5.2 O Ombudsman nos municípios
Jose Luiz Quadros de Magalhães
Para o nosso trabalho, interessa a figura do ombudsman (ou podemos chamá-lo de “ouvidor” ou ainda de provedor de justiça) como aquela instituição que, pertencendo à estrutura do Estado, tem autonomia suficiente e, portanto, compromisso apenas com a vontade popular e a ordem constitucional e seus princípios, para atuar como o canal mais e sensível de comunicação entre os poderes do Estado e do povo.
Desta forma, a figura do ombudsman tem uma função específica e extremamente importante, principalmente na esfera municipal, onde, próximo ao povo, pode expressar o sentimento deste em diversos momentos do funcionamento dos órgãos estatais e do seu relacionamento com a sociedade civil.
Não pretendemos sugerir a adoção do ombudsman exatamente como este é organizado nos países nórdicos nem qualquer outro modelo. A idéia de inserir esse mecanismo nas várias esferas da Federação e, especialmente, nos municípios, tem uma função específica, que deve se adequar à realidade de cada comunidade, de cada região, de acordo com uma sistemática constitucional que estabeleça um Ministério Público extremamente ativo, como fiscal da lei e da Constituição e defensor dos direitos individuais, sociais e difusos, indisponíveis, portanto, um importante mecanismo de defesa dos direitos humanos.
A Constituição estabelece ainda, como defensor dos direitos do povo, a Defensoria Pública, que atua na defesa de direitos da pessoa, órgão que merece o reconhecimento necessário, pois, dentro do sistema constitucional de proteção dos direitos da pessoa, atua de forma complementar ao Ministério Público, nos casos concretos individuais como advogado do povo. Ele deve ter autonomia suficiente com relação ao governo, assim como o Ministério Público, e tratamento de carreira isonômico.
Como advogado do Estado aparece, na Constituição Federal, a Advocacia da União. Não se pode esquecer de que constitucionalmente os seus membros têm um compromisso com o interesse público e a ordem constitucional, não podendo transformar-se em advogados de governos, que atuam muitas vezes desvirtuando o processo, que, de meio de realização da justiça, transforma-se em mecanismo de obstaculização da mesma. Isso não pode ser permitido pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.
Portanto, estamos diante de um sistema de proteção dos direitos da pessoa altamente desenvolvido na sua concepção constitucional. O ombudsman, nessa sistemática, deve ser responsável por criar o vínculo do povo com os vários poderes do Estado e, inclusive, com essas instituições, transformando-se no interlocutor sensível e fiel às aspirações populares de justiça, que muitas vezes os poderes do Estado e os órgãos garantidores da democracia e dos direitos da pessoa não podem perceber. Desta forma, o meio de atuação do ombudsman nas diversas esferas da Federação será adaptada à realidade, tendo, na União e no Estado, uma função muitas vezes de indicar ao Estado, por escrito, seus poderes e órgãos, recomendações que expressem a vontade popular, sendo que, no município, o que poderia ser copiado nas outra esferas da Federação; teria a importante tarefa de convocar plebiscitos para a dissolução do parlamento ou a destituição do diretório, assim como indicar, dentro de limites estabelecidos nas legislações específicas, quais matérias, sejam legislativas ou executivas, devem ser submetidas à apreciação popular. Trata-se, pois, de uma canal de comunicação da população com o Estado, seus poderes e órgãos, que, embora não tendo poder efetivo, como instituição isolada, de tomar decisões que independam da expressão da vontade popular, transforma-se em ponto de comunicação fundamental no sistema diretorial municipal aqui sugerido, como mecanismo que possibilite o desenvolvimento permanente da democracia e da cidadania.
A doutrina que estuda a introdução do ombudsman no Brasil tem procurado definir essa instituição, quase sempre, de forma genérica.
