quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Teoria do Estado 4

CRISE E DEMOCRACIA
Jose Luiz Quadros de Magalhaes

A democracia é um processo que sempre foi apenas tolerado pelas elites econômicas, e assim continua sendo no nosso mundo contemporâneo. Basta chegar ao poder um projeto alternativo de sociedade que a ruptura do poder econômico privado é imediata. Sempre foi assim, mudando hoje, apenas, o grau de sofisticação com que é promovido o golpe ou realizada a manipulação.
Podemos dizer que hoje a democracia não é mais democrática, pois para não realizar rupturas não democráticas, como no Brasil em 64, Chile 73 e muitos outros exemplos pelo mundo, cuidou-se de fazer com que a própria democracia não fosse tão democrática assim.5
O primeiro dado que precisamos aqui trabalhar é a teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais, importante instrumento para a compreensão do papel dos direitos políticos no contexto dos direitos humanos, na vigência do Estado social. O conhecimento dessa teoria nos ajuda mesmo a compreender a necessidade de sua superação com a superação do Estado social, uma vez que não podemos mais aguardar a construção de um Estado social no Brasil para termos uma democracia participativa. Temos de construí-la agora, com os instrumentos de que dispomos e estudaremos a seguir.

1 O que precede a teoria da indivisibilidade dos direitos humanos

Com finalidade didática, podemos dividir os direitos fundamentais da pessoa humana em quatro grupos: os direitos individuais; os direitos políticos; os direitos sociais e os direitos econômicos. Na história do Estado constitucional, temos que os direitos individuais relativos à vida, à segurança individual, à propriedade privada e à liberdade são os que primeiro são declarados em uma Constituição quando da afirmação do Estado constitucional liberal, que começa seu processo de formação com a Magna Carta de 1215, mas que se afirma com as revoluções burguesas de 1688 (Inglaterra), 1776 (EUA) e 1789 (França).
Em princípio o liberalismo não vem acompanhado da democracia. Entendiam os liberais da época que o individualismo liberal presente nas Constituições daquele período era incompatível com a democracia majoritária. Ora, como seria possível um Estado constitucional que tinha como objetivo primeiro proteger o individuo contra o Estado e suas ingerências na vida privada, portanto proteger as opções individuais, conviver com a democracia majoritária onde prevalecia a vontade do coletivo maior? A fusão entre democracia e direitos individuais só ocorre, portanto, em uma segunda fase do Estado liberal, quando, então, se substitui o voto censitário (onde o valor do voto é medido pela riqueza do indivíduo, e quem não tem riqueza em um patamar constitucional mínimo não pode votar nem ser votado) pelo sufrágio universal: um cidadão, um voto.
Temos, então, de a partir desse segundo momento: a democracia liberal permite o voto de qualquer pessoa independente de origem econômica, mas desde que preencha determinados requisitos, como idade, escolaridade e o sexo masculino.
Os grupos de direitos humanos que percebemos até então são os dos direitos individuais e os dos direitos políticos tratados de maneira estanque, como se da efetivade de um não dependesse o outro. Desta forma, a liberdade existe apenas pelo fato de o Estado não intervir na minha liberdade de opção: sou livre para me locomover, pois o Estado não me prende arbitrariamente. De outro lado, a democracia era reduzida ao seus instrumentos: se há direito a voto, há democracia.
Entretanto, um fato de extrema importância para a compreensão do que hoje esta acontecendo é o início do embate entre capital liberal e capital conservador. O constitucionalismo liberal entendia que a liberdade de inciativa e a liberdade de concorrência seria um direito de cada pessoa. Mas aquela economia democratizada, de microempresas e emprego para todos não se concretizou.
O liberalismo não encontrou, a não ser em determinados momentos excepcionais da História, a sua condição fundamental para que ele fosse democrático: uma real igualdade de oportunidade e de competição. Em sentido figurado, podemos imaginar a economia liberal no nascente Estado liberal do século XVIII como uma grande maratona. Imaginemos, então, que todos nós vamos competir nesta grande maratona da livre empresa. Para que essa competição seja justa, devemos acreditar que todos os que ali estão competindo têm a mesma vocação para este esporte; têm a mesma constituição física que lhes permitam ser maratonistas com chance de vitória; têm preparo e condicionamento físico, o que depende de um bom treinador; e, por fim, o que é o mais básico: que todos os competidores saiam ao mesmo tempo da linha de partida. Entretanto, apenas citando o básico, no jogo liberal, enquanto a maioria esperava a partida da linha inicial, alguns já acumulavam riquezas há alguns séculos, condição para a afirmação e vitória da classe burguesa. Em outras palavras, na nossa maratona liberal, enquanto nós estamos na linha de partida, alguns já estão quatrocentos quilômetros na frente (quatrocentos anos na frente, em termos de acumulação de riquezas).
