PARA CITAR: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder Municipal, paradigmas para o estado constitucional brasileiro, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1997, pp. 109-112.
11.1 A autonomia das universidades
O tema é tratado com precisão e clareza no livro da Professora Nina Ranieri, Autonomia Universitária, publicado pela Edusp, ao qual remetemos o leitor para conhecimento do tema de forma aprofundada.[1] O livro faz uma análise histórica da evolução da autonomia das universidades, estuda o conceito de autonomia, levanta toda a legislação brasileira sobre o assunto, interpretando a Constituição brasileira de 1988 e conclui pela autoaplicabilidades do art. 207, com o que concordamos.
A proposta de regulamentação da autonomia das universidades por lei orgânica das universidades, feita pelo Colégio de Procuradores-Gerais das IFES, parte do pressuposto de que a autonomia das universidades, assim como a autonomia conferida ao Ministério Público, necessariamente desvincula essas instituições do governo, assim como de qualquer dos Poderes da União, neste caso específico, ou dos Estados e Municípios, 'se nesta esfera se construir a autonomia universitária.
A desvinculação do governo é obvia, pois, ao considerarmos as autonomias constitucionais das Universidades e do Ministério Público, como de garantia do exercício e de continuidade do processo democrático, tais instituições, cada uma cumprindo a sua função específica, devem ter liberdade de organização e de gestão, principalmente de gestão financeira, para garantir efetivamente a democracia contra intervenções indevidas de governos autoritários, que ganham na América Latina, hoje, contornos bem mais sofisticados que anteriormente, porque construídos sobre uma aparente capa democrática de eleições periódicas.
Dessa forma, o Ministério Público deve, com autonomia, fiscalizar o respeito e o cumprimento das leis e da Constituição pelos Estados e seus vários órgãos da administração direta, indireta e fundacional, fiscalizando também a atuação e o respeito ao ordenamento jurídico por parte dos Poderes Judiciário e Legislativo. Estas são as atuais funções constitucionais desse importante órgão, que na Constituição de 1988 transformou-se em um guardião da cidadania, deixando de ter definitivamente aquela feição de órgão que advoga pelo governo. Essa função nem mesmo a Advocacia Geral da União pode ter, pois sua função constitucional é defender os interesses do Estado, observando o ordenamento constitucional vigente, não podendo ser utilizada para prejudicar os cidadãos em nome de interesses governamentais, pois não são os advogados da União, advogados dos governantes. A utilização do processo como mecanismo de simples retardamento do acesso das pessoas ao seu direito, deve ser ação repelida com veemência pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público, com punição dos responsáveis.
Dentro do mesmo conceito de garantia democrática, mas obviamente nas suas funções específicas, as universidades receberam da Constituição de 1988 autonomia financeira, administrativa e didático-científica, sendo este dispositivo vigente e aplicável.
Entretanto, na prática não vem sendo respeitado pelo governo, através do seu Ministério da Educação e do Desporto, e o Ministério de Administração e Reforma do Estado, que na gestão do Ministro Bresser Pereira, no ano de 1995, cometeu as mais variadas ilegalidades, utilizando sistemas centralizados de computação, o já mencionado SIAPE, para controlar e cortar direitos dos servidores das universidades. Fatos importantes, que apontaram para a utilização da máquina estatal de forma autoritária, ocorreram naquele ano como já mencionado, onde o governo, simplesmente, ignorou claro dispositivo constitucional, como o da autonomia universitária.
Esses fatos mostram a grande distância que separa a Constituição escrita do Brasil, da sua Constituição real.
Por momentos podemos visualizar vários textos constitucionais no Brasil. Convivendo, lado a lado, temos a Constituição para o governo, que, distante do Texto de 1988, permite ações governamentais constantemente não democráticas, a Constituição para o Poder Judiciário que muitas vezes prorroga uma importante interpretação constitucional para o momento adequado, fazendo uni processo de mutação do Texto, que por vezes atende ao interesse público e por vezes ao interesse do governo, e uma dura Constituição real para a maior parte da população que, ao contrário do que prescreve o Texto escrito e interpretado pelos juristas, não tem direito à saúde, à educação, ao trabalho, à justa remuneração e a outros direitos elencados pelo constitucionalismo atual.
