PARA CITAR: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder Municipal, paradigmas para o estado constitucional brasileiro, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1997, pp.201-207.
9. A DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA E OS LIMITES DO PODER CONSTITUINTE DERIVADO E DECORRENTE
Um dos últimos aspectos a enfrentarmos na construção da Constituição democrática é o da necessidade de desconstitucionalizar a propriedade privada. Abordamos, assim, questão que vem sendo discutida no decorrer do trabalho, sobre a necessidade de desconstitucionalização da ordem econômica e social do texto da Constituição Federal e por conseqüência a desconstitucionalização da propriedade privada. Em alguns momentos do trabalho já nos questionamos se seria possível se fazer as mudanças desejadas através dos processos formais de mudança da Constituição, como a emenda, uma vez que não há previsão de outra revisão, juntamente com os processos de mutação.
Por duas vezes, entendemos que, embora a ideologia constitucionalmente adotada possa ser modificada pelos processos informais de mudança da Constituição, o que poderia abrir espaço para a mudança de dispositivos através do processo formal de emenda, entendemos que o ideal é um novo texto que marque a ruptura formal e histórica de tipos de Estado diferentes, construindo efetivamente uma Constituição sintética, democrática, essencialmente de princípios e de processos democráticos, escrita, mas que permita a sua constante evolução interpretativa, codificada e extremamente rígida no que diz respeito aos processos formais de reforma.
Ao defendermos a desconstitucionalização da propriedade privada dos meios de produção, o primeiro obstáculo encontrado seria a existência de limites materiais ao poder de reforma da Constituição.
O poder constituinte originário é o poder que cria a Constituição. Este poder tem características de um poder inicial, soberano, que não encontra limites de ordem jurídica no ordenamento anterior, mas apenas limitações de ordem sociológica no jogo de forças sociais que atuam no momento de seu funcionamento. Como tal, o poder constituinte é um poder de fato, que pode ser um poder de Direito na medida em que se legitimar na vontade popular consciente e nos valores de justiça e de Direito vigentes em uma determinada sociedade no momento histórico em que atua[1].
Logo a natureza deste poder inicial e soberano será sempre de fato, podendo ser um poder direito na medida em que se legitima na vontade popular e nos valores aceitos por toda a sociedade em um determinado momento.
Este poder constituinte originário cria os poderes de reforma da Constituição, que tem como finalidade alterar as regras em sentido restrito do seu texto, que pelo menor grau de abrangência devido à sua especificidade, tem que ser modificadas para acompanhar as mudanças exigidas pela sociedade. Logo este poder se dirige às regras em sentido restrito do texto, não podendo, entretanto, atingir aos princípios constitucionais e a ideologia constitucionalmente adotada, pois essas regras em sentido amplo, como a própria ideologia constitucional são os elementos que identificam a Constituição, e a sua alteração não pode se dar por mecanismos de reforma, que não se igualam ao poder criador, que é o poder constituinte originário.
A Constituição brasileira, produto de um poder constituinte originário que rompeu com o ordenamento jurídico anterior, estabeleceu dois mecanismos constitucionais de reforma de seu texto: a emenda e a revisão.
No texto são estabelecidos limites para atuação do poder constituinte derivado, que é um poder de segundo grau, limitado e subordinado. Portanto, além da subordinação existente entre um poder que é inicial e um poder de segundo grau derivado de um poder soberano, o que implica a Impossibilidade. de descaracterizar a obra do primeiro, a Constituição traz limites expressos que podem ser classificados da seguinte forma:
a) limites materiais que consistem na proibição de deliberação de emendas tendentes a abolir a forma de Estado Federal, a democracia, a separação de poderes e os direitos individuais e suas garantias. Estes limites se aplicam ao poder de reforma seja através de emendas, seja através de revisão;
b) limites circunstanciais que consistem na proibição do funcionamento do poder de revisão ou de emenda na vigência de estado de sítio, estado de defesa e intervenção federal;
c) limite temporal que no nosso texto constitucional se aplicou somente ao poder de revisão e consistiu na proibição de realização da revisão antes de completados cinco anos da, promulgação da Constituição.
O poder de emenda da Constituição está previsto no art. 60 do texto permanente da Constituição e pode ser acionado a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos ali estabelecidos para se iniciar o processo de reforma por meio de emendas. A característica de rigidez do texto constitucional já mencionada neste trabalho é marcada por processo legislativo especial, em que apenas algumas pessoas podem iniciar a reforma exigindo ainda um quorum específico para aprovação. Podem iniciar o processo de reforma por meio de emendas, o Presidente da República, um terço da Câmara Federal ou do Senado, ou ainda mais da metade das Assembléias Legislativas dos Estados-Membros, desde que aprovado o encaminhamento da emenda por maioria relativa de seus membros .
