Dois modelos disputam o futuro da China em 2012
Em meio à crise global e com a sucessão do atual líder Hu Jintao à vista, dois modelos disputarão o futuro no Congresso Geral do Partido Comunista, em novembro. No gigantesco município de Chonging, Bo Xilai (foto) encabeça um novo estatismo para lidar com a crescente desigualdade no país. Na usina exportadora chinesa, Guagndong, o secretário geral do PC, Wang Jiang, propõe um modelo liberal que aprofunde a abertura econômica e estimule a independência dos poderes. O artigo é de Marcelo Justo.
Marcelo Justo - Correspondente da Carta Maior em Londres
O pacto fáustico da China com a globalização – salários rebaixados e descomunal crescimento exportador – está atingindo seu limite em um ano político fundamental. Em meio à crise global e com a sucessão do atual líder Hu Jintao à vista, dois modelos disputarão o futuro no Congresso Geral do Partido Comunista, em novembro. No gigantesco município de Chonging, o populista Bo Xilai encabeça um novo estatismo para lidar com a crescente desigualdade de um país nominalmente comunista. Na usina exportadora chinesa, Guagndong, o secretário geral do PC, Wang Jiang, propõe um modelo liberal que aprofunde a abertura econômica e estimule a independência dos poderes.
Bo Xilai é a cabeça visível de uma “nova esquerda” que reivindica a mística igualitária do maoísmo e tem sua vitrine política em Chonging, um dos quatro municípios autônomos do país (juntamente com Pequim, Shangai e Tianjin). Com uma população de mais de 28 milhões de habitantes – equivalente á população da Venezuela, quase três vezes a da Bolívia e quase dez vezes a do Uruguai – Chonging é um microcosmo da China.
Em uma clara alusão a Adam Smith e a já célebre mão invisível do mercado, o modelo implementado por Bo Xilai foi apelidado de “terceira mão” (Di san zhi shou) pela intervenção do estado na marcha da economia e na distribuição de seus benefícios. Um conglomerado de empresas estatais e um esquema de subsídios para atrair o investimento estrangeiro resultaram em um assombroso crescimento anual de 16% que está financiando um ambicioso programa social em habitação, saúde e educação.
À esta terceira mão, Bo Xilai acrescentou duas campanhas que lhe deram grande popularidade não só em Chonging, mas no resto da China. Com mais de três mil prisões que incluíram juízes e membros do Partido Comunista, Bo Xilai desmembrou a poderosa máfia local e desferiu um duro golpe contra a corrupção partidária. Em uma tentativa de deixar clara sua marca ideológica, Bo Xilai acompanhou estas políticas com um chamado à mobilização social usando consignas e canções maoístas revolucionárias (“chang hong”) que desenterrou o traumático fantasma da Revolução Cultural dos anos 60. Segundo seus detratores, seu governo é um regresso ao autoritarismo arbitrário dos guardas vermelhos encoberto por uma retórica igualitária e populista.
No extremo oposto, encontra-se o modelo de Guangdong. A província, que concentra uma terça parte das exportações chinesas, foi o trampolim inicial da reforma pró-capitalista de Deng Xiao Ping nos anos 80. Segundo seus defensores, o modelo Guangdong é uma tentativa de estimular o crescimento de uma incipiente sociedade civil impulsionando eleições locais mais livres e incentivando a participação social com consultas públicas pela internet.
Em matéria econômica, o modelo privilegia a eficiência sobre a equidade: fazer a torta crescer antes de distribuí-la. Mas em um claro eco do debate público gerado pela crescente desigualdade na China, o secretário geral da província, Wan Yang, introduziu como objetivo de um plano de cinco anos lançado em janeiro de 2011, a realização da “felicidade” (“xingfu Guangdong”): este “xingfu”, vagamente definido, seria o resultado da política social.
As duas Chinas
Em um importante debate sobre os dois modelos realizado em Beijing e publicado em dezembro pelo Asia Centre e pelo Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR), a maioria dos funcionários e acadêmicos concordaram que a China se encontra em uma encruzilhada e que a própria legitimidade da Revolução e do Partido Comunista encontra-se em jogo.
O debate colocou em questão a existência de dois países. A costa leste, de Shangai e Guangdong, ponta de lança da abertura de Deng Xiao Ping nos anos 80, traz essas imagens de hiperdesenvolvimento capitalista que assombram todo o mundo. O interior do país, historicamente mais pobre, tem sido o foco da atenção desde que o Partido Comunista lançou, em 2000, um ambicioso programa de crescimento, batizado “Xibu Da Kaifa” (Grande Desenvolvimento do Oeste). Chonging faz parte desse segundo projeto. Mas os dois modelos em disputa representam as duas grandes matérias pendentes da Revolução: o déficit social e o déficit institucional.
Junto ao crescimento econômico espetacular das últimas décadas, a desigualdade deu um salto tal que o coeficiente Gini é hoje muito superior ao dos EUA. Há um abismo entre o festival luminoso das grandes cidades à noite e seus arranha-céus e as aldeias rurais, sem luz elétrica.