Um segundo problema desse jogo liberal é que não há juízes. O Estado constitucional-liberal veda a intervenção do Estado no domínio econômico, salvo de maneira supletiva, quando não há interesse privado. O Estado liberal não regula a economia e tampouco exerce atividade econômica. Temos, portanto, um jogo sem juiz. Como um jogo de vôlei sem os dois juízes de rede e os quatro juízes de linha.
A ausência do Estado na regulação da economia favorece aqueles que partiram na frente nessa competição, os quais, então, criam mecanismos de eliminação da concorrencia e da livre iniciativa: está criado o capital conservador, essencialmente antiliberal, que passa a desenvolver estratégias para se tornar cada vez maior, eliminando novos competidores e combinando o mercado com os antigos e grandes competidores cada vez maiores.
Obviamente esta conduta traz mais concentração econômica, e com ela mais exclusão social. Com a exclusão crescente e com o grau jamais visto de exploração de mão-de-obra (a grande oferta de mão-de-obra em relação aos postos de trabalho faz com que os salários e as condições de trabalho sejam as piores possíveis: crianças e mulheres eram obrigadas a trabalhar em média 14 horas por dia, por um salário miserável) surgiram os movimentos sociais cada vez mais fortes, como reação à exploração e exclusão.
A pressão social empurra o Estado liberal para a sua primeira mudança, que como nos referimos anteriormente, trata-se da fusão do liberalismo com a democracia majoritária. Embora o número de novos votantes não seja tão grande, pois excluem-se a mulheres e as pessoas sem relativa escolaridade, a inserção de novos cidadãos (em sentido estrito utilizo esta palavra) faz com que mudanças ocorram na legislação infraconstitucional, com o surgimento da primeiras leis trabalhistas e previdenciárias (em geral, na segunda metade do século XIX, na Europa) e da primeira lei liberal antitruste nos Estado Unidos: a Lei Sherman, em 1890.
Com relação ao Direito Econômico, assistimos ao surgimento da primeira lei a combater a concentração econômica, fruto da reconstrução do pensamento liberal autêntico que entendia que a concentração econômica feria de morte o liberalismo, pois atacava a sua essência: a livre iniciativa e a livre concorrência como direito de cada um. Este embate, agora no plano jurídico, legislativo e judicial, que começa no final do século XIX, entre capitalismo liberal e capitalismo conservador, termina no final do século XX com a vitória do capitalismo conservador, que domina o mundo global, impõe sua vontade às debilitadas economias nacionais desnacionalizadas do Terceiro Mundo, e que vive o seu processo de fusão (ou concentração) final, agora em nível mundial. Importante lembrar que o modelo neoliberal é uma criação do capital conservador que no seu momento de expansão global torna-se temporariamente revolucionario, obviamente a seu favor. No momento atual, parece que a esquerda tornou-se conservadora, ao tentar salvar o que ainda resta de duzentos anos de luta social, enquanto o capital conservador ou as megacorporações capitalistas desconstroem duzentos anos de história de maneira cruelmente revolucionária.
Retornando a nossa análise histórica, temos que a crise que se agrava com a exclusão social esbarra na Primeira Guerra Mundial, momento em que surgem dois novos tipos de Estado: o Estado social (ou podemos chamá-lo de social liberal para diferenciarmos da outra forma de Estado social que foi o social fascismo) e o Estado socialista.
O Estado social representa, no plano constitucional, a consagração nas Constituições de direitos sociais (saúde, educação, previdência, transporte, habitação...) e econômicos (direito a políticas economicas que gerem emprego, justa remuneração...) como direitos fundamentais da pessoa humana ao lado dos já consagrados direitos individuais e políticos.
O Estado social começa a surgir com a 2ª revolução francesa de 1848 e a Constituição do mesmo ano, entretanto se afirma, apenas, com as Constituições do México de 1917, fruto da revolução mexicana, que se iniciou em 1910, e principalmente (pela maior influência no movimento constitucional naquele momento) com a Constituição de Weimar, em 1919, Alemanha, fruto da revolução no mesmo ano. Importante lembrar que a mesma Constituição de Weimar serviu a três senhores diferentes. A Constituição alemã recebeu pelo menos três interpretações diferentes: uma social-liberal; uma de caráter socialista-democrática e uma social-autoritária, que abre espaço ao nazismo na Alemanha.
A revolução alemã é fruto de um movimento de soldados, operários e marinheiros que se rebelam contra o Reich e se organizam em torno do SPD (partido socialista democrático alemão), único partido de esquerda legal, que, por esse motivo, entre outros, chega dividido ao poder, em o que nós poderiamos chamar de direita da esquerda (os social-democratas que defendiam a construção do so¬cia¬lismo pela via parlamentar burguesa), o centro da esquerda (reformistas que defendiam uma democracia de base) e a esquerda da esquerda (a vanguarda socialista que defendia a revolução armada ao estilo bolchevique). Obviamente a divisão causa o fracasso, e pouco depois vemos a direita de novo no poder. Importante neste momento ressaltar diversos aspectos do pós-Primeira Guerra, que nos ajuda a melhor visualizar o mundo contemporâneo:

• A Alemanha, já em 1910, é a segunda maior potência industrial do mundo atrás apenas do Estados Unidos, com 40 por cento de sua população ativa de operários.
• Os empresários alemães, já desde o início do século, incutiram um pensamento nacionalista no operariado.
• O grande capital alemão, representado já naquele momento por empresas que hoje dominam o mundo global, para atrair o operariado e desmobilizar o movimento de esquerda, atende a diversas reivindicações antigas do operariado, como a jornada de trabalho reduzida.
• A Alemanha, como grande potência industrial, não dispunha, entretanto, de espaço para a expansão de seu capital industrial poderoso. Enquanto os EUA já tinham declarado a doutrina Monroe, afirmando que a América pertencia ao americanos (leia-se norte-americanos) e nos transformava (nós, latino-americanos) em quintal dos seus interesses; os ingleses dominavam meio mundo, da Austrália ao Canadá, passando pela Índia e África; os franceses tinham colônias na Asia, boa parte da África (noroeste da África e o Maghreb), América do Sul e Central e no Oceano Pacífico; a Alemanha dispunha de três pequenas colônias africanas. A Alemanha precisava de espaço e, ao ser derrotada e humilhada na Primeira Guerra, o pouco espaço que tinha lhe é retirado.
• Já neste momento visualizamos o mundo hoje: os sete grandes e o grande capital de cada um. Após a Primeira Guerra, os vencedores são Estados Unidos, França e Inglaterra (e o Canadá, anexo à Inglaterra) e os grandes derrotados excluídos da repartição do mundo feita pelos vencedores a Alemanha e a Itália (que, embora tenha mudado de lado durante a guerra, foi excluída da repartição do mundo realizada pelos vitoriosos), e o Japão geograficamente excluído, mas uma potência emergente.
• Outro dado importante: naquele momento, diferente de hoje, o que acontecia ao Estado nacional repercutia no grande capital nacional que, portanto, ainda era nacional, uma vez que hoje é global. Portanto, ao se excluir Alemanha, Itália e Japão excluía-se o seu grande capital nacional, ainda hoje nossos conhecidos.
• O movimento fascista e nazista que ganha espaço e poder na década de 20 chega ao poder na Itália, Japão e Alemanha com o apoio deste mesmo grande capital. Porquê? Ora o nazi-fascismo poderia resolver os três grandes problemas do capital nacional alemão, italiano e japonês: espaço, ordem e afastar o perigo socialista. O nazi-fascismo era antiliberal (ao grande capital não interessa liberalismo); antidemocrático (ordem através da violência e economia dirigida a favor do grande capital nacional); anti-socialista e anti-comunista (o nazi-fascismo adotava, de maneira a atrair os trabalhadores, o nome socialismo e uma certa prática social, adotando, entretanto, o discurso da nação proletária, o que deslocava o eixo da luta de classes para a luta entre nações, salvando, desta forma, o capital nacional, que passa a lutar contra a opressão de outras nações ao lado do trabalhador. Daí o nome nacional-socialismo). O nazi-fascismo é ainda anti-semita e ultranacionalista, o que representava o golpe ao socialismo essencialmente internacionalista.
• Com o fim da Segunda Grande Guerra, o eixo (Alemanha, Itália e Japão) é militarmente derrotado, mas perguntamos: quem são os que dividem o mundo hoje? A resposta é fácil: os vencedores Estados Unidos (anexo Canadá), Inglaterra, e França, e os supostos perdedores (todos perdem com uma guerra, principalmente o povo, exceto o grande capital), Alemanha, Itália e Japão.
• Podemos concluir que ao financiar o nazi-fascismo o grande capital nacional alemão, italiano e japonês tinha uma reivindicação: dividir o mundo com os vitoriosos da primeira guerra, reivindicação esta atendida após a segunda guerra.

