos em política econômica adotada pelo Estado e quando ressaltamos o instituto da intervenção como fundamental para os Direitos Humanos, queremos confirmar o que já foi demonstrado na parte destinada à evolução histórica dos Direitos Humanos. O Estado Liberal não intervencionista deixou a miséria social se alastrar, e a sua simples garantia formal das liberdades fundamentais nada representava na prática, uma vez que não existiam meios materiais para que o ser humano pudesse utilizar essa sua liberdade, ou seja: o Estado Liberal pode formalmente garantir a liberdade de consciência, entretanto nunca conseguiu que uma boa parcela da população pudesse realmente usufruir desta liberdade, uma vez que grande parte dessa mesma população não tinha acesso à educação, à informação e à cultura.

Esse problema só pôde ser solucionado pelo Estado Social de Direito, no qual os princípios do Socialismo foram somados a princípios do liberalismo político, enquanto o Estado passava também a controlar a economia através de maior ou menor intervenção.

A idéia do laissez-faire, laissez-passez jamais funcionou. Já no final do século XIX, enquanto os Estados Unidos começavam a criar as primeiras leis do controle da economia, ao mesmo tempo a iniciativa privada norte-americana encontrava meios de as burlar, até presenciarmos hoje a acumulação final e radical, que transforma o discurso da livre concorrência e livre iniciativa em discurso falso altamente ideologizado e adotado pela grande mídia para atingir os objetivos do grande capital global.

Para que o neoliberalismo sobreviva e os países ricos mantenham e exponham suas conquistas industriais, tecnológicas, as economia periféricas têm de pagar um alto preço, abastecendo o mercado internacional, antes somente com matéria-prima barata, hoje também com mão-de-obra, recursos públicos, infra-estrutura e energia baratas, para as empresas globais, que por sua vez produzem para o consumo de ilhas de bem-estar social, a baixo custo e alto lucro, remetendo para suas matrizes o capital acumulado no Terceiro Mundo, estendendo o desemprego a todos os lugares.

Por tais motivos, cremos que o Estado Social de Direito soberano, intervencionista, no sentido de planejar e dirigir a economia para o bem-estar social, seja o espaço ideal para o desenvolvimento dos Direitos Humanos, o que, entretanto, nos parece pouco provável de prosperar, com a sua crise e o gigantesco crescimento do capital privado global. As empresas globais têm, em geral, capital superior aos recursos da esmagadora maioria dos Estados nacionais. Uma alternativa pode ser o poder local, o que abordamos em outra obra.15

Isso posto, citamos uma breve passagem do livro do Prof. Washington Albino, que trata da realidade econômica como objeto do Direito Econômico:

“Temos portanto, a realidade econômica como seu objeto mais próximo e ainda não peculiar. Esta peculiaridade decorre da sua visão mais ampla na participação que recebeu da ação dos indivíduos e do Estado, tomada do ângulo de pretensões mais altas, como seja o desenvolvimento, ou dos interesses mais legítimos por uma qualidade de vida melhor, como a decorrência dos controles dos preços, dos freios jurídicos sobre os efeitos da concentração das empresas, das conseqüências dos monopólios e outras formas de abuso de poder econômico; ou, por outro lado, da garantia de oportunidades de emprego, da política salarial, de mais justa distribuição de renda, do tratamento dos efeitos da política monetária, dos frutos da política de estímulos, de planejamento, e assim por diante.”16

Nessa passagem, vemos a íntima relação necessária entre o Direito Econômico e os direitos sociais e individuais, cujos tópicos vamos analisar:

a) Melhor qualidade de vida ” através da modificação da realidade, econômica, significa o acesso de toda a população a direitos sociais fundamentais que compõem os Direitos Humanos, como saúde, habitação, lazer, transporte, educação, trabalho, etc.;

b) “Freios jurídicos sobre os efeitos da concentração das empresas, das conseqüências dos monopólios e outras formas de abuso do poder econômico” significa que, através destes mecanismos do Direito Econômico, poderão ser proporcionados os direitos sociais fundamentais que compõem os Direitos Humanos, como, por exemplo, o trabalho, pois, coibindo-se o monopólio, temos o aumento do poder de compra do salário (direito do trabalho – salário justo) e o acesso a bens de consumo de primeira necessidade;

c) “garantia de oportunidades de emprego, da política salarial e mais justa distribuição de renda, do tratamento dos efeitos da política monetária, dos frutos da política de estímulos, do planejamento” têm o mesmo significado para os Direitos Humanos que o item anterior, fornecendo, o Direito Econômico, o instrumental necessário para que se possam obter os meios (direitos sociais) para que o indivíduo possa realmente ser livre (direitos individuais).



3 O INSTITUTO DA INTERVENÇÃO



Quando utilizamos os vocábulos instituição e instituto, queremos dizer que o conceito de instituição deverá ser compreendido como um conjunto de regras, preceitos ou normas, enquanto que instituto jurídico significa um conjunto de normas reguladoras ou disciplinadoras de construções culturais de natureza jurídica.