Para ser aprovada a emenda, é exigida a aprovação de três quintos dos membros da Câmara e do Senado, em dois turnos de votação em cada Casa Legislativa.
A diferença entre emenda e revisão consiste em que a primeira é uma alteração pontual do texto, podendo ocorrer a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos acima expostos. A revisão de forma diferente pode ocorrer uma ou mais vezes, segundo dispor o texto, consistindo em uma revisão de todo o texto constitucional, quando se buscará uma melhor sistematização, sendo possível a alteração de dispositivos constitucionais desde que não se desrespeite os limites materiais estabelecidos para o poder constituinte derivado.
A Constituição de 1988 previu a revisão constitucional no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, corno já foi dito, com limite temporal de cinco anos para que este poder pudesse ser acionado, estabelecendo um procedimento e um quorum mais simples, sendo que o seu funcionamento se daria em sessão unicameral do Congresso Nacional, aprovando-se o texto revisado por maioria absoluta dos membros.
Estando previsto no ato das disposições constitucionais provisórias, o poder de reforma por meio de revisão teve única previsão de funcionamento, pois os dispositivos transitórios se extinguem após a realização de suas disposições.
Outro fato que merece registro é o procedimento de realização da revisão que foi escolhido pelo poder constituinte derivado. No lugar de realizar urna revisão de todo o texto e colocá-la em votação, buscando com isso o objetivo da revisão que é a reestruturação sistemática do texto alterando alguns dispositivos específicos sem alterar princípios e a própria ideologia constitucional, alguns constituintes derivados, vendo a possibilidade de alterar dispositivos com a maioria absoluta prevista para o seu funcionamento, que seriam dificilmente alterados com a maioria de três quintos, transformaram a revisão em uma série de emendas. Decorre desse fato a existência de emendas constitucionais e de emendas de revisão, cada uma com numeração específica.
Isto posto, podemos enfrentar o questionamento que tem acompanhado todo este trabalho: será possível se promover as profundas alterações no texto constitucional de 1988 aqui estudadas, inclusive alterar a ideologia constitucional rompendo com os modelos vinculados a sistemas socioeconômicos, promovendo a desconstitucionalização da propriedade privada dos meios de produção?
Poderíamos começar respondendo esta questão com outra pergunta: para quê?
As alterações aqui sugeridas são amplas e representam um rompimento com um tipo de Constituição, o que implica com o rompimento com alguns princípios constitucionais e a alteração da ideologia constitucionalmente adotada. Neste momento é necessário resumirmos o que já foi dito sobre mudança da Constituição. Referimo-nos a dois mecanismos de alteração do texto constitucional, um formal nele previsto, que é o poder constituinte derivado de emenda e revisão, e um informal, que constitui o processo de mutação interpretativa da Constituição:
a) a mutação da Constituição ocorre através da leitura sistemática das regras e princípios constitucionais e de sua inserção em uma realidade social, política e econômica específica. Desse permanente processo de interpretação e aplicação do texto constitucional a uma realidade concreta ocorrem processos de evolução da leitura do texto, a reformulação de conceitos e adequação de princípios com a alteração de valores. Vimos que o processo de mutação pode mesmo gerar um rompimento com um modelo, ou tipo de Estado específico, para a sua transformação num outro tipo, o que pode ocorrer justamente a partir do momento em que as transformações sociais se refletem na alteração de conceitos e releitura de princípios, que, permanecendo no texto, têm sua atualização promovida pela evolução interpretativa. Exemplo pode ser a Constituição norte-americana, cujo texto escrito, embora seja o mesmo, acrescido de 26 emendas, desde 1787, recebeu leituras ou interpretações bastante diferentes em sua longa existência, o que sugere a existência de Constituições diferentes, construídas sobre o mesmo texto escrito.
Importante, entretanto ressaltar que existem limites para esse processo de mutação interpretativa, sendo que um texto analítico como o nosso, repleto de regras em sentido restrito, que se aplicam a situações específicas, apresenta obstáculos por vezes insuperáveis, que nem o processo de mutação informal, nem os processos formais de alteração poderão vencer. Neste momento, o único caminho legítimo será o de elaboração de uma nova Constituição por uma nova Assembléia Constituinte soberana e popular.
A distorção do texto ou a construção de leituras que ignoram princípios constitucionais, forçando uma transformação impossível, mesmo que seja um movimento legítimo porque amparado pela vontade consciente da população, não pode ser aceito em uma ordem constitucional democrática, pois ameaça o seu princípio maior de respeito aos processos democráticos de transformação;
b) a outra maneira de se alterar o texto constitucional é a que estudamos neste tópico. A alteração da Constituição por meio de emenda e revisão de seu texto em processo legislativo previsto no texto, com limites também expressos.
