PRIMAVERA ÁRABE
A volta do parafuso
A Tunísia um ano após a queda de Ben Ali
VLADIMIR SAFATLE
RESUMO
O filósofo Vladimir Safatle publica o primeiro texto sobre sua viagem a países que onde ocorreu a Primavera Árabe, um ano depois das revoltas populares que abalaram regimes autoritários: Tunísia, Egito, Israel e Palestina. Em Túnis, registra a tensão entre valores democráticos e o risco de islamização.
Uma revolução é como um parafuso: pode dar muitas voltas. A metáfora talvez não seja poeticamente inspirada, mas nem por isso deixa de ser apropriada.
Compreender acontecimentos como revoluções implica a capacidade de acompanhar processos nos quais, muitas vezes, os sinais se invertem, novos riscos aparecem e aberturas inesperadas se fazem sentir. Revoluções se decidem no desdobrar vagaroso desta vida ordinária, na qual o entusiasmo revolucionário nada encontra.
Por isso, elas exigem certa humildade do pensamento. Não é difícil legislar sobre o que deve ser um acontecimento, sobre como ele deve se desdobrar.
Mais difícil é admitir que devemos ir aonde tais acontecimentos ocorrem, observar lugares, entrevistar pessoas, abrir mão de certos pressupostos, isso se quisermos realmente pensá-los. Não se descobre nada a distância -e não há nada melhor que uma revolução para mostrar isso.
Hegel lembrou que o verdadeiro pensamento era como a coruja de Minerva: só aparece no final do dia, quando temos a impressão de o mais importante já ter ocorrido.
Essa propensão noturna do pensamento não é covardia, mas a astúcia de quem sabe que nunca se avalia um acontecimento de forma isolada. Avalia-se uma sequência de fatos que, no desdobrar do tempo, impõem tendências. Um filósofo espera. Por isso, esperei um ano até ir à Tunísia.
NARRATIVA HEGEMÔNICA
Desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, a grande narrativa geopolítica hegemônica afirmava haver apenas uma via de modernização social, esta presente nos países ocidentais de democracia liberal.
Contra isso, só teríamos agora a possibilidade de recuperação de alguma modalidade de laço comunitarista forte se ela fosse patrocinada pela religião. Nesse sentido, o mundo árabe, com suas repúblicas islâmicas do tipo iraniano, seria o melhor exemplo de tal tendência.
No entanto, 2011 talvez entre para a história como o ano no qual tal narrativa entrou em colapso. Enquanto as democracias liberais desagregavam lentamente sua substância normativa -isso por meio da mudança sistemática de leis sobre asilo, proteção social, imigração, privacidade-, o mundo árabe descobria a sublevação popular. Quando os tunisianos saíram às ruas gritando: "O povo exige", vários ouviram o nascimento do modelo de uma nova demanda de democracia real.
Essa demanda apareceu posteriormente em cidades como Atenas, Madri, Roma, Nova York, Tel-Aviv e Santiago. O mundo foi sacudido por grandes manifestações organizadas à margem de partidos, com uma extensa pauta de transformação da vida social, tão extensa quanto a palavra fundamental que guiou os manifestantes tunisianos na derrubada do governo de Ben Ali, em 14 de janeiro de 2011: "Dignidade".
HOJE
Mas qual é a situação da Tunísia hoje, um ano após sua revolução? "Para compreendê-la, você deve entender os riscos de uma revolução espontânea", diz Lassad Jamoussi, professor de literatura comparada da Universidade de Sfax e presidente da Liga dos Direitos do Homem. "Os acontecimentos que produziram a Revolução Tunisiana não foram dirigidos por um partido organizado ou por lideranças claras."
Hamadi Redissi, professor de direito da Universidade de Túnis e autor do instigante "A Tragédia do Islã Moderno" (Seuil, 2011), concorda: "Quem fez a revolução foram jovens diplomados e desempregados, ciberativistas e sindicatos". (O país tem uma longa tradição de organização sindical que se confunde com a história de sua independência, principalmente graças à UGTT - União Geral dos Trabalhadores da Tunísia.)
Não são, no entanto, tais atores que estão agora no poder. A eleição legislativa de 23 de outubro, que também foi uma eleição para a Assembleia Constituinte, revelou ser o partido islâmico Nahda ("renascimento", em árabe) o grande vitorioso, conquistando 89 das 217 cadeiras do Parlamento.
Em coalizão com o partido socialdemocrata CPR (Congresso pela República, 29 cadeiras) e com o esquerdista Ettakatol (Fórum Democrático pelo Trabalho e pelas Liberdades, 20 cadeiras), ele hoje governa o país, com o primeiro-ministro, Hamadi Jebali, no poder desde 14 de dezembro de 2011.
Não há uma oposição parlamentar forte constituída. A resistência ao governo vem, sobretudo, dos setores organizados da sociedade civil. Ainda há manifestações na Tunísia, mas agora elas se voltam sobretudo contra os riscos de islamização da sociedade.
