segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

1003- PODER MUNICIPAL 28 - O controle de constitucionalidade em face dos princípios universais de Direitos Humanos

PARA CITAR: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder Municipal, paradigmas para o estado constitucional brasileiro, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1997, pp. 177-183.

6. O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE EM FACE DOS PRINCÍPIOS UNIVERSAIS DE DIREITOS HUMANOS

             A existência de mecanismos eficazes de controle da cons­titucionalidade das leis é de fundamental importância para a implementação do modelo constitucional e da preservação dos príncípios e regras constitucionais, assim como pela evolução interpretativa das normas constitucionais.
O sistema de controle de constitucionalidade das leis e atos dos Poderes do Estado é elemento sem o qual o texto constitucional toma-se apenas discurso[1]. 13
Quanto melhor, amplo e célere for o sistema de controle de constitucionalidade, e quanto mais próxima a população estiver dos mecanismos de controle da constitucionalidade, maior será a proximidade do texto constitucional da realidade que esse procu­ra transformar, e mais próxima da vontade popular estará sua interpretação. Obviamente que, além de existirem mecanismos fáceis de acesso da população a esse sistema de controle, neces­sária será a existência de Poder Judiciário sensível às indicações que o cidadão aponta para a sua atuação. Essa afirmativa indica­ria que, guardados os princípios universais de direitos humanos e as regras materiais e processuais constitucionais, o Judiciário deve ser um poder potico-jurídico que esteja apto a servir à Constituição democrática, o que implica atender à vontade de­mocraticamente expressa da população.
            Em vez de um Judiciário escravo da lei, limitado pelo processo, que muitas vezes de garantia de acesso à justiça, se transforma em obstáculo intransponível para a consecução do direito, o Estado democrático exige um Judiciário sensível aos princípios constitucionais e aos valores consagrados na Consti­tuição, como, também, à vontade popular, condicionada por tais valores e princípios[2].
            A Constituição de 1988 estabelece um sistema difuso de controle de constitucionalidade, combinado com mecanismos de controle direto,repressivo e preventivo, judicial e político .
            O controle de constitucionalidade das leias pode ser político,misto,judicial ou por órgãos especiais como as Cortes ou Tribunais Constitucionais no modelo europeu. O controle judicial é o que ocorre por meio do pronunciamento de um ou mais órgãos do Poder Judiciário, enquanto o controle político é exerci­do por um órgão de composição política, fora da estrutura do Judiciário. Dessa forma, podem existir órgãos dissociados da estrutura do Judiciário, com a competência por vezes exclusiva e por vezes não, de controlar política e tecnicamente o respeito aos princípios e as regras constitucionais.
            O controle judicial pode ser difuso ou concentrado. No controle judicial difuso, todos os órgãos do Poder Judiciário, desde o juiz singular de primeira instância até o Tribunal de superior instância que no caso brasileiro será o Supremo Tribu­nal Federal, guardião da Constituição, poderão apreciar e decidir matéria constitucional. Essa manifestação ocorre na análise de casos concretos, quando os órgãos do Judiciário irão dar pronun­ciamentos em situações de presumida violação concreta de direi­tos constitucionais.
            No caso do controle difuso, mediante caso concreto, o efeito da declaração de inconstitucionalidade da norma ofensiva ao direito da pessoa, será sempre inter partes - com efeito para aqueles que figuram no processo - e ex tune, retroagindo os efeitos da decisão desde o momento em que o autor do processo começou a sofrer prejuízos, com a violação do seu direito. Nesse mesmo caso, quando ocorrer que em grau de recurso a inconsti­tucionalidade, levantada, no caso concreto, chegar até o Supremo Tribunal Federal, através de Recurso Extraordinário, a decisão definitiva do STF implicará em comunicação ao Senado Federal,
            Nesse caso, o efeito do controle difuso, mediante caso concreto será para o autor ou autores no processo o efeito já mencionado, gerando, entretanto, a partir da suspensão da eficá­cia da norma pelo Senado, também o efeito erga omnes, alcan­çando a todos que tenham seus direitos violados pela referida norma inconstitucional, ocorrendo que o efeito para os que não figuram no processo deverá ser ex nunc, ou seja, a partir do momento da suspensão da norma[3].
