quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Teoria do Estado 11

Jose Luiz Quadros de Magalhaes


OS ELEMENTOS DO ESTADO MODERNO

1 O povo

Povo é um vocábulo dotado de grande carga emocional e revela o elemento pessoal na constituição e na existência do Estado. O elemento povo não se confunde com população, que é mera expressão numérica, demográfica ou econômica que não revela o vínculo existente entre a pessoa e o Estado. Tampouco confunde-se com a palavra nação, que expressa somente a relação de pertinência a uma comunidade histórico-cultural, ou seja, o compartilhar de valores comuns em uma sintonia bem específica. Em outra palavras, pode-se falar em uma nação sem território, mas jamais em um Estado sem território.
Para alguns autores, o conceito de povo pode ser estabelecido sob um prisma político, denotando “o quadro humano sufragante, que se politizou....ou seja, o corpo eleitoral”9 sob um prisma “jurídico-conjunto de pessoas vinculadas de forma institucional e estável a um determinado ordenamento jurídico,”10 ou sociológico, em que se pode confundir com nação, mas, na maioria dos casos, dela difere. O povo de um Estado nacional surge com a criação do sentimento de pertinência a determinado Estado. Este sentimento de pertinência é aceito, historicamente, sobre sentimentos nacionais preexistentes, como na Espanha, no Reino Unido, na Bélgica, na antiga Iugoslávia, dentre outros.
Na Espanha, exemplo importante para a noção de povo, o sentimento de pertinência a um estado nacional espanhol foi criado sobre o sentimento nacional preexistente de ser galego, basco, catalão ou castelhano. O mesmo ocorre com o Reino Unido (ingleses, escoceses, galeses e irlandeses), com os belgas (flamengos, franceses e alemães) e muitos outros exemplos na Rússia, China, Iugoslávia, etc..
O sentimento de pertinência a um estado nacional é uma criação histórica para a formação de um Estado unificado.
Na formação dos Estados nacionais, podemos identificar varios processos diferentes:

• Os Estados europeus: segundo a história oficial dos vencedores, os Estados nacionais foram formados na Europa, inicialmente, em Portugal, Espanha e França. Sem ignorar a história da China, podemos dizer que os Estados nacionais europeus, nossa tradição teórica, foram formados a partir de nacionalidades preexistentes, onde se cria artificialmente o sentimento de pertinencia a novos valores compartilhados. O sentimento de pertinência pode ser criado a partir de valores comuns, uma história comum, uma religião comum, um projeto político comum ou cada um desses elementos combinados.
• O segundo modelo foi criado a partir da divisão artificial de Estados pelo processo de exploração e destruição que os europeus promoveram na África. As invasões européias na África significaram a divisão da África em diversos Estados nacionais artificiais. Em um mesmo espaço, foram juntadas nacionalidades, culturas, idiomas diferentes. Países como Angola (8 idiomas diferentes) e África do Sul (11 idiomas diferentes). Não, há neste caso, um Estado nacional ainda, pois o processo de contrução de uma identidade ainda está em curso em grande parte desses Estados com grande dificuldade.
• O terceiro modelo é o que ocorreu com o mundo árabe muçulmano ou islâmico. O Islã foi capaz, a partir do século VIII, de espalhar a poderosa cultura árabe por toda a península arábica no Oriente Médio e pelo norte da África e sul da Europa. Formava-se, então, um mundo pan-árabe unido, que foi, ao contrário do que ocorreu com a África austral e o sul da África, artificialmente dividido pelos europeus, ou foi incentivada a diferença sobre a identidade. Daí surgem Estados artificiais como o Kwait, estado das empresas globais de petróleo. Enquanto no resto da África um mesmo Estado continha várias culturas, no mundo islâmico, uma cultura com grande identidade era divida em Estados, muitas vezes, artificialmente, inimigos.
• O quarto modelo é o dos Estados americanos. A partir da colonização européia e com o assassinato em massa da população “indígena” (povos originários) preexistente, com uma cultura riquíssima destruída pelos espanhois, portugueses e ingleses, criou-se uma nova cultura e novos valores, compartilhados pelos imigrantes forçados africanos, pelos imigrantes europeus e pela população local oprimida e excluída até hoje. Não se pode negar a riqueza da cultura americana (América do Sul, Central e do Norte). A identidade dos povos americanos, espe¬cialmente dos povos latino-americanos, foi construída com sangue, violência, sonho, poesia, luta e sensibilidade, significando hoje uma das culturas mais sensíveis e micigenadas do mundo. Em 2009 entrou em vigor duas Constituições que podem mudar a história da América. Confira a respeito o meu texto sobre Estado Plurinacional disponível na rede.
• Os estados asiáticos, que foram, como a China, os primeiros Estados do mundo (ao contrário da história oficial européia estudada no Brasil), mantêm até hoje a capacidade de identidade e de evolução; a adaptação a um mundo que não é seu, com a manutenção de uma cultura milenar. Se estudarmos o ideograma chinês para China, está ali presente a idéia de território, povo e poder.