Exemplo disso foi a manifestação de artistas e profissionais da cultura no dia 8 em frente ao Parlamento. Seu objetivo era a garantia da liberdade de expressão e de criação pela nova Constituição.
Samir Dilou, ministro dos Direitos Humanos e porta-voz do novo governo, explica o sucesso do Nahda: "A Revolução Tunisiana não foi um processo que começou em 2011. Ela se confunde com a luta contra o regime de Ben Ali. Os líderes muçulmanos foram sistematicamente perseguidos por esse governo, vítimas de tortura, exílio e violência. Eu mesmo participei de greves de fome e fui preso".
CÉLULAS ADORMECIDAS
A verdade é que, se olharmos para os eventos imediatos que desencadearam a revolução, assim como para seus slogans e atores, não encontraremos grupos islâmicos organizados.
Mas, no dia seguinte à revolução, o Nahda foi capaz de despertar aquilo que Sami Aouadi, professor de economia da Universidade de Túnis e presidente do sindicato dos professores universitários à época de Ben Ali, chama de "células adormecidas". Para isso, o partido se serviu do fato de nunca ter sido associado ao regime de Ben Ali.
Três fatores foram decisivos no processo que levou o Nahda ao poder. Primeiro, a profunda fragmentação dos grupos de esquerda. A eleição de 2011 foi disputada por 130 partidos, sem contar as inúmeras listas independentes. Essa fragmentação não atingiu os grupos islamistas, compostos por membros disciplinados e militantes, mas foi mortal para os grupos de esquerda. "Nem os membros do Nahda esperavam um resultado tão bom", afirma Aouadi.
Segundo, o Nahda propôs ser um partido islâmico "de segunda geração". Eles sabem que ninguém quer uma república islâmica do tipo iraniano. "O medo em relação aos partidos islâmicos é justificado, já que nem sempre eles andaram no caminho certo", diz o ministro. Seu slogan preferido é este: "O islã é compatível com a democracia". O exemplo turco estaria aí para demonstrar a veracidade da equação.
Terceiro, a Tunísia sempre foi um país profundamente dividido. De um lado, uma classe média urbana, ocidentalizada, escolarizada, habitando principalmente Túnis e Sfax e, de certa forma, sendo privilegiada pela modernização conservadora iniciada pelo líder da independência, Habib Bourguiba, em 1956.
Essa classe média, esgotada pelo processo de gangsterização dos últimos anos do governo de Ben Ali, viu seus filhos radicalizarem posições no movimento revolucionário.
MISÉRIA
Mas, de outro lado, qualquer um que andar pelas ruas das periferias de Túnis encontrará uma imensa massa pouco tocada por tal modernização conservadora, com seus valores incapazes de modificar a situação de miséria da maioria da população. Embora tenha uma taxa de alfabetização bastante elevada para o mundo árabe (76,3%) e o quarto IDH da África (após a Líbia, Seychelles e Maurício), exibe cotidianamente cenas de pobreza urbana, desigualdade e ostentação social.
A Tunísia radicalizou um processo urbano bem conhecido no Brasil, no qual as classes mais favorecidas desertam as cidades, cada vez mais precarizadas, para morar em bairros afastados e periferias de condomínio fechado. Uma cidade como Cartago, onde se situam as embaixadas, o palácio presidencial e as casas de altos funcionários do governo, é uma espécie de Alphaville litorânea de gosto ainda mais duvidoso.
Mas a diferença entre a fratura social tunisiana e a situação brasileira deve ser creditada ao fato de a massa pobre do país africano ser portadora de uma "lassitude em relação ao Ocidente, pois ela não viu o Ocidente trazer prosperidade", como afirma Redissi.
Ela é sensível às práticas assistencialistas dos muçulmanos, que não são muito diferentes das práticas dos evangélicos nas favelas brasileiras.
Assim, ela encontra na recuperação dos hábitos islâmicos uma maneira de expor um profundo ressentimento contra a realidade de exclusão social da qual foi vítima. Ou seja, na Tunísia, o conflito cultural entre o islamismo radical e o Ocidente funda-se em um peculiar ressentimento de classe.
ISLAMIZAÇÃO
Um ponto importante é a acusação, feita por praticamente todos os entrevistados ligados à oposição, de que o Nahda teria sido financiado por dinheiro de Qatar.
Tal situação demonstra uma das mais fantásticas voltas do parafuso na política árabe. Países como Qatar e Arábia Saudita são alguns dos maiores aliados dos ocidentais na região. No entanto, eles atuam agressivamente no mundo árabe para fortalecer movimentos que visam à islamização da sociedade e de seus costumes.
Em suma, nossos aliados são exatamente aqueles que fornecem dinheiro para movimentos salafistas ao redor do mundo, o que demonstra como, no fundo, os países ocidentais não se incomodam com sociedades nas quais a política é sufocada pela religião, desde que elas continuem respeitando seus negócios e contratos.