Após a Segunda Guerra, vemos então surgir um mundo bipolar dividido entre socialismo real, que se tornou burocrático, personalista e totalitário, comandado pela União Soviética, e o mundo capitalista, comandado pelos Estados Unidos. Os Estados Unidos precisavam neste momento de construir na Europa ocidental um Estado de bem-estar social capaz de oferecer estabilidade e barrar a expansão da promessa socialista de bem-estar e repartição de riquezas com o fim do capitalismo.

2 A democracia social européia e a indivisibilidade dos direitos humanos

A Europa conhece, então, um Estado social sem igual no mundo, construido incialmente com dinheiro norte-americano, por intermédio do Plano Marshal.
A repercussão teórica desse Estado social é grande, e uma das consequências do seu sucesso na realidade socioeconômica é justamente a construção da teoria da indivisibilidade ou indissociabilidade dos direitos fundamentais da pessoa humana (os direitos humanos nos planos constitucional e internacional).
O modelo europeu de Estado social é baseado em modelo de economia regulamentada, com o Estado regulando e exercendo atividade econômica, assumindo o oferecimento quase que integral, em alguns casos integral, dos direitos sociais e econômicos.
Com o sucesso econômico do modelo intervencionista e uma economia em constante crescimento, o Estado social europeu, inicialmente apenas assistencialista, torna-se, aos poucos, um modelo includente, fruto mesmo da opção européia, diante do crescimento de arrecadação tributária com o crescimento econômico, universalizar os serviços públicos, sofisticá-los e ampliá-los. Desta forma, de uma mera visão assitencialista, os direitos sociais e econômicos passam a ser condição de exercício de cidadania e liberdade. A teoria da indivisibilidade afirma justamente a condição dos direitos sociais e econômicos como pressupostos de exercício das liberdade políticas e individuais. É como afirmarmos que, para termos liberdade de locomoção, temos de ter acesso ao transporte, ou que, para que tenhamos liberdade de expressão ou liberdade de formação da consciência política, filosófica e religiosa, temos de ter, no mínimo, direito à educação. Esta teoria significa a superação da hipocrísia liberal, ou a compreensão de que a liberdade e a vida existem simplesmente porque o Estado não atenta contra elas. Desta forma, o direito à vida, pela teoria da indivisibilidade, implica vida digna, conceito histórico que implica hoje, pelo menos, acesso à liberdade, à saúde, à educação, ao trabalho, à justa remuneração e à participação no destino do Estado e na construção de seu próprio futuro.
Com relação à democracia, este conceito é revisto, assim como o de cidadania. O cidadão não é mais apenas aquele que vota, mas o que vota, trabalha, tem saúde, lazer e dignidade. A democracia não mais se confunde com os seus instrumentos. Democracia não é voto, mas sim a possibilidade de o povo permanentemente indicar a direção que deve tomar o Estado. Trinta milhões de votos não legitimam ninguém a agir contra o interesse do povo e da nacionalidade. Trinta milhões de votos, ou mais, ou menos, indicam apenas que milhões de eleitores passaram uma procuração para que aquela pessoa e aquele grupo político utilizem essa procuração, esse mandato, para cumprir permantemente a vontade popular. Desta forma, não há democracia apenas com o voto, se não existem poderes do Estado, inclusive o Judiciário, que sejam sensíveis à vontade do povo e da sociedade civil organizada, que deve ser expressa diariamente.
A democracia está seriamente comprometida com a contínua concentração econômica, especialmente a que ocorre na área dos meios de comunicação em todo o mundo. No Brasil, oito famílias dominam os principais meios de comunicação, tendo o poder de influenciar, muitas vezes de maneira determinante, os resultados das eleições e a formação da opinião pública.

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