2 O território

O território, por sua vez, é a base geográfica do poder do Estado e tem como partes à “terra firme, com as águas aí compreendidas, o mar territorial, o subsolo e plataforma continental, bem como o espaço aéreo,” ensina Paulo Bonavides.11
A noção de território como um componente necessário do Estado só surge com o Estado Moderno.
A divergência doutrinária acerca da necessidade de incluir-se o território como elemento do Estado, indispensável para a sua existência, é esplanada por Dalmo Dallari de forma bastante didática:

“Enquanto para muitos ele é elemento constitutivo essencial do Estado, sendo um dos elementos materiais indispensáveis, outros o aceitam como condição necessária exterior ao Estado. [...] A concepção de Kelsen, que, também considerando a delimitação territorial uma necessidade, diz que assim é porque tal delimitação é que torna possível a vigência simultânea de muitas ordens estatais. O território não chega a ser, portanto (na concepção de Kelsen), um componente do Estado, mas é o espaço ao qual circunscreve a validade da ordem jurídica estatal, pois, embora a eficácia de suas normas possa ir além dos limites territoriais, sua validade como ordem jurídica estatal depende de um certo espaço, ocupado com exclusividade.”12

Passemos, então, a analisar as principais teorias que tentam determinar a natureza jurídica do território com base no tratamento original dado ao assunto por Paulo Bonavides.13
As diversas teorias acerca da natureza jurídica do território podem ser agrupadas da seguinte forma, ensina Paulo Bonavides:

a) Teoria do Território-Patrimônio;
b) Teoria do Território-Objeto;
c) Teoria do Território-Espaço;
d) Teoria do Território-Competência.14

• De acordo com a Teoria Território-Patrimônio, não há diferença entre o poder de imperium e o do dominium, já que senhor feudal era o titular de ambos. Nesta concepção, o poder do Estado sobre o território tem a mesma natureza do direito do proprietário sobre o seu bem imóvel. Essa teoria predominou na Idade Média.
• Para a Teoria do Território-Objeto, o território é coisa, mas “não do ponto de vista do direito privado, qual se fazia na concepção puramente patrimonial, [é coisa] do ponto de vista do direito público.”15 Neste contexto, a soberania territorial é vista sob os aspectos, negativo e positivo. Este “encerra a competência do Estado de empregar terras ou o território para atender a fins estatais; aquele revela a exclusão do poder de qualquer outro Estado sobre o mesmo território”, ensina Paulo Bonavides.16
• A Teoria do Território-Espaço anuncia que o território é a extensão espacial da soberania do Estado. Destaque-se, entretanto, que “o poder do Estado não é o poder sobre o território, mas poder no território.”17 Esta concepção tem como base o fato de o Estado ter um direito de caráter pessoal, inerente à idéia de imperium, tanto que alguns adeptos dessa orientação chegam a considerar o território como parte da personalidade jurídica do Estado, ensina Dalmo Dallari.18
• Por fim, a Teoria do Território-Competência, difundida sobretudo na chamada Escola de Viena, na qual Hans Kelsen é o maior expoente, da qual se depreende que o território é o âmbito de validade da ordem jurídica do Estado, o que tem que ser entendido a partir da constatação de que essa teoria desdobra a concepção de território em sentido amplo e em sentido estrito. Na concepção restrita, o território é a esfera da competência local e, num sentido amplo, é o âmbito de validade da ordem estatal, ou seja, a delimitação espacial de validade das normas jurídicas. Kelsen aduz ainda que

“O território de um Estado costuma ser considerado como uma porção definitiva da superfície da Terra. Essa idéia é incorreta. O território de um Estado, como esfera territorial de validade da ordem jurídica nacional, não é um plano, mas um espaço de três dimensões.19
É característico da teoria tradicional considerar o espaço – o território –, mas não o tempo, como um ‘elemento’ do Estado. No entanto, um Estado existe não apenas no espaço, mas também no tempo, e, se considerarmos o território um elemento do estado, então temos que considerar também o período de sua sobrevivência como um elemento do Estado.”20

Examinados os elementos materiais do Estado, deixaremos a análise de seu elemento formal (poder) quando tratarmos da questão da soberania.


10 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed., 7. tir. São Paulo: Malheiros, 1999, p.75.
11 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p.88.
12 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Editora Saraiva, São Paulo, 29 edição, 2010, p. 87.
13 DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 89.
14 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 99-105.
15 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 100
16 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 101.
17 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 102.
18 DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 89.
19 KELSEN, Hans. Op. cit., p. 312.
20 KELSEN, Hans. Op. cit., p. 314.

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