segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

1002- PODER MUNICIPAL 27 - Constituição ortodoxa ou eclética?

PARA CITAR: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder Municipal, paradigmas para o estado constitucional brasileiro, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1997, pp. 174-176.


5. CONSTITUIÇÃO ORTODOXA OU ECLÉTICA?
Alguns autores adotaram essa classificação para identifi­car Constituições que se alinhavam a uma ideologia socioeconô­mica específica, negando outras influências, como as Constitui­ções socialistas e liberais, que podem ser consideradas ortodo­xas, e as Constituições que sofrem influências de mais de uma ideologia ou programa político, social e econômico, as quais são consideradas ecléticas[1].
Deve-se entender essa classificação sob uma perspectiva histórica, de formação das Constituições Sociais, que surgem no início do século, mais precisamente em 1917, no México, e em 1919, na Alemanha, fruto de processo histórico, quando, no século XIX, construiu-se e desenvolveu-se de forma marcante e ameaçadora, para a proposta liberal e o capitalismo, uma teoria antagônica, que, construída sobre bases científicas e uma crítica contundente ao capitalismo, foi capaz de arrebatar a classe trabalhadora de vários países. A existência de duas propostas de Estado radicalmente opostas fazia sugerir um ortodoxismo, no qual de um lado se colocava o liberalismo, ou mais precisamente o capitalismo, e de outro o socialismo real, que visava à construção de uma socieda­de comunista.
Pouco a pouco o mundo capitalista sentiu a necessidade de se adaptar à nova realidade histórica, para garantir sua sobrevivên­cia, passando o Estado Liberal a incorporar, na sua legislação infraconstitucional, parte das reivindicações socialistas, criando uma legislação previdenciária e trabalhista, admitindo, ainda, a intervenção do Estado no domínio econômico. Exemplo clássico é a lei Sherman de 1890, nos Estados Unidos da América do Norte[2].
O liberalismo mostrava contradições que só seriam supe­radas se fossem aceitas. O liberalismo que defendia a não-inter­venção do Estado, nas questões sociais e econômicas, só seria salvo a partir da intervenção estatal na economia e do ofereci­mento de direitos sociais, por intermédio de um assistencialismo estatal, que não era efetivamente a proposta socialista, mas sub­traía desta, elementos que atenuassem a tensão social.
Do ortodoxismo liberal, o Estado liberal transforma-se em modelos que podemos classificar de neoliberais, em sentido am­plo, dando origem ao Estado social ou social-liberal, que, em graus diferentes, irá intervir no domínio econômico e na questão social. A esse novo modelo de Estado social, pode-se atribuir caráter eclético, pois sua Constituição irá conter elementos de cada um dos dois sistemas que se contrapunham neste momento.
Uma Constituição eclética representa, portanto, texto que será fruto das reivindicações e pressões de grupos com interesses diferentes e muitas vezes opostos, dentro do Estado, interesses antagônicos que irão manifestar-se, com mais intensidade, quanto maior for o grau de participação da sociedade civil na elaborção constitucional.
Esse conflito de interesses reflete-se nas Constituições ecléticas, dando origem ao que podemos classificar como "apa­rentes antagonismos" no texto constitucional. Referimos-nos a aparentes antagonismos, pois o texto constitucional, após sua elaboração, tem vida própria, no sentido de que não estará sem­pre vinculado à vontade dos constituintes, pois receberá leitura sistemática e interpretativa, que irá, necessariamente, evoluir juntamente com a sociedade, com suas necessidades e expectati­vas, em um contexto histórico, buscando sempre uma síntese por intermédio de sua interpretação diante de situações concretas, que permitirá o desaparecimento de antagonismos que, afirmati­vamente, entre princípios e regras não pode existir.
Leitura obrigatória para a compreensão do que afirmamos é a obra do Professor Washington Peluso Albino de Souza, espe­cialmente quando o autor trabalha a importante idéia de ideolo­gia constitucionalmente adotada, já mencionada neste trabalho, e do princípio da economicidade[3]. Pelos ensinamentos do Mestre do Direito Econômico brasileiro, a Constituição tem ideologia própria, representada por valor-síntese, que irá apontar qual o correto equilíbrio valorativo para a aplicação dos princípios e regras constitucionais em situações diferentes. Com isto quere­mos dizer que, em situações diversas, os princípios terão valor e importância também múltiplas, sendo que esta correta pondera­ção, sobre qual princípio aplicar em determinada situação, será apontada pela ideologia constitucional. Tais ensinamentos são de extrema importância e atualidade.
Ao trabalharmos a ideia de uma Constituição democrática, sintética, rígida, escrita, codificada, em que seus princípios serão aqueles considerados universais, não existindo nenhuma vinculação com algum modelo socioeconômico -, o que implica a desconstitucionalização da propriedade privada dos meios de produção -, podemos perguntar se estaríamos diante de uma Constituição eclética ou ortodoxa.
A resposta a essa questão aponta-nos situação completa­mente nova, pois todas a Constituições, sejam ecléticas, como os textos sociais, neoliberais, ou ortodoxas, como os textos liberais e socialistas, estabelecem modelo constitucional de organização econômica e social.
Ao se retirar da Constituição a vinculação ao modelo pre­sentemente existente, estamos sem dúvida criando texto ortodoxo, extinguindo o ecletismo existente, que se manifesta, justamente, na convivência de princípios com origem em ideologias antagôni­cas e no próprio conflito social existente, presentes nas suas nor­mas de conteúdo político-econômico e social, que vêm recebendo interpretações diferentes pela doutrina e pelos tribunais.
Entretanto, a ortodoxia do texto caracterizar-se-ia não pela fidelidade a uma ideologia política, social ou econômica especí­fica, mas sim pela não-vinculação a nenhuma ideologia e nem mesmo a modelos sincréticos, mantendo a ortodoxia na opção por um sistema democrático capaz de criar procedimentos, me­canismos de garantia e variados canais de comunicação entre sociedade e Estado, fazendo aos poucos desaparecer a dicotomia Estado versus Sociedade.
Dessa forma, o texto ortodoxo, ao garantir uma democra­cia que se materializa em processos legitimadores de mudanças e na própria ação da sociedade, pela estrutura estatal, condiciona­dos por princípios universais de direitos humanos, irá consagrar, incentivar e mesmo possibilitar, por intermédio dos seus proces­sos participativos, o ecletismo na sociedade civil e no próprio Estado, como forma de promover a criação de resultantes inova­doras e construídas no embate democrático diário[4].


[1] RUSSOMANO, Rosah. Curso de direito constitucional. 3. ed. rev. ampl., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1978; BONAVIDES, Paulo. Direito consti­tucional. Rio de Janeiros: Forense, 1980. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo.
[2] GELLHORN, Ernest. Antitrust Iaw and economics; COITELY, Esteban.Teoria del derecho economico. Buenos Aires: Frigerio Artes Gráficas, 1971; CHENGT, Bemard. Organization economique de L'Etat. Paris, 1951; CHAMPAUD, Claude. Contribution à la definition du droit economique.Paris: Dalloz, 1967; MONCADA, Luis S. Cabral de. Direito econômico. Coimbra: Coimbra Editora, 1986; SOUZA, Washington Peluso Albmo de. O discurso mtervencionista nas Constituições Brasileras. Revista Brasileira de fnformação Legislativa, ano. 21, n. 81, p. 139­-201,jan/mar., 1984.
[3] SOUZA,Washington Peluso Albino de. Direito econômico. Op. cit.
[4] ZAMPETTI, Pier Luigi. La participación popular em el poder. Op. cit.

Nenhum comentário:

Postar um comentário