            O sistema difuso, no Brasil, comporta ainda, mecanismos de controle direto de constitucionalidade das leis, típicos do con­trole jurisdicional concentrado, onde apenas um órgão do Judiciá­rio tem competência para manifestar-se sobre a inconstitucionali­dade de lei. Esse controle concentrado opera-se através da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitu­cionalidade previstas no texto da Constituição, que estabelece a competência do STF, no nível federal, e estabelece de forma restritiva a legitimidade ativa para a propositura. Importante notar que esses mecanismos de controle direto devem ser interpretados dentro de uma lógica de controle difuso, pois caso contrário graves equívocos poderão ocorrer com a superposição de sistemas dife­rentes, trazendo instabilidade nas relações jurídicas.
            Sendo o sistema difuso aquele que permite maior controle e proximidade da população, ele deve ser preservado. As ações diretas de constitucionalidade e inconstitucionalidade, assim como toda e qualquer decisão do Supremo Tribunal Federal que como toda e qualquer decisão do Supremo Tribunal Federal que atinja a todas as pessoas - efeito erga omnes -, não podem desconsiderar as situações jurídicas criadas a partir do controle difuso.
            Exemplo concreto da incorreção na interpretação do siste­ma difuso de constitucionalidade no Brasil ocorreu com as ações de inconstitucionalidade propostas contra alguns planos econô­micos. No exercício do controle difuso, os juízes e tribunais, inclusive o Tribunal Superior do Trabalho, através de enunciado, manifestaram-se pela inconstitucionalidade de alguns planos econômicos, o que gerou direitos concretos e ganho pecuniários para os trabalhadores. Após algum tempo, o Supremo Tribunal Federal decidiu contrariamente a estas várias decisões, declaran­do a constitucionalidade dos mesmos planos econômicos ante­riormente declarados inconstitucionais por outros órgãos do Ju­diciário e pelo próprio Supremo em ocasiões anteriores.
            Com base nessa decisão, a Advocacia Geral da União, ignorando os princípios do controle difuso, a segurança nas rela­ções jurídicas já constituídas, o princípio da coisa julgada e o significado processual de uma ação excepcionalíssima como a ação rescisória, propôs varias ações rescisórias para desconstituir decisões com base na inconstitucionalidade, julgados legítimos e protegidos constitucionalmente por manifestação de interpreta­ção constitucional por quem de direito, dentro do sistema de controle difuso. Mais grave foram as decisões favoráveis às rescisórias nos Tribunais Superiores.
            A partir da reflexão sobre esse fato, ocorrido em 1995/1996, podemos analisar quais os efeitos da declaração de constitucio­nalidade ou inconstitucionalidade na via de ação direta no STF, mediante discussão de lei em tese. Partindo da afirmativa de que o efeito, neste caso, será sempre erga omnes, resta discutir sua retroatividade ou não.
            Dentro de uma perspectiva de inserção das ações diretas de controle de constitucionalidade no sistema constitucional de proteção dos direitos humanos - direitos fundamentais - e inse­rindo este controle direto dentro do sistema de controle difuso consagrado no Brasil, podemos concluir:
            a) a decisão em caráter liminar terá sempre efeito ex nunc, ou seja, a partir da decisão, e com caráter precário;
            b) a decisão declaratória de inconstitucionalidade terá efeito ex tunc, retroagindo, e dessa forma resguardando os direitos funda­mentais das pessoas, atingidas por norma inconstitucional.
            c) a decisão declaratória de constitucionalidade terá efeito ex nunc, respeitando, com isto, as decisões contrárias ocorridas no controle difuso, que constituíram direitos dentro de uma inter­pretação constitucional, não podendo agora a pessoa responder com seu direito por decisão legítima ocorrida no controle difuso de constitucionalidade, constitucionalmente previsto.