Por esse motivo, as universidades federais, além de defenderem publicamente a autoaplicabilidade do art. 207, diante da impossibilidade fática do exercício de sua autonomia, passaram a trabalhar projeto de autonomia por meio de uma lei complementar, que a exemplo do Ministério Público estabeleceria as bases do funcionamento dessas instituições numa lei orgânica das universidades.
Entendendo serem as universidades brasileiras as primeiras instituições atingidas quando da restrição à democracia ou à evolução do seu permanente processo, elas querem assegurar o seu importante papel de garantidoras da produção de saber plural.
A proposta de lei orgânica é importante para ilustrar e fundamentar a idéia que ora advogamos, não apenas para as universidades federais, mas para todo o ensino público de primeiro, segundo e terceiro graus, na União, nos Estados e nos Municípios, geridos por autonomias constitucionais que os desvinculem do governo.
Isto porque o ensino e a educação pública são básicos e essenciais para a democracia. São direitos que não podem estar vinculados à vontade de governantes e a políticas que os valorize ou desvalorize, e muito menos a promessas de cunho meramente eleitoral. Não se pode prometer que no governo, em certo momento, será permitido respirar ou comer, assim como não se pode prometer que no mesmo governo será oferecida educação ou saúde. Educação e saúde não podem mais ser políticas de governos, mas sim políticas estatais autogeridas por autonomias desvinculadas do governo e controladas diretamente pela população, que usufrui dos seus serviços públicos, através da figura de um ombudsman, ou um novo ouvidor, órgão com capacidade de postular a mudança de composição e de gestão das referidas autonomias.
A proposta de regulamentação da autonomia das universidades, sugere a criação de um órgão congregador das Instituições Federais de Ensino Superior, que irá coordenar as políticas educacionais, a repartição do recurso global recebido para o ensino superior entre as IFES, recurso global recebido que deverá estar vinculado à garantia de um valor mínimo estabelecido em relação à receita da União, uma vez que o funcionamento do ensino superior, básico que é para a democracia, não pode estar sujeito às negociações políticas no parlamento sem nenhuma garantia.
Quanto à organização do funcionamento das universidades, esta será feita por seus próprios regimentos internos e estatutos, que independerão de aprovação do MEC para serem aceitos como normas jurídicas válidas. É bom ressaltar que os limites de normatização do regimento e do estatuto das Instituições de Ensino Superior são os dispositivos da Constituição Federal, suas regras e princípios, não podendo nenhuma norma universitária conter dispositivos que contrariem os princípios democráticos que a instituição representa.
Esse modelo que se constrói na realidade brasileira, sustentado por mandamento constitucional, pode ser o ponto de partida para a construção de toda uma realidade educacional autônoma em todas as esferas da federação, controladas pelo Ministério Público, pela população, por intermédio das ouvidorias, e nas suas contas, pela população com o remédio processual da ação popular e através dos Tribunais de Contas com estrutura que lhes garanta a necessária autonomia em relação os poderes e órgãos que fiscaliza.
[1] 58 RANIERI, Nina. Autonomia universitária. São Paulo: Edusp, 1994; SOUZA, Paulo Renato de. Autonomia universitária - Iniciativa e Debate. São Paulo: Campinas, 1989; FERNANDEZ, Tomás Ramon. La autonomia universitária: ambite y limites. Madrid: Civitas, 1982; DURHAM, Eunice Ribeiro. Os desafios da autonomia universitária. São Paulo: Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da USP, Documento de Trabalho n. 2189; ESCRIBANO, Francisco de Borja Lopez-Jurado. La autonomía de las universidades como derecho fundamental: la construción del Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1991; DURHAM, Eunice Ribeiro. Os desafios da autonomia universitária. São Paulo: Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da USP, 1989.
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