Alguns pontos na sua conceituação, buscados no modelo escandinavo que lhe deu origem, colocam-no como órgão do Legislativo eleito pelo mesmo. Neste ponto, sugeriríamos uma modificação, no sentido de se partir para uma eleição direta do ombudsman, pelo menos em âmbito municipal.
O ponto central da idéia do ombudsman é a fiscalização da atividade administrativa, sendo que sugerimos que este não se torne, no Brasil, apenas mais uma cópia de instituições que foram criadas em outras nações com história e cultura diferentes. Não se pode apenas introduzir o instituto no Brasil conforme foi criado em outros países, mas, aproveitando o que a instituição tem de melhor, que é a criação de uma canal de comunicação permanente e sensível à vontade e à realidade da população, adaptá-lo à nossa realidade constitucional e social, criando novas funções e atribuições, e, porque não, mudando o seu nome para algo mais próximo de nossa tradição e cultura em mutação.
O instituto do ombudsman surge na Suécia, em 1809, como um mecanismo de controle do Executivo por parte do Legislativo, dentro de um sistema em que os poderes fiscalizavam uns aos outros, evitando que houvesse desrespeito à lei e à nova Constituição votada naquele mesmo ano.
Em 1915, na Suécia, a figura do ombudsman foi desdobrada em duas: uma com a finalidade de fiscalizar a administração civil e outra para fiscalizar a administração militar. Mais tarde, em 1967, esta instituição foi desdobrada em três, cada uma com sua função específica.
É necessário ressaltar a característica especial da administração sueca, onde há uma separação entre governo e administração, idéia que já tivemos oportunidade de sugerir nas áreas de educação e saúde. Neste caso, as autoridades administrativas centrais não estão na dependência direta dos ministros, não respondendo perante eles, não sendo responsável o governo pela atividade das juntas administrativas centrais, modelo este bastante diferente do modelo francês, aqui adotado.27
O modelo sueco foi adotado primeiramente pelos países vizinhos, seguindo-se a Finlândia em 1919, a Dinamarca em 1953 e a Noruega em 1952, sendo que, neste último, criou-se inicialmente um Comitê do ombudsman, órgão coligado, com a função de conhecer da reclamação dos militares no que diz respeito à sua vida material, aos direitos econômicos e sociais e ao tempo de serviço militar, sendo que a instituição depois estendidas ao civis.
Como se vê, embora mantendo a idéia principal de um interl¬o¬cu¬tor, de uma instituição que cuida de receber, perceber e sentir as necessidades do grupo e atuar em seu nome, o ombudsman terá, em países diferentes, adaptações, que são necessárias, desde que mantida a idéia principal da instituição.
Fora dos países escandinavos, o primeiro a impor a idéia com variações que a adaptassem à sua realidade foi a Alemanha Ocidental, a República Federal Alemã, em 1957, com a finalidade de fiscalizar as forças armadas no sentido de evitar o aparecimento de velhos hábitos que violavam sistematicamente os direitos fundamentais dos militares.
A figura do ombudsman como fiscal e, principalmente, como um canal de comunicação, um ponto de contato ou de ligação entre administrados e administradores, tanto no setor da administração civil como no da militar, e sua ligação com a proteção dos direitos humanos foi, a partir daí, difundida para muitos Estados, especialmente europeus e recentemente americanos, após o período de rede¬mo¬cra¬tização desse continente, recebendo nomes e versões diferentes em cada um deles.
Em muitos países, com a elaboração de novas Constituições democráticas, essas idéias foram incorporadas em novas instituições ou em instituições antigas que foram totalmente modificadas em sua estrutura e função, absorvendo muito dessa figura.
A Constituição portuguesa, por exemplo, que marca a redemocratização de Portugal após o longo período de Salazarismo, traz a figura do Provedor de Justiça, criado pelo Decreto-Lei n. 212/75, de 21 de abril de 1975, sendo, posteriormente, consagrado no art. 24 da Constituição portuguesa, o que implicou a necessidade de definir em um estatuto a figura desse Provedor de Justiça como órgão público independente voltado à defesa dos direitos e interesses dos cidadãos, por intermédio da garantia de legalidade e justiça da administração, o que foi feito pela Lei n. 81, de 22 de novembro de 1977.
