domingo, 15 de janeiro de 2012

990- PODER MUNICIPAL 23 - Constituição sintética ou analítica?

PARA CITAR: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder Municipal, paradigmas para o estado constitucional brasileiro, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1997, pp. 163-168.

1. CONSTITUIÇÃO SINTÉTICA OU ANALÍTICA?

Ao se propor uma Constituição de princípios, em que a democracia como processo irá permitir as mudanças que as co­munidades locais, regionais e nacionais desejam, devemos ques­tionar, além do importante papel da interpretação normativa e o processo de mutação constitucional, que será visto mais adiante, qual a estrutura ideal dessa nova Constituição[1].  
O primeiro ponto dessa nova estrutura constitucional será a exteno do texto, discussão que em geral é tratada com a simplici­dade que o debate não permite, pois não se trata apenas de adotar uma Constituição pequena ou longa, uma vez que o debate da extensão do texto constitucional está relacionado, necessariamen­te, com a questão da sua interpretação e a lei é a interpretação que se faz dela, em um determinado contexto histórico, político, social e econômico, pela leitura sistemática do texto constitucional e das normas infraconstitucionais em relação a este.
Dessa forma, saberemos, ao final deste trabalho, até que ponto podemos, pelo processo de interpretação da Constituição, com a sua necesria inserção na situação histórica socioeconô­mica, possibilitar evolução interpretativa que rompa com leituras clientelistas e neoliberais desse Texto. Poderemos indicar, tam­bém, o modelo ideal de Constituição Democrática, em um texto que possibilite a consagração de um novo paradigma constitucio­nal, que, ao mesmo tempo que permita seguro processo de muta­ção, evite o retomo a modelos anteriores, menos democráticos.
Tradicionalmente tem-se dividido as Constituições em sintéticas e analíticas, no que se refere à extensão do texto. As­sim, texto sintético é aquele que se reduz às normas essenciais de organização e funcionamento do Estado, e ainda à declaração e as garantias de alguns direitos fundamentais.
 Ao contrário, Constituição analítica é aquela que, além das matérias a que nos referimos anteriormente, desenvolvidas com maior detalhamento, traz no seu texto regras que poderiam ser deixadas para normas infraconstitucionais, pois a perspectiva de permanência dessas normas é inferior à da norma tipicamente constitucional, que não pode nunca ser considerada imutável, uma vez que muda através de um processo apenas interpretativo, não passando pelo processo formal de alteração do texto constitucio­nal, por emenda ou revisão, mas que, de qualquer forma tem uma expectativa maior de sobrevivência do que uma norma que desce a um grau de especificidade muito grande, desaconselhando-se a sua inclusão no texto constitucional, principalmente em um texto em que o processo de alteração seja mais complexo, Caracterizando­ se uma Constituição rígida.
Portanto, alguns pontos específicos irão marcar a diferen­ça entre um texto sintético e um analítico, sendo característica deste último:
a) maior detalhamento das normas referentes à organiza­ção e ao funcionamento do Estado, presentes em todos os textos constitucionais contemporâneos;
b) maior relação de direitos fundamentais, com um maior detalhamento de suas garantias proces­suais, constitucionais e socioeconômicas;
c) inclusão de regras que, devido ao menor grau de abran­gência de seus efeitos e, conseqüentemente de maior especifi­cidade, tendem a uma menor permanência, exigindo o funciona­mento dos mecanismos formais de reforma da Constituição, uma vez que a mutação interpretativa pode encontrar maiores proble­mas para evoluir nos tribunais, pelo grande detalhamento do texto.
d) maior número de regras em sentido restrito (que regu­lam situações específicas), em relação a regras em sentido amplo (que se aplicam a várias situações diferentes), em uma Constitui­ção analítica.
Não é correto afirmar que as Constituições liberais eram sintéticas e que as Constituições sociais são analíticas. Sem dúvi­da alguma, com o surgimento, no início do século, de Constitui­ções que representam novo tipo de Estado, agora interventor no domínio econômico e assistencial, perante questões sociais[2], o conteúdo dessas Constituições foi ampliado, com um maior nú­mero de direitos fundamentais, com a inclusão de direitos sociais e econômicos, ao lado dos direitos individuais e políticos. Entre­tanto, é possível encontrar Constituições sociais (neoliberais em sentido amplo), bastante sintéticas assim como Constituições liberais, no passado, bastante detalhadas.
Outro ponto fundamental é a compreensão de que texto menor não significa uma constituição com conteúdo restrito, assim como texto grande não significa uma Constituição dotada de maior número temático. A preocupação que deve fundamen­tar a adoção de uma Constituição, analítica ou sintética, será o grau de importância que se quer oferecer aos processos informais de mudança dos textos constitucionais e aos processos formais de reforma.
Ao se adotar um texto constitucional com número maior de regras em sentido amplo (os princípios), mantendo-se número pequeno de normas em sentido restrito, isto deverá significar maior valorização dos processos informais de mudança do texto constitucional, permitindo, com isto, que a doutrina, e principal­mente a jurisprudência, dinamizada por uma população participativa e um Judiciário obrigatoriamente sensível à realida­de socioeconômica e as indicações democráticas dos cidadãos, faça a Constituição estar em constante processo de tranformação[3]. Dessa forma, a Constituição sintética, ao permitir uma maior participação do Judicrio e dos cidadãos na construção do texto constitucional, cria uma Constituição dinâmica, pois esta será composta do texto escrito e da interpretação que se faz dos princípios e regras em determinado momento histórico. Conclui­-se que não se pode conhecer a Constituição de um país apenas pela leitura de seu texto, mas é necessário, sempre, procurar, na jurisprudência e na doutrina, influência da vontade popular em um Estado Democrático, apreendendo o significado de seus princípios e regras em um dado momento histórico. Exemplo elucidativo do que viemos de analisar será a Constituição norte­americana de 1787, com apenas 26 emendas, mas que recebeu leituras bastante variadas em momentos históricos diferentes, fazendo que determinados autores afirmem a existência de múlti­plas interpretações constitucionais nos Estados Unidos, construídas em momentos históricos diferentes, por meio da sua compreensão flexibilizada e a necessária inserção de seus princí­pios em situações históricas distintas.
Uma Constituição analítica, quanto maior e mais detalhado for seu texto, menor será o espaço para os processos informais de mudança constitucional valorizando os processos formais de refor­ma constitucional e, conseqüentemente, de uma certa maneira, a mudança constitucional, através da democracia representativa, em processos lentos e difíceis (no caso de uma Constituição rígida).
O Brasil adotou uma Constituição analítica, que represen­tou um passo significativo, no início da construção de uma de­mocracia no país. A Constituição de 1988 traz um amplo leque de direitos fundamentais e de garantias de rias espécies, repre­sentando modelo de Constituição social que pode permitir a construção de um Estado efetivamente democrático.
Embora a interpretação do texto de 1988 permita o estabe­lecimento das bases de um novo modelo de Estado Democrático, no qual os direitos sociais e econômicos ganham uma perspecti­va de garantia socioeconômica, de exercício dos direitos indivi­duais e políticos, portanto enquanto pressupostos de implementa­ção dos direitos individuais e de uma democracia política, social e econômica, na perspectiva de indivisibilidade dos grupos de direitos individuais, sociais, políticos e econômicos, o caminho para a implementação desses pressupostos é longo, não passa apenas pela construção de uma interpretação do texto, mas efeti­vamente de mudança profunda na sociedade brasileira.[4]
Por esse motivo, este trabalho busca não apenas discutir o modelo atual, mas, de forma mais específica, estudar alternativas estruturais de organização estatal que incentivem essa mudança de postura na sociedade, criando-se mecanismos que envolvam a população na construção de seu futuro, chamando a população, constantemente, a opinar na transformação social, política e eco­nômica do espaço público.
Obviamente, o caminho de mudança da estrutura constitu­cional, adotando-se modelo descentralizado de exercício de po­der e nova perspectiva de tratamento constitucional dos direitos fundamentais, não é, também, caminho fácil, mas resta como opção a construção gradual de novas realidades estatais, através de processos formais e informais de reforma na Constituição, não se descartando, obviamente, nova ruptura com o ordenamento constitucional para a elaboração de uma nova Constituição que permita a consagração definitiva desse modelo.
Várias das questões levantadas neste trabalho necessitam de processos formais de reforma da Constituição, enquanto outras podem, efetivamente, ocorrer através de processos infor­mais de mutação do texto. O ponto central deste trabalho, que defende a desconstitucionalização da ordem econômica e soci­al, incluindo necessariamente a desconstitucionalização da pro­priedade privada dos meios de produção, coloca-nos um desa­fio, no sentido de sabermos se, para a consagração desse novo modelo, seria necessário rompimento com a Constituição, o que implicaria não apenas a atuação do poder constituinte deri­vado - o poder de reforma -, mas a necessidade de um novo poder constituinte originário (capaz de elaborar nova ordem constitucional de forma soberana).
No momento, concluímos que, pelo exposto neste tópico, uma Constituição sintética, que privilegie os princípios sobre as regras, em sentido restrito, possibilitando processos de constru­ção informal e democrática do texto constitucional, seria o mode­lo ideal para o Estado democrático que defendemos, reduzindo-­se as normas em sentido restrito, na Constituição Federal, àque­las que estabelecem o funcionamento e a competência dos órgãos e dos canais de participação democrática, deixando para a Cons­tituição Municipal o detalhamento da ordem econômica e social, nos limites estabelecidos pelos princípios do texto federal.