Talvez nenhum outro assunto exponha melhor a divisão da sociedade tunisiana, assim como as reviravoltas que uma ideia pode dar, do que o problema relativo ao porte do "niqab", o véu que cobre integralmente o rosto e o corpo femininos.
Durante os regimes de Bourguiba (1956-87) e de Ben Ali (1987-2011), hábitos muçulmanos, como o porte do "niqab" e o uso de barba, eram reprimidos. Essa repressão cedeu com a Revolução Tunisiana. Aproveitando-se de tal situação, estudantes salafistas (grupo radical muçulmano ligado à linha hegemônica da Arábia Saudita) mobilizaram-se na Universidade de La Manouba.
A universidade, assim como várias outras da Tunísia, proíbe mulheres que vestem o "niqab" de seguir cursos ou fazer provas. Desde dezembro, tais estudantes vêm impedindo as aulas para reivindicar que as mulheres de "niqab" tenham o direito de frequentá-los.
O salafismo é a versão mais fundamentalista da religião muçulmana: prega a aplicação literal da lei corânica (Charia) e o retorno às práticas originárias do islã. Extremante minoritários na Tunísia (estima-se que eles não exista mais do que 7.000 simpatizantes), eles são hegemônicos em países como a Arábia Saudita e Catar.
Conversando com estudantes salafistas e garotas com "niqab" mobilizados na universidade, descobre-se, porém, algo peculiar.
Ali, o discurso é ligado não à islamização da sociedade, mas à "liberdade individual". "Queremos a liberdade de vestir o que tivermos vontade", diz uma estudante com "niqab".
Ela afirma não ser obrigada a usá-lo. Ao contrário, seu pai reprova radicalmente seu comportamento e lhe pede insistentemente que abandone o traje tradicional.
MULTICULTURALISMO
Outras garotas contam histórias parecidas. Por um instante, crê-se ouvir adolescentes exigindo o direito de usar "piercing" no rosto.
Mais impressionante ainda é ouvir estudantes salafistas afirmarem que estariam dispostos a aceitar que garotas entrassem na universidade de minissaia desde que seus próprios direitos como crentes fossem respeitados.
"Sinto-me como os negros norte-americanos lutando pelos seus direitos como grupo", diz um deles. Por pouco, eles não se transformam em defensores ardorosos do multiculturalismo anglo-saxão.
É claro que sempre podemos dizer que se trata de um falso discurso, que tenta colocá-los na posição de vítimas de intolerância social.
"Na verdade, eles vieram à minha sala para dizer que queriam bem mais do que a permissão para portar o 'niqab': queriam separação entre homens e mulheres, assim como a interdição de mulheres darem aulas para homens. Depois, negaram isso diante da imprensa", diz o reitor da Universidade de La Manouba, Habib Kazdaghli.
Historiador responsável por estudos sobre a história do comunismo e do judaísmo na Tunísia, Kazdaghli viu-se acusado de comunista e sionista pelos estudantes salafistas.
Por um mês, ele pediu a presença da polícia no campus, já que os salafistas bloqueavam o prosseguimento das aulas até que as alunas de "niqab" fossem admitidas.
O bloqueio permanece, e a universidade continua sendo palco de manifestações, "sit-ins" e agressões a professores. No entanto, o governo postergou o pedido devido a um imbróglio burocrático, como se esperasse que a situação ficasse cada vez mais desgastante.
Ninguém em sã consciência duvidaria das palavras do reitor em relação às reais intenções dos salafistas. Basta ver o que eles fazem quando são maioria, como na Arábia Saudita.
Mas não deixa de ser sintomático que o discurso de liberdade individual, novamente posto em circulação, agora pela Revolução Tunisiana, acabe por ser usado para justificar a ligação a práticas comunitarista-religiosas. Como se, na Tunísia, se decidissem a extensão e o modo de aplicação que queremos dar a nossos valores ocidentais.
O dado interessante aqui talvez seja a descoberta de que não será possível desativar os riscos reais de deriva islamista da sociedade tunisiana se entrarmos em contradição com os próprios valores que defendemos. Agir como se nosso valores servissem apenas para defender nossos costumes acabará por minar sua força de adesão.
Por um lado, a Revolução Tunisiana demonstra sua penetração ao obrigar até os salafistas a usar um discurso que não é exatamente o deles, mesmo que tal uso seja claramente estratégico.
A força de uma revolução se mede, entre outras coisas, pelas modificações que ela produz nos limites dos discursos em circulação na vida social. Há certas coisas que não podem mais ser ditas depois de uma revolução, e isso não é apenas uma questão de palavras.
Por outro lado, uma revolução tem o desafio de não excluir dos direitos que queremos universalizar aqueles que, ao contrário, estão dispostos a fazer de tudo para nos excluir. Todo verdadeiro acontecimento nos obriga a nos confrontarmos com uma questão em aberto. Essa é a questão que a Revolução Tunisiana, com suas voltas de parafuso, parece nos deixar.
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