            O controle jurisdicional é um controle repressivo, ocorren­do o controle preventivo e político quando uma lei é vetada no todo ou em parte por ser considerada inconstitucional.
            O controle ocorrido no Congresso nacional, através de suas comissões, especialmente de Constituição e Justiça, pode ainda ser considerado um controle preventivo, no âmbito do Legislativo, e, portanto, também de caráter político.
            Como se vê, o sistema de controle de constitucionalidade criado pela Constituição de 1988 estabelece di versos mecanis­mos para evitar o desrespeito à Constituições, suas regras e princípios.
            É conveniente ressaltar que de uma tradição de controle de constitucionalidade em face da regra em sentido restrito, evoluísse para um controle perante princípios constitucionais e o siste­ma constitucional, fato que se deveu à evolução da doutrina de direito constitucional a partir da democratização formal com a Constituição de 1988 e, conseqüentemente, o trabalho diário nos tribunais, de advogados, membros do Ministério Público e juízes, que pouco a pouco fizeram essa importante evolução ser incorporada pela jurisprudência.
            Outra discussão essencial para a melhoria dos mecanismos de controle de constitucionalidade diz respeito ao comportamen­to de administradores públicos e de administrados diante de mandamentos inconstitucionais expressos em atos administrati­vos e mesmo em lei.
            Essa questão é diariamente vivenciada por inúmeros admi­nistradores públicos e cidadãos que se vêem obrigados a cumprir ordens claramente inconstitucionais, por entenderem que compe­te apenas ao Judiciário pronunciar sobre o assunto e por temor dos incontáveis órgãos de fiscalização, habituados a interpretações gramaticais de portarias, instruções normativas e, no máximo, a lei, mantendo tradição autoritária, comum no Brasil, de valorizar mais um ato administrativo do que mandamento constitucional.
            A questão é de solução lógica e de clareza incontestável. A Constituição é a lei hierarquicamente superior, sendo que suas regras e princípios têm precedência e supremacia sobre todo o ordenamento jurídico, que deve ser elaborado e interpre­tado, não apenas de acordo com as regras em sentido restrito, mas também, necessariamente, de acordo com os princípios e valores constitucionais, assim como direcionada pela ideologia constitucionalmente adotada.
            Ao se afirmar que, no caso de ordens opostas entre a lei e a Constituição, deve-se cumprir a lei, pois somente o Judiciário pode pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade, há uma grave inversão de hierarquia e de valores, fazendo a lei valer e ter mais legitimidade presumida que a própria Constituão, sendo que a conseqüência dessa realidade será a de se colocar os mandamentos estatais acima dos constitucionais e, logo, a vontade da Administração acima da vontade do povo, titular da soberania constitucional.
            Na contradição expressa entre uma lei ou qualquer outro ato normativo e a Constituição, tem o cidadão, assim como o administrador e qualquer servidor público, a obrigação de cum­prir a Constituição. Essa lógica esta presente em vários dispositi­vos legais infraconstitucionais, como o Código Penal ou ainda como exemplo a Lei n. 8.112/90 - regime jurídico único dos servidores públicos civis federais -, que expressamente determi­na que o servidor não está obrigado a cumprir ordem manifesta­mente ilegal, o que implica, com maior razão, que o cidadão em qualquer circunstância em que se encontre, e em qualquer traba­lho que exerça, inclusive o de servidor público e administrador público, não está obrigado, e mais do que isso, não pode descum­prir a Constituição, mesmo que uma lei assim o determine, pois é a Constituição a lei maior, hierarquicamente superior, documen­to soberano que como tal condiciona toda a atividade estatal perante o ordenamento jurídico democrático, vinculando-se com  as diversas formas de atuação do ser humano.
