TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 1991. AS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E CITAÇÕES DE TODOS OS TEXTOS DESTA SÉRIE SERÃO PUBLICADAS AO FINAL.
5.2.8 Propriedade privada
José Luiz Quadros de Magalhães
A propriedade privada foi tema de debate e preocupação de muitos, durante séculos. Platão, em seu livro A república prevê a propriedade comum entre os membros escolhidos de sua República Ideal.92
O Cristianismo, durante a Idade Média, oferecer uma rigorosa denúncia “a propósito da preocupação obcecante do homem com os bens materiais”.93
Os pensadores iluministas, que deram o sustentáculo ideológico à Revolução Francesa (1789) e à Revolução Norte-Americana (1776), colocaram a propriedade privada como direito individual fundamental.
O liberal Charles Tocqueville (1805-1859) dividia em duas as concepções progressistas do Estado. Uma é a concepção liberal, que pressupõe a correlação entre a propriedade e a liberdade; a outra, a concepção democrática pela qual a liberdade vai se basear na igualdade jurídica. Essa corrente democrática, que se afirmou com Robespierre, na Revolução Francesa, foi a derrotada da história da Europa.94
Daí, a propriedade privada no Estado Liberal é a base da liberdade. A propriedade privada é um direito individual fundamental absoluto, intocável. É a afirmação do laissez-faire, laissez-passer: “Sua essência há de esgotar-se numa missão de inteiro alheamento e ausência de iniciativa social”.95
Dessa forma, o “liberalismo clássico corresponde ao Estado Liberal, que traduzia o pensamento econômico do laissez-faire, laissez-passer, deixou aos cidadãos a possibilidade do exercício de livre concorrência, de modo que o egoísmo de cada um ajudasse a melhoria do todo”.96
No entanto, esse liberalismo utópico do século XVIII, que afirma a neutralidade do Poder Público diante dos problemas sociais, conduziu os povos livres a um capitalismo absorvente, desumano e escravizador. A sociedade fica reduzida a uma comunidade de “cidadãos teoricamente livres e materialmente escravizados”, conforme a expressão de Thierry Maulnier. Os desajustamentos e as misérias sociais que a revolução industrial suscitou, o liberalismo deixou alastrar em proporções crescentes e incontroláveis, são retratadas com fidelidade pela Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, em 1891.97
No início do século XX surge o constitucionalismo social e o Estado Social, marcados pela Constituição do México de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. O Prof. José Alfredo de Oliveira Baracho ensina que as Constituições que vieram após a Primeira Guerra Mundial não se preocuparam apenas com a estrutura política do Estado, mas reconheceram o direito e o dever do Estado em garantir a todos uma existência digna. “Aos direitos absolutos da Declaração de 1789 contrapõem-se limitações, decorrentes das superiores exigências da coletividade”.98
Entre as limitações aos direitos individuais, antes absolutos, surge a limitação da propriedade privada pelos interesses da coletividade. Aparecem em nível de norma constitucional a função social da propriedade e a desapropriação por interesse social.
No Direito Constitucional brasileiro, o interesse social como fundamento da desapropriação só foi reconhecido a partir da Constituição de 1946.
A Constituição de 1988 trata da propriedade privada em diversos dispositivos, a saber: no art. 5º, inciso XXII, garante o direito de propriedade como um direito individual fundamental, e nos incisos XXIII, XXIV, XXV, XXVII, a e b, XXVIII e XXIX, que estabelecem as limitações ao exercício deste direito.
O inciso XXIII determina que a propriedade não é um direito absoluto, encontrando limites nos interesses da sociedade, e que deverá atender a uma função social. A função social da propriedade urbana está prevista no art. 182, § 2º, e será cumprida quando a propriedade atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressas no plano diretor. A função social de propriedade rural está prevista no art. 186, e é cumprida quando a propriedade rural atende simultaneamente aos requisitos de aproveitamento racional e adequado da terra, ou, em outras palavras, à produtividade, à utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, à observância das disposições que regulam as relações de trabalho, e à exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
O inciso XXIV determina que a lei deverá estabelecer procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro. Ainda por interesse social, para fins de reforma agrária, nesse caso, nos termos do art. 184, haverá uma indenização prévia e justa em títulos da dívida agrária, com cláusula da preservação do valor real, resgatáveis no prazo de vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, excetuando-se dessa hipótese as benfeitorias úteis e necessárias, que serão indenizadas em dinheiro.