Os arts. 1º e 2º dessa lei portuguesa definem o Provedor como um órgão público independente, que tem como função principal a defesa dos direitos, liberdades, garantias e interesses legítimos dos cidadãos, assegurando, por meios informais, a justiça e a legalidade da Administração Pública.
Os cidadãos apresentarão suas queixas ao Provedor de Justiça, por ações ou omissões dos poderes públicos, o qual as apreciará sem poder decisório, dirigindo os órgãos competentes as recomendações necessárias para prevenir e reparar injustiças.
Segundo esta lei portuguesa, o Provedor de Justiça será designado pela Assembléia da República, nos termos do regimento respectivo, e tomará posse perante o seu presidente, recaindo a nomeação em cidadão que preencha os requisitos de elegibilidade e goze de comprovada reputação de integridade e independência.
O ombudsman municipal sugerido neste trabalho guarda, de principal, a idéia de um ouvidor das queixas do povo e, mais do que isto, um procurador atuante na fiscalização da atuação do Poder Executivo e Legislativo locais, podendo, conforme for a atuação desses poderes e a repercussão de suas políticas, sugerir plebiscito que submeta projetos de lei e políticas públicas ao crivo popular, assim como a própria administração diretorial e o parlamento, com limites materiais, quantitativos e temporais estabelecidos em lei municipal, no sentido de evitar que o ombudsman, de fiscal e ouvidor do povo, transforme-se em figura mais importante do que este. Por esse motivo, só poderá atuar mediante manifestação popular expressa.
Trata-se, pois, de uma figura de ouvidor e defensor dos direitos e interesses da população, com uma atuação que não se reduz ao controle de legalidade e constitucionalidade, mas efetivamente a um controle democrático, evitando que os poderes eleitos distanciem-se da vontade de seus representados. É uma função importante a do ombudsman municipal, para o desenvolvimento da democracia.
É necessário acrescentar que a Constituição brasileira de 1988 trouxe inovações importantes para o órgão que antes tinha quase nenhum contato com a população, transformando o Ministério Público em guardião dos direitos humanos, atuando na proteção dos direitos sociais, econômicos, individuais e políticos, fiscalizando a legalidade e constitucionalidade dos atos dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, o que tem ocorrido efetivamente, além da proteção do meio ambiente e outros direitos fundamentais.
Além do Ministério Público, existe ainda a intenção de valorizar a Defensoria Pública, como já nos referimos anteriormente.
Por esse motivo, a criação de ombudsman no Brasil deve inserir-se nesta realidade criada pela Constituição de 1988, no sentido de evitar a criação de um órgão meramente intermediário entre o Ministério Público e o povo, e a Defensoria Pública e o povo, órgãos que têm de estar cada vez mais próximos da população.
Exemplo de atuação marcante nesse sentido ocorre no Estado de Minas Gerais, onde o Coordenadoria de Direitos Humanos do Ministério Público tem atuação fundamental no combate à violência policial contra cidadãos, com inúmeros processos instaurados.
A presença de membros do Ministério Público Estadual no Conselho Estadual de Direitos Humanos é outro dado importante na aproximação desta importante instituição de garantia da democracia e dos direitos humanos com a população.
Da mesma forma, o Ministério Público Federal, ou a Procuradoria da República no Estado de Minas Gerais, tem tido atuação marcante na fiscalização da administração pública federal e da observância da lei e da Constituição.