            Dessa forma, diante de norma ou ato manifestamente inconstitucional, o cidadão, em qualquer situação em que se encontre, inclusive na de servidor público ou administrador público, pode negar-se a cumprir, devendo justificar sua negativa, levan­do-se a questão ao Poder Judiciário para imediata solução do impasse, sem sanção para o cidadão que o fizer em defesa da Constituição, seus prinpios, objetivos e valores.
            Essa questão é extremamente polêmica e merece um de­senvolvimento mais adequado, principalmente quanto ao proce­dimento a ser estabelecido em lei, evitando que este dever de cidadania seja desvirtuado dos seus objetivos principais.
            O desenvolvimento de tão importante questão pode buscar subsídios no Direito norte-americano e em várias Constituições que como a nossa estabelece como direito fundamental da pessoa humana, previsto no art. 5°, o direito à resistência, o que implica o direito e o dever de defender a Constituição contra atentados aos seus valores, prinpios e regras.


[1] CANTOR, Ernesto Reis. Introdución el derecho procesal constitucional­. Controles de constitucionalidad y legalidad.Bogotá: Universidade Libre de Cali; BIACHI, Alberto B. Control de constitucionalidad. Buenos Aires: Deplama, 1992; DEL MERCADO, Oscar Vasquez. El control de Ia constitucionalidad de Ia ley. México: Porruá, 1978; CHIGLIANI, Alejandro E. Dei control jurisdicional de constitucionalidad. Buenos Aires: Depalma, 1952.
[2] GORDO, Alfonso Perez. El tribunal constitucional. Barcelona: Bosch 1983; GOZAÍNI, Osvaldo A. La justicia constitucional - Garantias, proceso y tribunal constitucional. Buenos Aires: Depalma, 1994; MATA, Antônio Carlos. El control de garantias por el tribunal constitucional y otros estudioso Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1984; AGUILLA, Yann. GORDO, Alfonso Perez. El tribunal constitucional. Barcelona: Bosch 1983; GOZAÍNI, Osvaldo A. La justicia constitucional - Garantias, proceso y tribunal constitucional. Buenos Aires: Depalma, 1994; MATA, Antônio Carlos. El control de garantias por el tribunal constitucional y otros estudioso Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1984; AGUILLA, Yann. Le conceil constitutionel et Ia philosophie du droit. Paris: LGDJ, 1993; SOUZA, Marcelo Rebelo de. O valor juridico do ato insconstitucional. Lisboa: 1988; LEMA SURlER, ieanne. La constitution de 1946 et le controle de constitutionalite des lois. Paris: R. Pichon e R. Durand-Auzias, 1953; NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Instrumentos de tutela de direitos constitucionais (Teoria, Prática e Jurisprudência). São Paulo: Saraiva, 1994; EISENMANN, Charle.s. La justice constitutionalle et ta haute cour constitutionnelle d'Autriche. Paris: Econômica,1986
[3] SILVA, Paulo Napoleão Nogueira de. A evolução do controle de constitu­cionalidade e a competência do Senado Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992; FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribu­nais, 1992; POLETTI, Ronaldo. Controle de constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1995; RAMOS, Dircêo Torrecillas. O corltrole de constitucionalidade por via de ação. São Paulo: Angelotti, 1994; VILLALÓN, Pedro Cruz. La formación del sistema europeo de control de constitucioítalidad (1918-1939). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982; CLÉVE, Clemerson Merlin. Sobre a ação direta de constitucional idade. Revista de Direito Administrativo Aplicado. Curitiba, ano I, agosto de 1994, p. 371 et seq. MARTINS, Ives Gandra da Silva, MENDES, Gilmar Ferreira (coord.). Ação Declaratória de Consti­tucionalidade. São Paulo: Saraiva, 1994.

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