Quanto ao termo intervenção, o seu principal sentido empregado para o Direito é o da intervenção do Estado do domínio econômico.

Nas palavras do Prof. Washington Peluso Albino de Souza, deve-se salientar um importante ponto no estágio atual do pensamento jurídico sobre a intervenção: é o daqueles que antepõem os planos ao sistema legislativo tradicional. O planejamento é uma das técnicas de intervenção:

“Esse dualismo composto da legislação sobre assuntos econômicos, de um lado, e plano do outro, embora tenha aumentado as discussões quanto à natureza da Lei do Plano, suscita novas considerações sobre a política e a administração econômica.”17

Deve-se ressaltar ainda que, com a evolução dos estudos sobre a matéria, começa a esboçar-se uma diferença entre a intervenção do Estado no domínio e na vida econômica, e a intervenção dos poderes públicos nesse mesmo setor da vida social. Portanto, temos, de um lado, o Estado criando normas, esgotando sua função na aplicação dos princípios regulamentares; nesse caso, é o Estado que intervém na economia, criando regras para o seu planejamento. De outro lado,

“quando o Estado pratica o ato econômico, seja diretamente, seja por meio dos organismos criados para a administração indireta, submete-se, como qualquer sujeito privado de ato econômico, às normas que o Direito regulamentar lhe impõe. Neste caso, temos bastante diferenciada a ação dos Poderes Públicos na vida econômica”.18

Com os problemas causados pela “concentração capitalista” o Estado moderno criou rotas e caminhos jurídicos para sua função diante desses problemas. Já vimos que após a Primeira Guerra Mundial

“configurou-se um intervencionismo social baseado na liberdade material e que pôde ser identificado em uma forma conservadora e outra reformista, a primeira voltada para a proteção de certos privilégios e nível de vida de certas classes sociais, enquanto a segunda pretendia levar os benefícios sociais aos grupos menos aquinhoados”.19

Este é o marco onde encontramos pontos de contatos fundamentais com os Direitos Humanos já referidos anteriormente e que nos levaram a fazer uma análise, em separado, desse instituto da intervenção. É a partir do momento que o Estado passa a intervir na economia, com um valor superior e diverso do valor encontrado no liberalismo, que apontava somente para o lucro, que começamos a visualizar com clareza a importância desse instituto para o Direitos Humanos, porque o valor do Estado é o bem-estar social, e é em nome do bem-estar social, da distribuição de rendas e dos direitos sociais que o Estado deve intervir na economia.

Temos, então, que a intervenção no domínio econômico por parte do Estado pode ser um instrumento, um mecanismo eficaz para a concretização dos Direitos Humanos.

O Prof. Washington Peluso Albino de Souza nos mostra mais uma vez notar a íntima relação entre o instituto da intervenção e os direitos sociais fundamentais, componentes dos Direitos Humanos:

“O discurso de 1934 (Constituição Brasileira de 1934) foi, desta forma, inovador em todos os sentidos. Se a estrutura modificou-se pela adoção de um ‘ordenamento’ econômico dentro da ordem jurídico-política do discurso constitucional amplo, também com referência ao sentido material, à essência, a mensagem foi completamente nova.

Começa por introduzir ‘os princípios’ da Justiça Social e das necessidades da vida nacional, de que possibilite a todos ‘existência digna’, ao lado de garantir a ‘liberdade econômica dentro de tais limites’. Estes são os elementos fundamentais da ‘organização da ordem econômica’.20

Pode-se notar, portanto, que a intervenção visa ou deve visar ao bem-estar social, à garantia de direitos sociais e de direitos individuais, e de maneira indireta dos direitos políticos, quando, por exemplo, se evita a concentração econômica dos meios de comunicação social.

4 O INSTITUTO DA REPARTIÇÃO

O instituto da repartição é, sem dúvida, outro importante mecanismo oferecido pelo Direito Econômico para o fornecimento de meios materiais de concretização dos Direitos Humanos e libertação do ser humano. Muitos são os autores que colocam como principal sentido do Direito Econômico a busca de Justiça Distributiva: “Isto significa que o Instituto da Repartição seria o mais importante de todos quantos compõem o seu objeto de estudo e regulamentações.”21

Em primeiro lugar, devemos salientar que, assim como os Direitos Humanos, no Direito Econômico está presente a característica de síntese, uma vez que interesses individuais devem se entrosar com interesses coletivos. É o que vimos acontecer nos Direitos Humanos, quando afirmamos não existirem direitos individuais para todos sem a existência dos direitos sociais, e vice-versa, e que a integração desses dois grupos, amparados por uma política econômica compatível e baseada na democracia, resulta nos Direitos Humanos indivisíveis.

