MENTIRA
Jose Luiz Quadros de Magalhães
O que é uma mentira? Somos todos seres normativos, para vivermos em uma comunidade, seja qual for a dimensão desta, estabelecemos pactos, combinados, normas, leis, regras e princípios. Mesmo em uma relação entre duas pessoas, estabelecemos pactos que permitem a convivência, com um mínimo de segurança e, portanto, previsibilidade.
Dentro desta perspectiva, a mentira é a quebra deste pacto. Talvez esta seja uma mentira de maior gravidade. Entretanto a mentira não se restringe a quebra de pactos que nos permitem viver em paz, com a segurança possível de ser construída. A mentira também consta destes pactos. Muitas vezes estabelecemos mentiras que são toleradas. Mentiras que são necessárias para a convivência, se não mentiras, omissões. Assim, as regras de boa educação em muitas sociedades do passado e contemporâneas estabelecem mentiras acordadas. Ser bem educado em muitas circunstâncias pressupõe uma mentira: Bom dia, tudo bem? Bom dia, tudo bem, e você. Nos métodos de aprendizagem de outro idioma esta é, em geral, a primeira fórmula que aprendemos a falar.
Não dizer o que se pensa sobre uma pessoa pode ser uma omissão e não uma mentira, desde que a não omissão não tenha sido acordada, onde então esta omissão passa a ser uma mentira. Temos, portanto, que a mentira surge como algo censurável, ou não, a partir dos pactos estabelecidos. A mentira (assim como a dimensão de sua gravidade) ocorre quando há uma ruptura com pactos, com os acordos, com a lei, com a norma (combinada, acordada ou mesmo imposta) enquanto a mentira tolerável é aquela acordada nas mesmas normas de bons costumes sociais.
No convívio diário, somos educados, convivemos com pessoas que não conviveríamos normalmente se pudéssemos escolher tudo, todo o tempo (o que parece impossível). Para que esta convivência seja possível, regras claras e comuns de educação são estabelecidas, em todas as sociedades (nestes casos a mentira aderiu à linguagem, integra os mecanismos de comunicação entre as pessoas, assim, quando aprendemos um idioma aprendemos os mecanismos sociais de mentira incorporados em determinadas culturas).
Nas relações diplomáticas entre os estados, nos debates entre representações de estados, nos argumentos e discussões no âmbito das relações internacionais e no direito internacional, a mentira, mais do que tolerada, se tornou uma instituição. Por traz dos argumentos de intervenção humanitária, as verdadeiras intenções são sempre encobertas por falsos argumentos de boa vontade. No estado moderno, a invenção das policias secretas e os serviços de espionagem representam a institucionalização da mentira para manter o poder do estado. Aliás, o poder do estado, o poder econômico, o poder da Igreja só existem por causa da mentira. A mentira é imprescindível para a manutenção destes poderes.
Poderíamos nos perguntar: se uma pessoa mente sobre algo que ela acredita, seria uma mentira? Ora, neste sentido, a mentira se liberta do mentiroso, ganha vida própria, existe para além das pessoas que mentem. Nas justificativas que sustentam estes poderes, a mentira já ganhou vida própria. Apenas alguns mentem assumidamente, ou seja, aqueles que sabem que sem a mentira, estes poderes não se sustentariam. Assim, disfarçam, encobrem, desvirtuam, ocultam propositalmente, pois sem estas práticas os seus poderes desapareciam. A maioria mente sem saber que está mentindo. A maioria vive uma mentira.
Muito interessante, por exemplo, a questão do juramento, como sendo uma instituição presente nos rituais do poder (até hoje!). Ora, se precisamos jurar é porque a mentira é socialmente aceita e moralmente tolerada. Ora se o perjúrio é muito grave é porque a mentira é admitida ou ao menos não é tão grave. Assim há uma hierarquia de mentiras: as mentiras institucionalizadas (nas relações internacionais e no direito internacional, por exemplo); as mentiras necessárias (para a manutenção dos poderes); as mentiras toleradas (da boa educação); a mentiras moralmente condenadas (resultante de quebras de pactos) e as mentiras criminosas (o perjúrio).[1]
Temos, portanto, uma aparente contradição: se não podemos viver permanentemente na mentira, se não é possível construir uma relação fundada na mentira (seja uma relação a dois sejam relações estabelecidas em diversas dimensões sociais), de outra forma o sistema social, econômico e internacional vigente, também não pode prescindir da mentira.
Isto me lembra os escritos de Jorge Amado ou de Nelson Rodrigues: a mentira sobre a mentira. A figura do Coronel no Bataclã, lá na belíssima Ilhéus, no romance de Jorge Amado. O coronel, bom marido (?), bom pai (?), figura pública respeitável (?), que têm outras mulheres e muitas vezes outras famílias. A equação é mais ou menos assim: sabemos que se trata de uma mentira, e mentimos ao fingir acreditar na mentira do outro. O outro sabe que mente, sabe que sabemos que ele mente, mas finge acreditar que não sabemos. Esta pobre representação é uma mentira. O teatro não é uma mentira, mas as representações diárias no “teatro” da vida podem ser grosseiras mentiras.
É possível viver sem a mentira? Bom, para responder esta pergunta precisaríamos voltar ao inicio do texto para tentar conceituar o que é mentira. Sei, entretanto, que algumas mentiras me são intoleráveis: a mentira do poder; a distorção e o ocultamente proposital, a hipocrisia ( a grande mídia privada faz isto diariamente); a representação grosseira de papeis mal interpretados.
Se os sistemas sociais, políticos e econômicos que construímos na modernidade dependem da mentira, do ocultamento, da distorção proprosital, da representação ridícula de papeis sociais onde atores incorporam permanentemente seus papéis, estes sistemas não deveriam nos servir mais. Podemos sim construir algo melhor. Uma democracia de verdade, fundada no diálogo livre e não hegemônico. Sem hegemonias não precisaremos mais das mentiras que as sustentam. É a hegemonia, a falsa superioridade, que tornam necessárias estas mentiras. Seria bom que construíssemos uma sociedade onde não seja mais necessário jurar.
Abaixo um filme sobre mentira: “O débito”. Como o sucesso e o reconhecimento social, construídos sobre uma mentira, podem cobrar um alto preço. Pesado ser reconhecido pelo o que não somos, ou pelo o que não fizemos, mesmo que seja um reconhecimento muito positivo.
Abaixo outro filme: “O primeiro mentiroso”. A idéia é boa mas a realização é muito ruim. O filme confunde todo o tempo mentira com a necessidade de tornar público tudo o que se pensa; com sinceridade ou falta de respeito em relação ao outro. Uma pena. Mas retoma a discussão sobre omissão e mentira. A quebra do acordo de não omitir, transforma a omissão em mentira.
Abaixo a comédia: "Mentiroso"
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O filme "Ponto de vista" e como a verdade se revela de formas distintas.
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E finalmente o
excelente filme "Tudo pelo poder".
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[1] Sobre o perjúrio imprescindível ler o livro de Giorgio Agambem, El Sacramento Del lenguaje (arqueologia do juramento), Adrian Hidalgo Editora, Buenos Aires, 2010
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