O mesmo abismo se percebe entre a vida dos 200 milhões de trabalhadores migrantes, na sua maioria camponeses, verdadeira coluna vertebral do milagre chinês, e os moradores permanentes das cidades. Enquanto os primeiros constituem uma nova subclasse que, em troca de trabalho nas grandes cidades, perdem o acesso à saúde, à educação e à moradia, só garantido para as pessoas que tem “houkou” (permissão de residência permanente), os segundos são os grandes beneficiários da abertura, formando uma nova classe média consumista.
No campo do estado de direito e da democracia a dívida é ainda mais pronunciada. Se atacar a pobreza faz parte da razão de ser do Partido Comunista, o campo dos direitos humanos nunca esteve entre suas prioridades e é um tema de eterna tensão com o Ocidente. Ninguém reivindica uma democracia multipartidária, mas o projeto Guangdong é uma tentativa de promover as ONG e uma maior independência do sistema judicial para formar uma sociedade civil e obter um equilíbrio de poderes entre uma tríade conformada pelo Partido Comunista, o mercado e a sociedade civil.
Quem ganhará?
Na China pós-Mao Tse Tung-Deng Xiao Ping, as decisões são tomadas por consenso entre os nove membros do Comitê Central do Partido Comunista e um grupo seleto de veterano que reúne ex-primeiro-ministros e figuras políticas relevantes. “No total, serão umas 20 pessoas que decidirão a conformação do novo secretariado geral”, explicou à Carta Maior François Goudemont, do ECBR, compilador da conferência de Beijing no ano passado.
Aparentemente, a sucessão da dupla formada pelo presidente Hu Jintao e o primeiro ministro Wen Jiabao já foi resolvida de forma salomônica. O atual vice-presidente Xi Jinping ocupará a presidência enquanto que o atual vice primeiro ministro Li Kegiang será o primeiro ministro: o primeiro mais pró-Chonging e i segundo mais pró-Guangdong.
A chave está na conformação do novo secretariado geral. No esquema de maior institucionalidade política da revolução, uma regra não escrita estabelece que os membros do Comitê Central se aposentam aos 70 anos. Isso implica que, além de Hu Jintao e Wen Jiabao, 5 dos atuais 9 membros serão substituídos. Um dos enigmas é se o ambicioso Bo Xilai assumirá o secretariado geral. “Se não o fizer agora, pela idade está descartado como futuro secretário geral. Se conseguir permanece na carreira e tudo depende do que aconteça depois”, observa Goudemont.
A favor de Bo Xilai está o fato de que o tema social é uma prioridade do Partido Comunista. Contra ele, está seu estilo populista e imprevisível e suas campanhas de purificação, que incomodaram muita gente em Beijing. Dependerá muito do que vai acontecer com a economia da China neste turbulento 2012. “O modelo de Bo Xilai depende da saúde do setor exportador. Dada a atual crise econômica, não há garantias a respeito. Mas seu apelo ao maoísmo apavorou muita gente. Ao mesmo tempo, se a crise econômica se aprofundar é possível que o PC cerre fileiras para evitar questionamentos políticos: isso impulsionaria mais seu modelo do que a proposta de abertura de Guangdong”, assinala Goudemont.
Tradução: Katarina Peixoto
Bo Xilai é a cabeça visível de uma “nova esquerda” que reivindica a mística igualitária do maoísmo e tem sua vitrine política em Chonging, um dos quatro municípios autônomos do país (juntamente com Pequim, Shangai e Tianjin). Com uma população de mais de 28 milhões de habitantes – equivalente á população da Venezuela, quase três vezes a da Bolívia e quase dez vezes a do Uruguai – Chonging é um microcosmo da China.
Em uma clara alusão a Adam Smith e a já célebre mão invisível do mercado, o modelo implementado por Bo Xilai foi apelidado de “terceira mão” (Di san zhi shou) pela intervenção do estado na marcha da economia e na distribuição de seus benefícios. Um conglomerado de empresas estatais e um esquema de subsídios para atrair o investimento estrangeiro resultaram em um assombroso crescimento anual de 16% que está financiando um ambicioso programa social em habitação, saúde e educação.
À esta terceira mão, Bo Xilai acrescentou duas campanhas que lhe deram grande popularidade não só em Chonging, mas no resto da China. Com mais de três mil prisões que incluíram juízes e membros do Partido Comunista, Bo Xilai desmembrou a poderosa máfia local e desferiu um duro golpe contra a corrupção partidária. Em uma tentativa de deixar clara sua marca ideológica, Bo Xilai acompanhou estas políticas com um chamado à mobilização social usando consignas e canções maoístas revolucionárias (“chang hong”) que desenterrou o traumático fantasma da Revolução Cultural dos anos 60. Segundo seus detratores, seu governo é um regresso ao autoritarismo arbitrário dos guardas vermelhos encoberto por uma retórica igualitária e populista.
No extremo oposto, encontra-se o modelo de Guangdong. A província, que concentra uma terça parte das exportações chinesas, foi o trampolim inicial da reforma pró-capitalista de Deng Xiao Ping nos anos 80. Segundo seus defensores, o modelo Guangdong é uma tentativa de estimular o crescimento de uma incipiente sociedade civil impulsionando eleições locais mais livres e incentivando a participação social com consultas públicas pela internet.
