terça-feira, 17 de janeiro de 2012

1014- PODER MUNICIPAL 30 - A interpretação da Constituição

PARA CITAR: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder Municipal, paradigmas para o estado constitucional brasileiro, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1997, pp.184-187.


7.2 A interpretação da Constituição
            A interpretação legal é responsável pela criação da norma e sua evolução. Toda lei enseja interpretação, e o processo hermenêutico tem, sem dúvida, relevância superior ao próprio processo de elaboração legislativa, uma vez que será através da interpretação da lei que esta será aplicada e inserida dentro de um contexto fático específico, sendo adequada a toda uma realidade histórica e os valores dela decorrentes.
            A simplificação dos processos de aplicação da lei à reali­dade social é decorrente de práticas autoritárias e burocráticas em que a vontade do administrador, e os atos administrativos por ele praticados, tem por vezes maior importância do que a vontade constitucional.
Nesse sentido, uma passagem importante do livro de JoLamego[1], Hermenêutica e Jurispruncia:
"A hermenêutica rompe o hermetismo do universo dos signos, abrindo o texto e o discurso ao 'mundo'. Para a hermenêutica, o interprete não 'descodifica' apenas um sistema de signos, mas 'interpreta' um texto. Subjacente a este conjunto de idéias está a rejeição pela hermenêutica de uma concepção de linguagem com função meramente instrumental- a linguagem como 'signo' ou mera 'forma simbólica' - considerando-a, ao invés, como uma 'insti­tuição social' complexa. As expressões têm sentido ape­nas no contexto dos distintos jogos de linguagem, que são complexos de discurso e de ação. A aprendizagem de uma linguagem 'natural' implica a participação em práticas e a comparticipação de critérios que regem o seu desempenho. A 'gramática' da linguagem só poderá ser elucidada de 'dentro', a partir do conhecimento das re­gras constitutivas do 'jogo' e não mediante apelo a 'metalinguagens' .  Para Gadamer, a interpretação do texto equivale a um diálogo entre o autor e o intérprete sobre aquilo que no texto é mencionado. Nesse diálogo, o intérprete apropria se do discurso expresso no texto e prossegue a elaboração intelectiva do objecto feita pelo autor. Ao retomar a noção da hermenêutica de applicatio, Gadamer tem em vista a interpretação que constitui um aditamento de sentido: todo o acto de interpretação constitui um aditamento de sentido ao texto.[2]"
            O processo de interpretação de texto requer do interprete conhecimento de todo sistema constitucional, sua interpretação diante de uma dada realidade histórica, assim como uma leitura do dispositivo legal objeto de interpretação dentro de uma leitura sistemática do seu texto, inserida no ordenamento jurídico infra­constitucional e no ordenamento constitucional[3].
            Uma série de princípios e regras (normas) têm que ser de conhecimento do intérprete, assim como a correta relação entre estas normas, especialmente no que se refere à hierarquia e aos mecanismos de superação dos possíveis antagonismos entre princípios.
            Partindo das normas infraconstitucionais, fácil estabelecer uma hierarquia entre estas, quando, saindo de um ato administra­tivo normativo, passamos pela lei até chegar à Constituição. Numa federação, a hierarquia entre as normas elaboradas pelos diferentes entes federados só existirá quando se tratar de compe­tência legislativa concorrente, onde mais de um ente federado poderá legislar sobre a mesma matéria. Nos outros casos, não há que se falar nesse tipo de hierarquia, pois estaremos diante de competências exclusivas ou privativas, onde cada ente federado tem suas competências estabelecidas pela Constituição, não po­dendo um ente interferir na competência do outro ente federado. Regra que deve ser observada na interpretação das normas infra­constitucionais será a necessidade de se adequar a leitura dessas normas aos princípios, regras e à ideologia constitucionalmente adotada, sob pena de se inverter a: hierarquia das leis, em que a norma mais simples e inferior consegue eficácia que a Constitui­ção não consegue.
            O objetivo primeiro da interpretação deverá ser a criação de condições para que a norma interpretada tenha eficácia sempre no sentido da realização dos princípios e valores constitucionais e, principalmente, sempre, da ideologia constitucionalmente adotada.
