PARA CITAR: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder Municipal, paradigmas para o estado constitucional brasileiro, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1997, pp.196-200.
8. PRINCÍPIOS UNIVERSAIS DE DIREITOS HUMANOS
Temos utilizado desde o início deste trabalho a expressão princípios universais de direitos humanos. É necessário, pois, explicar o significado dessa expressão, que para nós deverá representar todo o conteúdo principiológico constante do texto federal.
Já estudamos a expressão "princípios constitucionais", sendo que propusemos ainda classificação que contemple os princípios (regras em sentido amplo, ou com grau de abrangência maior) fundamentais, setoriais e os deduzidos da Constituição. As Constituições têm diferentes princípios e oferece tratamentos variados aos grupos e direitos fundamentais da pessoa humana.
Esses direitos fundamentais e os seus princípios basilares serão variáveis de acordo com o texto constitucional. Dessa forma, uma Constituição liberal se limitará a declarar os direitos individuais e os direitos políticos, sendo que, dentro do referencial teórico da época, os direitos humanos se reduziam, numa perspectiva constitucional, a este conteúdo, dentro de uma perspectiva teórica que consagrava o abstencionismo estatal e considerava como garantia constitucional a simples inserção de princípios do Direito, no texto constitucional.
De outra forma, as Constituições sociais e as socialistas ampliam este leque de direitos fundamentais, oferecendo variados modelos adotados por diferentes países. Não se pode dizer, lendo as Constituições socialistas e as Constituições sociaisliberais (ou sociais assistencialistas, ou neoliberais), que estas obedecem a um modelo rígido, imutável de Estado para Estado.
Tanto os textos socialistas como os sociais, estes com maior intensidade, têm variações que correspondem às situações históricas específicas de cada país, sendo que essas variações ocorrem na forma de organização política do Estado, mas principalmente no tratamento dos direitos fundamentais e a relação entre os seus grupos de direitos, refletindo nos princípios constitucionais[1].
Fica claro que os princípios constitucionais não são exatamente iguais, mesmo quando o tipo de Constituição adotada é o mesmo. Ocorrerá quase sempre influências nacionais específicas, que serão marcantes na construção dos princípios de direitos humanos numa perspectiva constitucional, influências estas que terão origens em sistemas econômicos, culturas, histórias diferentes, assim como outros elementos, que nos indicarão com certeza a impossibilidade de se procurar um sistema constitucional único de direitos humanos. Aliás, mais do que a impossibilidade, é a constatação de que esta diversidade deverá ser mantida como elemento de riqueza que permite a evolução do ser humano dentro de uma diversidade que incentiva e promove essa evolução desejada, afastando a massificação medíocre de grandes mercados transformadores dos humanos em "em seres consumidores de matérias inúteis", em que a perspectiva de ser se transforma num ter sem limites.
Esse sistema constitucional de direitos humanos deve conviver com um sistema global. É o que podemos chamar da perspectiva internacionalista dos direitos humanos[2]. É importante salientar que essa perspectiva internacionalista poderá subdividir-se em dois novos enfoques: o enfoque regional multinacional, em que as coincidências entre valores serão mais extensas e logo o número de princípios será maior, e um enfoque universalista, no qual se encontra o desafio maior dos direitos humanos hoje, que é o de estabelecer princípios e valores comuns, assim como direitos decorrentes desses princípios, que sejam aceitos por todos os povos e culturas do Planeta Terra.
Aliás, poderíamos dizer que essa perspectiva universalista é a dimensão correta oposta dos direitos humanos construídos sobre valores locais. O universal é construído sobre as parcelas da menor dimensão espacial sobre a qual irá se estabelecer princípios humanos. Assim, conclui-se que o primeiro princípio humano universal está na liberdade de ser humano integralmente, o que implica ser efetivamente livre para construir o seu futuro em comunidade. Obviamente que não iremos construir essa ideia de liberdade na insuficiente noção liberal, neoliberal ou mesmo socialista em um primeiro momento, pois liberdade de ser humano implica ser humano de acordo com valores da comunidade em que se vive, seja local, seja universal. As duas dimensões deverão estar sempre juntas.
Os direitos humanos universais e os princípios universais de direitos humanos são aqueles que podem ser aceitos por todas as culturas, não se chocando com o que tem de essencial a cada princípio encontrado em cada comunidade do Planeta. Isto não quer dizer que os princípios universais não serão contraditórios a determinados princípios e regras de culturas e comunidades específicas. Isso ocorrerá com freqüência e significará a superação desses princípios e regras locais pelo que existe de essencial em uma cultura planetária. Em outras palavras, a superação de regras e princípios locais ocorrerá através daquele dado que existe de humano ou de universal em cada cultura do Planeta, ou mesmo em cada comunidade, pois não é possível a permanência de qualquer comunidade, mesmo por um espaço de tempo curto, se esta não tiver valores de autopreservação, o que implica vida, núcleo fundamental de humanidade, que poderá ser ampliado pelos princípios universais.