A contradição entre os direitos individuais e sociais se faz sentir de forma mais forte no direito de propriedade tido, no Estado Liberal – como direito individual fundamental – que era intocável. O que ocorria, então, é que esse direito era exercido por poucos, enquanto que a grande maioria ficava apenas com a declaração formal na Constituição de que este era um seu direito fundamental.

O Estado Social, e ao mesmo tempo o Estado Socialista, de forma diferente, através de uma intervenção estatal na propriedade privada e em nome de direitos sociais, deu um destino social à propriedade. No Estado Social, as Constituições Sociais enfrentaram esse desafio da contradição interna do direito individual à propriedade privada, uma vez que era assegurado a todos, mas apenas alguns o possuíam de fato. Era necessário, pois, repartir, para que todos tivessem acesso a este direito, e da mesma forma acabar com o uso egoísta da propriedade, sujeitando esse direito a uma função social.

Aqui começamos a perceber outro ponto de contato importante entre os Direitos Humanos (que asseguram também o direito à propriedade de forma limitada, uma vez que está obrigada a cumprir uma função social) e o Direito Econômico. A passagem que reproduziremos a seguir, de autoria do Prof. Washington Peluso Albino de Souza, é muito esclarecedora:

“É interessante notar-se que o ‘fato econômico’ repartição é concebido sobre princípios jurídicos e, mais especialmente, sobre o direito de propriedade. Decorre da condição de se atribuir a cada componente da sociedade uma parte da riqueza criada, de modo a que se possa exercer a sua vida, desde o íntimo limite da sobrevivência até as mais altas manifestações da qualidade desta vida.

A Ciência Econômica oferece-nos, a respeito, os instrumentos para se fazer chegar a cada cidadão uma parcela de riqueza criada, ou, como se usa exprimir em jargão economista, a sua fatia no bolo, sendo este formado pelo Produto Global obtido.”22

Deve-se atentar para o fato de que não descartamos a hipótese de se ter acesso à propriedade por meios coletivos, o que significa, em certo sentido, uma satisfação individual de um direito, se não entendermos coletivismo como massificação e, ao mesmo tempo, individualismo como egoísmo (ou seja, no sentido liberal). Já tratamos dos limites à propriedade no capítulo referente aos direitos individuais, quando estudamos um direito econômico fundamental com a reforma agrária: o direito à terra.

É aí que o instituto da repartição se aproxima da ideologia constitucionalmente adotada. Descartamos durante todo o trabalho o modelo liberal puro, como eficaz para proporcionar o florescimento dos Direitos Humanos. Da mesma forma, quando nos referimos ao Estado Social, referimo-nos àqueles que têm em suas Constituições a convivência de princípios do socialismo com princípios liberais. Entendemos que a aplicação desses princípios na prática oferece resultados diversos dos dois modelos puros. Há uma diferença essencial entre o modelo proposto de Estado Social e Democrático para a prática que, enquanto de um lado pode apontar para uma nova resultante, em que as contradições apontem para um novo modelo, de outro lado pode apenas significar um neoliberalismo, que nada mais é do que o discurso liberal com uma prática capitalista conservadora.

Essa relação entre o instituto da repartição e a ideologia adotada é importante. No capitalismo liberal,

“quem participa de algum modo de formação do produto, também não tem condições de receber a sua fatia dentro do sistema. Daí decorrem os grave problemas do desemprego, do poder aquisitivo dos salários, das taxas de juros, do arrendamento ou dos aluguéis e todos os outros dados incidentes sobre o custeio do padrão ou do nível de vida.”23

Em outros regimes, especialmente no socialismo, os dados acima sofrem modificações, tendendo a desaparecer as formas de ganhos sem trabalho. “Em qualquer destes prismas, porém, a questão da ideologia da repartição mostra-se fundamental e responsável por todas as formas sincréticas e mistas refletidas nos textos Constitucionais.”24

O instituto da repartição passa por questões como a renda (ou ganho sem trabalho), a questão do salário (direito social fundamental assegurado no Constituição), do lucro, dos juros, devendo-se analisá-las sempre tendo em vista a política econômica e, obviamente, a ideologia adotada na Constituição.

CITAÇÕES:

14 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito econômico, cit., p. 11.

15 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O poder municipal: paradigmas para o Estado Constitucional, cit.

16 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito econômico, cit., 11-12.

17 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito econômico, cit., p. 400.

18 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito econômico, cit., p. 401.

19 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito econômico, cit., p. 407.

20 SOUZA, Washington Peluso Albino de. O discurso intervencionista nas Constituições brasileiras. Cadernos de Direito Econômico, São Paulo, n. 1, p. 170, 1983.

21 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras linhas de direito econômico, cit., p. 345.

22 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito econômico, cit., p. 573.

23 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito econômico, cit., p. 576.

24 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito econômico, cit., p. 577

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