            Esse direcionamento pode fazer diminuir a enorme distân­cia que muitas vezes ocorre entre a interpretação realizada pela jurisprudência e pela doutrina. De nada adianta a leitura de uma norma que venha a ser absolutamente inaplicável a uma realidade histórica que não mais comporta aquela interpretação, o que ocorre, por vezes, com o doutrinador, que em análises dissocia­das de situões concretas, cria normas impossíveis. Entretanto o oposto não pode ocorrer, que seria o interprete responsável pela aplicão da norma ao caso concreto, deixar de dar o seu correto direcionamento valorativo, oferecido pela Constituição e especi­almente pela ideologia adotada, fundamentando sua interpreta­ção em valores outros que não os consagrados pela Constituição (entenda-se Constituição como a sua interpretação construída democraticamente em um momento histórico).
            Em outro trecho do livro, José Lamego, ao traçar regras e critérios da Teoria da interpretação, observa:
            "Enquanto disciplina prática, a Jurisprudência dirigir-se-ia não ao conhecimento do 'objecto' Direito, mas seria um agir mediador na realização da 'possibilidade' do 'melhor Direito'. E, nesta conformidade, o Direito não seria sus­ceptível de ser definido em termos de propriedades descri­tivas (como sustenta o positivismo metodológico ou conceptual), mas comportaria uma dimensão de valor. A jurisprudência serviria, assim, à realização do 'justo'. [4]"
            Dworkin, denomina este “objeto”  Direito como sendo o Direito no seu estágio pré-interpretativo, podendo ser identificado segundo o critério positivista das fontes. O Direito no estágio pós-interpretativo é a realização da “pos­sibilidade” do “melhor direito”, nas circunstancias concretas. Dessa forma a interpretação é um agir mediador que visa não se perder em operações cognitivas e exegéticas, mas sim práticas de realização da possibilidade[5].
            Dworkin aproxima a interpretação jurídica e a interpreta­ção literária, estabelecendo um paralelo entre o escrever uma novela em que cada capítulo tem um autor diferente (chain novel) e a 'construção' do sentido das normas atra­vés das suas sucessivas concretizações. A acumulação dos capítulos precedentes estreita a margem de escolha do participante. A metáfora da novela por capítulos (chain novel) e a concepção do Direito como  “cadeia” (the chain of law) evoca uma idéia de coerência e racionalidade posicional, que reintegra o sentido dos episódios anterio­res e ajuda, assim, à construção do “texto”. A metáfora interpretativa é um novo fundamento para a concepção do Direito que Dworkin tem vindo a defender desde os seus escritos iniciais e que agora denomina de “integridade”. Sustenta que esta concepção reflete uma visão mais alargada do Direito.[6]"
            A questão que nos interessa diretamente neste momento do trabalho é a da interpretação da Constituição vislumbrando como se dá a relação entre suas regras e princípios. Em outras palavras, pergunta-se se há hierarquia entre as diversas normas constitucionais.
            O Professor Ivo Dantas, em trabalho sobre Princípios Constitucionais e interpretação, observa que, uma vez que o texto constitucional estabeleceu a divisão dos princípios em ge­rais e setoriais, poder-se-a estabelecer uma nova hierarquia entre esses princípios, colocando no ápice da pirâmide os princípios fundamentais, e abaixo os princípios gerais voltados para deter­minado setor na Constituição.
            Ao falar em hierarquia de normas constitucionais, essa hipótese poderá sugerir uma possível inconstitucionalidade de normas constitucionais, oriundas do poder constituinte originário (isto porque é perfeitamente possível falar-se em inconstitucio­nalidade de norma constitucional oriunda do poder constituinte derivado ou decorrente), tese com a qual não concordamos, pri­meiro porque os princípios constitucionais podem facilmente superar possíveis inconstitucionalidades de regras em sentido restrito, e em segundo lugar porque a ideologia constitucional­mente adotada, juntamente com o princípio da economicidade, ajuda-nos a superar qualquer antagonismo no texto.
            Dessa forma preferimos, no lugar de hierarquia, visualizamos nas normas constitucionais diversos graus de abrangên­cia, aos quais nos referimos anteriormente em classificação por nós adotada, onde poderíamos ainda acrescentar, conforme bem lembra o Professor Ivo Dantas, uma diferenciação entre os prin­cípios fundamentais e os princípios gerais setoriais. Temos, en­tão: a) regras em sentido restrito; b) regras deduzidas em sentido amplo; c) regras expressas em sentido amplo setoriais; d) regras expressas em sentido amplo fundamentais; e) ideologia constitu­cionalmente adotada.
