HISTÓRIAS DO PRIMEIRO DE MAIO!
Virgílio de Mattos (1)
Antes de maio de 1977 eu não tinha nunca ouvido falar dela. O nome com o qual se apresentava era “Maria do Carmo” e me lembro que achei isso engraçado porque havia uma igreja no bairro que eu morava, até então, com aquele nome e onde se dizia que Maria era a mãe do dono. Ri por dentro daquela maluquice e tomamos o ônibus próximo à estátua de Borba Gato, em Santo Amaro, onde havia sido marcado o ponto com ela.
Pareceu-me fazer certo sentido que aquela Maria do Carmo (qualquer que fosse o nome dela de verdade, porque naquela época todo mundo tinha um nome de guerra, afinal, estávamos mesmo em guerra), no fundo, no fundo, fosse do pessoal que chamávamos pejorativamente de “igrejeros”, assim mesmo, com essa pronúncia.
Eu era um garoto mais interessado na parte militar (para derrotar os militares, agora percebo a contradição em que estava metido e não conseguia enxergar) da coisa do que propriamente em fazer o trabalho de massas, que era o que estava indo fazer com aquela desconhecida, sacolejando dentro de um ônibus velho e cheio de trabalhadores cansados, voltando pra casa àquela hora. Mais distantes da Revolução do que eu estava de um emprego fixo em alguma fábrica de São Bernardo do Campo.
Obviamente que os bigodes e os cabelos, muito negros àquela época, a enorme bolsa de couro em que havia de tudo (inclusive e sobretudo muita esperança) e a indefectível cara de menino chamavam a atenção e destoavam no que eu heroicamente pensava ser um trabalho importante. E era.
Passadas mais de duas horas sacolejando dentro do ônibus agora quase vazio, ela disse alegre: vamos descer aqui, e sem puxar a cordinha que dava o sinal de parada, fez um assovio muito fino com a língua curvada sobre ela mesma. Eu quase soltei uma gargalhada e o ônibus parou no meio do nada.
Tentei ficar firme naquele ermo e ela disse, decidida; “Vamos subir”. E subimos um morro que parecia não ter mais fim. Ela ainda zombou do meu cansaço: Ué, como é que quer ser quadro militar sem preparo físico? Você tem que se cuidar mais, camarada...
Entre a falta de ar e a dor na batata das pernas e na sola dos pés ainda encontrei, puto, forças pra grunir: Tem razão. Tenho que fazer autocrítica...
E ela rindo e me desarmando: É, autocrítica é sempre bom, mas tá te faltando é disciplina e exercício de marcha.
Calei a boca envergonhado e acredito que ela não tenha me visto, naquela escuridão danada, balançando a cabeça em sinal de aprovação e envergonhada concordância.
Quando chegamos onde devíamos chegar e fizemos o que tínhamos que fazer, uma comemoração muito alegre, logo depois da meia-noite, envolveu a todos, parecia uma final de campeonato, com todos se abraçando, rindo muito e cantando - obviamente que a canção não poderia ser outra - A INTERNACIONAL.
Nunca mais a vi.
Voltei àquele lugar no ano seguinte, com outras pessoas e em 1979 também, a anistia parcial, recíproca e restrita seria promulgada em agosto. Estávamos todos esperançosos. Eu pensava na reconstrução das entidades estudantis e, se me apertassem, diria convicto que a Revolução viria já no próximo semestre, antes mesmo do Congresso de Reconstrução da UNE.
Mas naquele 1º de maio de 1977, qualquer que seja o nome verdadeiro de Maria do Carmo, lembro de uma lição importantíssima, das várias que me deu em pouquíssimo tempo: “Nós não podemos nunca deixar de comemorar o primeiro de maio, nem que seja escondido”.
E eu fico pensando, passados quase 35 anos: É PRECISO FAZER COM QUE TODOS OS DIAS SEJAM DIAS DOS TRABALHADORES!
É difícil termos um dia só pra nós e os outros 364 serem dias do capital.
Afinal, aquele garoto de 1977 passou muito susto enquanto dizia convicto, na verdade na falta de uma palavra de ordem que produzisse mais impacto:
PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO: UNÍ-VOS!
- Do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Do Fórum Mineiro de Saúde Mental. Autor de Crime e Psiquiatria – Preliminares para a Desconstrução das Medidas de Segurança, A visibilidade do Invisível e De uniforme diferente – o livro das agentes, dentre outros. Advogado criminalista. virgilio@portugalemattos.com.br
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