Dado fundamental deve ser ressaltado quando falamos em direitos e princípios universais: felizmente, a diversidade ainda existe e dessa forma os direitos humanos não devem ser, por tudo que já dissemos até agora, a supremacia de valores de uma cultura sobre as outras, ou de um modelo de sociedade sobre os outros. A diversidade é sua essência, e o núcleo comum compartilhado por todas as culturas será o seu real conteúdo mutável.
Dessa maneira, os direitos universais serão aqueles que podem ser aceitos por todos os povos, em todos as comunidades de pessoas do Planeta. É importante lembrar que utilizamos a palavra "pode” enquanto possibilidade real de qualquer cultura humana, e não utilizamos as expressões "devem" ou "serão" aceitos, o que seria inadequado ou falso, no atual momento histórico.
É necessário, neste momento, identificarmos quais os princípios deverão estar contidos na Constituição democrática: a) os princípios universais conforme foram enunciados neste tópico; b) os princípios e direitos universais declarados pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e os princípios decorrentes dessa Declaração; c) ou os princípios de direitos humanos consagrados nas declarações internacionais em uma perspectiva regional?
Neste momento, e dentro do que já foi discutido até aqui, poderíamos dizer que nenhum destes. Primeiramente, é necessário esclarecer que, até aqui, vimos afirmando que o texto constitucional deve-se limitar a conter princípios que sejam universais, dentro da perspectiva que se insere no item "a" acima e explicada nesse tópico. Com isto queríamos dizer que os também considerados direitos humanos, que são os direitos socioeconômicos, não deveriam estar contidos no texto constitucional federal, mas deveriam ser deixados para as leis infraconstitucionais e as Constituições Municipais. Podemos extrair desta afirmativa o seguinte:
a) a tese se constrói pensando a realidade do Estado brasileiro, sua dimensão e organização territorial;
b) os direitos socioeconômicos não seriam suprimidos do ordenamento jurídico brasileiro, mas regulamentados por normas infraconstitucionais nos seus aspectos gerais de convivência de modelos alternativos locais, de planejamento e investimentos privados e públicos no território da União, e pelas Constituições Municipais no que se refere à regulamentação da forma de propriedade e do modelo local de repartição econômica;
c) pela complexidade de se estabelecer nacionalmente princípios que devem ser construídos no espaço internacional, ressalvados os aspectos acima enunciados, nada impede, muito pelo contrário, que a Constituição consagre princípios nacionais ou regionais de direitos culturais específicos, desde que mantida a total autonomia da população para a construção do seu modelo de organização social e econômica.
d) a declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, bem como os princípios dela decorrentes, é um texto de enorme importância histórica, principalmente para o Ocidente, mas deve ser vista dentro no seu contexto histórico de vitória de um modelo que despontava sua supremacia universal após a Segunda Guerra Mundial. Ao dispor sobre questões sociais e econômicas específicas, a Declaração se restringe a um contexto social, político e econômico específico do pós-guerra, que será superado, e como tal deve ser entendido. Assim, concluímos que a Constituição democrática,que pensamos, deve se aproximar de um texto que reduza seus princípios àqueles considerados universais, somados a princípios regionais, desde que não inibidores da evolução de modelos locais, principalmente no que diz respeito ao estabelecimento de modelos socioeconômicos pré-fabricados pelos conglomerados econômicos mundiais.[3]
[1] ARAGÃO, Selma Regina. Direitos humanos - Do mundo antigo no Brasil de todos. Rio de Janeiro: Forense, 1990. GOFFREDO, Gustavo et aI. Direitos humanos em debate necessário. São Paulo: Brasileira, 1989; RUZ, Fidel Castro et aI. Cuba de los derechos humanos. Habana, Cuba: Editorial de Ciencias Sociales, 1990; NIKKEN, Pedro et ai. Agenda para ia consolidación de ia democracia en America Latina. San José, Costa Rica: Instituto Interamericano de Derechos Humanos - CAPEL, 1990; CAMPOS, German J. Bidart. Constitución y derechos humanos. Buenos Aires: Ec1iar, 1991; LLORENTE, Francisco Rubio. La forma deI poder (Estudios sobre Ia Constitución). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direitos' humanos na ordem jurídica interna.
[2] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito constitucional internacional.Rio de Janeiro: Renovar, 1994; MELLO, Celso D. de Albuquerque. A revisão do direito constitucional na Constituição de 1988. Revista Ciencias Sociais. Universidade Gama Filho, ano 1, p. 75-89. novembro, 1995; TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos no final do século XX. Arquivos do Ministério da Justiça, ano 48, n. 185, p. 73-85, jan/jun., 1995
[3] PEREIRA, Antônio Celso Alves. Direito internacional e desenvolvimento econômico. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, n. I, v. 1, p. 32-63.
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