Em matéria econômica, o modelo privilegia a eficiência sobre a equidade: fazer a torta crescer antes de distribuí-la. Mas em um claro eco do debate público gerado pela crescente desigualdade na China, o secretário geral da província, Wan Yang, introduziu como objetivo de um plano de cinco anos lançado em janeiro de 2011, a realização da “felicidade” (“xingfu Guangdong”): este “xingfu”, vagamente definido, seria o resultado da política social.
As duas Chinas
Em um importante debate sobre os dois modelos realizado em Beijing e publicado em dezembro pelo Asia Centre e pelo Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR), a maioria dos funcionários e acadêmicos concordaram que a China se encontra em uma encruzilhada e que a própria legitimidade da Revolução e do Partido Comunista encontra-se em jogo.
O debate colocou em questão a existência de dois países. A costa leste, de Shangai e Guangdong, ponta de lança da abertura de Deng Xiao Ping nos anos 80, traz essas imagens de hiperdesenvolvimento capitalista que assombram todo o mundo. O interior do país, historicamente mais pobre, tem sido o foco da atenção desde que o Partido Comunista lançou, em 2000, um ambicioso programa de crescimento, batizado “Xibu Da Kaifa” (Grande Desenvolvimento do Oeste). Chonging faz parte desse segundo projeto. Mas os dois modelos em disputa representam as duas grandes matérias pendentes da Revolução: o déficit social e o déficit institucional.
Junto ao crescimento econômico espetacular das últimas décadas, a desigualdade deu um salto tal que o coeficiente Gini é hoje muito superior ao dos EUA. Há um abismo entre o festival luminoso das grandes cidades à noite e seus arranha-céus e as aldeias rurais, sem luz elétrica.
O mesmo abismo se percebe entre a vida dos 200 milhões de trabalhadores migrantes, na sua maioria camponeses, verdadeira coluna vertebral do milagre chinês, e os moradores permanentes das cidades. Enquanto os primeiros constituem uma nova subclasse que, em troca de trabalho nas grandes cidades, perdem o acesso à saúde, à educação e à moradia, só garantido para as pessoas que tem “houkou” (permissão de residência permanente), os segundos são os grandes beneficiários da abertura, formando uma nova classe média consumista.
No campo do estado de direito e da democracia a dívida é ainda mais pronunciada. Se atacar a pobreza faz parte da razão de ser do Partido Comunista, o campo dos direitos humanos nunca esteve entre suas prioridades e é um tema de eterna tensão com o Ocidente. Ninguém reivindica uma democracia multipartidária, mas o projeto Guangdong é uma tentativa de promover as ONG e uma maior independência do sistema judicial para formar uma sociedade civil e obter um equilíbrio de poderes entre uma tríade conformada pelo Partido Comunista, o mercado e a sociedade civil.
Quem ganhará?
Na China pós-Mao Tse Tung-Deng Xiao Ping, as decisões são tomadas por consenso entre os nove membros do Comitê Central do Partido Comunista e um grupo seleto de veterano que reúne ex-primeiro-ministros e figuras políticas relevantes. “No total, serão umas 20 pessoas que decidirão a conformação do novo secretariado geral”, explicou à Carta Maior François Goudemont, do ECBR, compilador da conferência de Beijing no ano passado.
Aparentemente, a sucessão da dupla formada pelo presidente Hu Jintao e o primeiro ministro Wen Jiabao já foi resolvida de forma salomônica. O atual vice-presidente Xi Jinping ocupará a presidência enquanto que o atual vice primeiro ministro Li Kegiang será o primeiro ministro: o primeiro mais pró-Chonging e i segundo mais pró-Guangdong.
A chave está na conformação do novo secretariado geral. No esquema de maior institucionalidade política da revolução, uma regra não escrita estabelece que os membros do Comitê Central se aposentam aos 70 anos. Isso implica que, além de Hu Jintao e Wen Jiabao, 5 dos atuais 9 membros serão substituídos. Um dos enigmas é se o ambicioso Bo Xilai assumirá o secretariado geral. “Se não o fizer agora, pela idade está descartado como futuro secretário geral. Se conseguir permanece na carreira e tudo depende do que aconteça depois”, observa Goudemont.
A favor de Bo Xilai está o fato de que o tema social é uma prioridade do Partido Comunista. Contra ele, está seu estilo populista e imprevisível e suas campanhas de purificação, que incomodaram muita gente em Beijing. Dependerá muito do que vai acontecer com a economia da China neste turbulento 2012. “O modelo de Bo Xilai depende da saúde do setor exportador. Dada a atual crise econômica, não há garantias a respeito. Mas seu apelo ao maoísmo apavorou muita gente. Ao mesmo tempo, se a crise econômica se aprofundar é possível que o PC cerre fileiras para evitar questionamentos políticos: isso impulsionaria mais seu modelo do que a proposta de abertura de Guangdong”, assinala Goudemont.
Tradução: Katarina Peixoto
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