O inciso XXV determina que, em caso de perigo público iminente, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior.
Os incisos XXVII, XXVIII e XXIX tratam do direito autoral de obras individuais e coletivas, seus limites temporais a serem estabelecidos em lei, a proteção à reprodução de voz humana e imagem, inclusive nas atividades desportivas, a fiscalização do aproveitamento econômico das obras, além da proteção do direito dos autores de inventos industriais, seus limites temporais, e à propriedade de marcas, nomes de empresas e outros signos distintivos.
O inciso XXVI oferece uma garantia à propriedade rural trabalhada pela família, que não poderá ser objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes da sua atividade produtiva, enquanto o inciso XXX garante o direito de herança.
Voltando ao Título VII da Constituição Brasileira, o Capítulo I trata dos princípios gerais da atividade econômica. O art. 170 determina que a ordem econômica será fundada na valorização do trabalho humano, na liberdade de iniciativa, observando o princípio da propriedade privada, no inciso II do artigo. É a opção da Magna Carta pela propriedade privada dos meios de produção, confirmada pelo art. 173, que dispõe: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou há relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.
A Constituição norte-americana não faz referência expressa à garantia do direito de propriedade, nem quanto a possíveis intervenções na propriedade para desapropriação por qualquer fundamento. Apenas na Emenda n. IV encontramos a afirmação de que é inviolável a pessoa, casa, papéis e haveres contra buscas e apreensões irrazoáveis.
A Constituição da União Soviética estabelecia no art. 10 que “a base do sistema econômico da URSS é a propriedade socialista dos meios de produção, sob a forma de propriedade estatal (de todo o povo) e de propriedade colcoziano-cooperativa”.99
O artigo do texto soviético estabelece que
“a propriedade do Estado é patrimônio comum de todo o Povo Soviético, constituindo a forma básica da propriedade socialista [...] “são propriedade exclusiva do Estado: a terra, o subsolo, as águas e as florestas. Pertencem ao Estado os meios de produção fundamentais na indústria, na construção e na agricultura, os meios de transporte e comunicação, os bancos, os bens das empresas comerciais, comunitárias e outras organizadas pelo Estado, a parte fundamental do fundo habitacional urbano, assim como outros bens indispensáveis à realização das tarefas do Estado”.
A propriedade privada, portanto, praticamente inexiste, como direito individual fundamental, limitando-se ao art. 13, que dispõe:
“A base da propriedade pessoal dos cidadãos da URSS é constituída pelos rendimentos provenientes do trabalho. Podem ser propriedade pessoal os objetos de uso, consumo e comodidade pessoa, os bens que fazem parte da economia doméstica auxiliar, a casa de habitação e as economias provenientes do trabalho. A propriedade pessoal dos cidadãos e o respectivo direito de herança são protegidos pelo Estado”.
Os cidadãos podem usufruir parcelas do terreno, concedidas de acordo com as regras estabelecidas na lei, para fins de economia auxiliar (incluindo a criação de gado e de aves), para fruticultura e horticultura, bem como para a construção de casas de habitação individual. É dever dos cidadãos utilizar de modo racional as parcelas de terreno que lhe são concedidas. O Estado e os colcozes prestam assistência aos cidadãos no aproveitamento das respectivas economias auxiliares. Os bens que sejam objeto de propriedade ou usufruto pessoal não devem servir para obter rendimentos que não provenham do trabalho e não podem ser utilizados em detrimento dos interesses da sociedade.100
A Constituição da antiga Alemanha Oriental fazia restrições semelhantes àquelas encontradas na Constituição da URSS, à propriedade privada nos arts. 12 a 16, fazendo uma referência à propriedade individual no art. 11:
“1 – São garantidos aos cidadãos a propriedade pessoal e o direito à herança.
A propriedade prevista destina-se à satisfação das necessidades materiais e culturais do cidadão.
2 – Os direitos do autor e do inventor estão sob a proteção do Estado Socialista.
3 – O uso da propriedade e o gozo dos direitos do autor e do inventor não devem causar prejuízo aos interesses da sociedade”.101
A Constituição de Portugal assegura o direito à propriedade privada não junto a outros direitos individuais, mas no Título III, referente aos “Direitos e Deveres Econômicos, Sociais e Culturais”:
“Art. 62
1 – A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte nos termos da Constituição.
2 – A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e, fora dos casos previstos na Constituição, mediante pagamento de justa indenização”.
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