Os limites a esses processos formais são maiores, sendo que não será possível alterar ou suprimir princípios constitucionais, o que inviabiliza a modificação da ideologia constitucional e o rompimento com um tipo específico de Constituição por meio destes mecanismos.
Poderá o leitor perguntar por que os mecanismos expressamente previstos no texto constitucional são muito mais limitados do que os processo informais de mutação. A resposta é simples, pois a lei é a interpretação que se faz dela em um momento histórico logo a Constituição não é apenas o texto escrito, mas sim a interpretação que se faz deste texto. Conclui-se que o processo de mutação interpretativa não implica na alteração do texto escrito, na supressão de princípios, mas na constante reconstrução destes, ou seja, na reconstrução da Constituição.
A modificação formal é um processo inferior, subordinado, limitado, enquanto a mutação interpretativa é a própria constituição limitada apenas pelo seu texto escrito.
Com base nesses dados, podemos concluir que as alterações sugeridas que representam um rompimento com um modelo vinculado para a criação de uma Constituição democrática, em que o cidadão tenha liberdade e amparo na estrutura do Estado para promover as mudanças sociais e econômicas que desejar, construindo livremente o seu modelo na esfera territorial menor de poder, que é o Município, dificilmente ocorrerá com base neste texto vigente.
A complexidade das discussões, a variedade das decisões judiciais com interpretações diversas, a insegurança jurídica daí decorrente é um desgaste desnecessário e um preço que não deve ser pago, sendo necessário efetivamente um rompimento com o ordenamento jurídico vigente e a convocação de uma Assembléia Constituinte democrática em que esse modelo e essas questões sejam amplamente discutidas e as forças sociais se confrontem democraticamente na construção de um novo modelo que ofereça segurança e estabilidade nas constantes mudanças sociais que ele permitirá.
Acrescente-se ainda que a nossa Constituição, assim como todas as Constituições modernas, têm uma vinculação com um modelo socioeconômico específico, seja liberal, social ou socialista, corno visto anteriormente. O texto de 1988 traz urna ordem econômica que tem como princípios a livre iniciativa, a livre concorrência, a propriedade privada, princípios de origem liberal que, ao lado de princípios de origem socialista, como a função social da propriedade, o pleno emprego, a dignidade do trabalho humano, se somam a direitos humanos de terceira geração, como o direito do consumidor e o meio ambiente, para apontar para uma ordem econômica que embora avançada, pois incorpora o que há de mais atual em termos de direitos fundamentais, pode no máximo ser interpretada como uma ordem econômica neoliberal em sentido amplo, com um modelo de Estado social não clientelista, dentro de um modelo intervencionista estatal com a finalidade de promover a diminuição das desigualdades sociais e regionais dentro de um capitalismo social. Note-se que embora essa interpretação, que sucintamente fizemos, pareça óbvia no texto, muitos autores de Direito Constitucional têm leitura diferente, alguns defendendo uma ordem liberal neste texto, o que nos parece absurdo.
Coerentemente com o que sempre defendemos em termos de limites formais ao poder constituinte derivado, os princípios constitucionais não podem ser modificados por meio de emendas ou revisão, sendo que estamos portanto dentro de um texto constitucional vinculado a um modelo econômico e um modelo especifico de repartição econômica, o que não pode ser modificado, a não ser por outra Assembleia Constituinte.
A interpretação constitucional não pode ignorar essa vinculação, e o papel do intérprete será o de acabar com os antagonismos do texto, representado neste momento por princípios de origem liberal ao lado de princípios de origem socialista, extraindo deste texto uma nova resultante, que não poderá ser, entretanto, a que desejamos, pois esta representa o rompimento com os modelos constitucionais vinculados com modelos socioeconômicos, que são todos os modelos conhecidos até hoje no constitucionalismo que se afirmou após a Revolução Francesa.
Conclui-se que o novo modelo, diante das restrições existentes em um texto analítico como o nosso, pede uma Assembléia Constituinte soberana e popular, na qual se discuta as bases de um Estado que garanta voz aos seus cidadãos através de mecanismos de participação democrática permanente; que garanta fala aos cidadãos através da educação livre, da liberdade de informar e informar-se; e onde a comunicação entre sociedade civil e Estado seja o elemento que faça com que esses dois conceitos de confundam em um Estado que seja sensível às indicações que partem de seu povo através dos mecanismos democráticos constitucionalmente instituídos e garantidos.
[1] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral de poder constituinte.Separata n. 52 da Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 1981. MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder constituinte e a norma fundamental de Hans Kelsen. Revista de Informação Legislativa e Senado Federal. Subsecretaria de Edições Técnicas, ano 27, n. 105, p. 109-128, jan/mar., 1990.
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