Sendo esta uma realidade existente, repetimos que a figura de um ombudsman municipal não vai se sobrepor ou simplesmente burocratizar a estrutura já existente, mas terá uma função democrática diferenciada e de extrema importância, pois não irá se limitar a fiscalizar o cumprimento de lei e da Constituição municipal, mas sua função mais importante será, como ouvidor e procurador do povo, atuar na fiscalização do funcionamento das instituições democráticas, assegurando que o cumprimento do mandato conferido pelo povo a seus representantes seja efetivamente cumprido de acordo com a vontade deste. Nessa perspectiva, não poderíamos ter um ombu¬ds¬man escolhido pelo parlamento, mas sim diretamente pelo povo. Emerge daí a incrementação da organização da sociedade civil como anseio do Constituinte de 88.
Outros países americanos inspiram-se na figura do ombuds¬man para criar um defensor dos direitos humanos. A Constituição argentina, por exemplo, traz a figura do defensor do povo no seu art. 86 (Capítulo Sétimo, que trata especificamente deste tema). Esse artigo traz o defensor do povo como um órgão independente, instituído no âmbito do Congresso da Nação, atuando com plena autonomia funcional, sem receber instruções de nenhuma autoridade. Sua missão é a defesa e a proteção dos direitos humanos e demais direitos, garantias e interesses tutelados na Constituição daquele país, diante de fatos, atos ou omissões na Administração, exercendo o controle das funções administrativas públicas.
Tem o defensor público, segundo a Constituição argentina, legitimação processual, sendo designado e removido pelo Congresso por intermédio do voto de dois terços dos membros presentes em cada uma das câmaras. O seu mandato dura cinco anos, com uma recondução.
A Constituição de Colômbia também estabelece um defensor do povo, ao qual cabe a guarda dos direitos humanos, tendo capacidade de postulação judicial, com atividades que podem ser classificadas como de prevenção e de censura moral, atividades em matéria de legislação, de mediador e, por último, como diretor do serviço de defensoria pública, grande novidade no desenho colombiano da figura do ombudsman.28
No Peru, a Constituição vigente determina, como funções da Defensoria do Povo, a defesa e proteção dos direitos constitucionais e fundamentais da pessoa e da comunidade, assim como a supervisão da administração pública e o oferecimento de serviços público para os cidadãos.
Seguindo a mesma linha, foi incluída, na Constituição mexicana, a figura do ombudsman, quando, em janeiro de 1992, foi aprovada uma emenda aditiva ao art. 102, alínea b, onde, além de se constitu¬cio¬nalizar o ombudsman, criou-se todo um sistema nacional de proteção não jurisdicional de direitos humanos.
Muitos outros casos poderiam ser citados aqui, entretanto, o que pretendemos demonstrar com tudo que foi dito é o fato de que a figura do ombudsman, como fiscal da administração e ponto de contato ou comunicação mais próxima e institucional dentro da estrutura do Estado, tem inúmeras variantes, desde sua origem na Suécia, e isso reflete culturas, histórias e necessidades diferentes.
No Brasil, a instituição de um Ministério Púbico e de uma Defensoria Pública modernos no âmbito da União e dos Estados membros tem suprido, na prática, em alguns belos exemplos, como os citados no Estado de Minas Gerais, o papel das figuras criadas na América Latina.
Entretanto, necessitamos urgentemente da figura de um ouvidor/procurador que garanta a cidadania, ou, em outras palavras, que garanta que a voz e a fala da população cheguem até seus representantes, e mais, no caso de não se estabelecer a comunicação desejada, que este órgão tenha a função de estabelecer que o povo possa dizer diretamente sua vontade nas urnas, por meio dos mecanismos já discutidos para o nosso ombudsman municipal, ou talvez, mais adequado ao nosso idioma e às nossas necessidades, o nosso ouvidor/procurador da cidadania.
Com o papel de controle político dos poderes do Estado e com uma estrutura que permita estar sensível às expectativas da população, o ouvidor/procurador da cidadania virá somar à estrutura já existente, cobrindo uma parte fundamental, pois sua atuação não se resume ao controle de legalidade e constitucionalidade, mas principalmente, e esta é a inovação no sistema brasileiro, refere-se à legitimação permanente da atuação estatal.
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