[1] BADIA, Juan Ferrando. Estrutura interna da la Constitución. Valencia: Tirand le Blanch, 1988; SORLI, Juan-Sebastian Piniella. Sistema de fuentes y bloque da constitucionalidad – Encrucijada de competencias, Barcelona: Bosch, 1994;FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. São Paulo; Saraiva, 1988; MACHADO JÚNIOR, Batista. Participação e descentralização – democratização e neutralidade na Constituição de 76. Coimbra: Almedina, 1982

[2] O modelo neoliberal em sentido amplo, pois mantém o núcleo do pensa­mento liberal de liberdade individual e garantia de propriedade privada como direito fundamental, passando a intervir na economia, para assegurar sua sobrevivência, assistindo ainda aos excluídos do mode­lo econômico, através de diversos direitos sociais, em graus diferentes de· intervenção e de preocupação social.
[3] SEGADO, Francisco Femandez. La jurisdición constitucional en España.Madrid: Dykinson, 1984. FOIX, Monserrat Cuchillo. Jueces y administración en el federalismo norteamericano (el control jurisdicional de Ia actuación administrativa). Madrid: Civitas, 1996; CHEVALIER, Jacques. L'Etat de droit. 2. ed., Paris: Montchrestien, 1994; ROYO, Javier Peres. Tribunal constitucional y division de poderes. Madrid: Tecnos, 1988. PEREIRA, Annio Celso Alves. Acesso ajustiça e direitos huma­nos: o problema no Brasil. Revista da Faculdade de Direito, n. 2, Univer­sidade do Rio de Janeiro, p. 123-134, 1994.

[4] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direitos humanos na ordem jurídica interna, cit.

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