            Esse conjunto de regras constitucionais se apresentam ao intérprete, que poderá, com os elementos oferecidos pela hermenêutica, adequá-las, sistematizá-las e inseri-las a na reali­dade social, política e econômica. Esse processo de interpretação não ocorrerá pela vontade de um intérprete, mas de vários intér­pretes, que, para a correta interpretação da vontade da Constitui­ção, e sua justa aplicação, deverão estar atentos às indicações advindas das aspirações populares adequadas aos valores do texto constitucional.
            Nessa constante tarefa de interpretação do texto constitu­cional para sua aplicação e transformação da realidade, ou, em sentido contrário, a transformação, ou a mutação do texto impos­ta pela realidade, o jurista irá trabalhar com regras que não têm hierarquia, mas sim graus de abrangência diferentes. Dessa for­ma, a interpretação de uma lei poderá ser bastante diferenciada em situações também diferentes, as quais, seguindo valores fun­damentais, princípios aplicáveis a uma situação não poderão ser usados em outra condição. Talvez o exemplo mais simples dessa situação esteja no direito constitucional à resistência, em que a desobediência passa a ser regra em substituição à obediência, o que ocorre em situações normais, nas quais deve-se obedecer as normas e os atos administrativos legais e constitucionais.
            Uma pergunta pode ficar para ser respondida neste mo­mento: será possível admitir a mutação do texto constitucional em tal profundidade que signifique a mudança da própria ideologia constitucional? Este é o questionamento que vem acompanhando todo este trabalho. O rompimento com os tipos constitu­cionais existentes, que aqui sugerimos, desvinculando a Consti­tuição de qualquer modelo socioeconômico, representa um rom­pimento com ideologias constitucionais específicas, em que sem­pre houve o estabelecimento de regras de conteúdo socioeco­mico, inclusive nas Constituições liberais nas quais a regra se limitava à o-intervenção na ordem econômica e social. Neste trabalho defendemos que essas normas de conteúdo econômico devem estar estabelecidas em normas infraconstitucionais, e ain­da nas Constituições municipais, no modelo brasileiro de federa­ção, reformulado, para permitir uma maior descentralização. Dessa forma, não estaria a Constituição Federal estabelecendo nenhum tipo de Constituição, seja liberal, socialista ou neoliberal, em que se adotam modelos socioeconômicos obriga­tórios para todos, mas sim uma Constituição que se restringiria a garantir os direitos e princípios universais, garantido mecanis­mos democráticos de participação popular, numa estrutura de Estado sensível as indicações da população, deixando que cada cidadão, na sua comunidade, decida sobre o seu futuro, sobre o modelo socioeconômico, no seu Município, sobre a forma de propriedade e o modelo de repartição econômica, encontrando como único limite a essa transformação democrática, os princípi­os de direitos humanos que possam ser considerados universais.
            Isto posto, mais uma vez concluímos que o adequado será uma nova Constituição que tenha as bases aqui sugeridas, pois, embora o processo de mutação possa, no nosso entendimento, modificar a própria ideologia constitucional, uma vez que os princípios são conceitos e esses são obviamente mutáveis como tudo, existem limites a esse processo de mutação conforme o grau de detalhamento do texto, sendo que o diploma de 1988, pela sua conformação analítica, implicaria diversos problemas de difícil superação.


[1] LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência. Lisboa: Fragmentos, 1990; VALDES, Jorge Tapia. Hermenêutica constitucional - La interpretación de Ia constitución en sudamerica. Chile: Juridica do Chile 1973; WOLFE, Christopher. La transformación de Ia interpretación constitucional. Madrid: Civitas, 1991.
[2] LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência, cit. p. 181-182.
[3] CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. 

[4] LAMEGO, José. Hennenêutica e jurisprudência, cit., p. 201.
[5] LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência, p. 257; DWORKIN, Ronald. Diritti presi sul seria. Bologna: Il Mulino, 1982; BELTRAN, Miguel. Originalismo e interpretación - Dworkin vs. Bork; una polémica Constitucional. Madrid; Civitas
[6] DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional, p.86


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