domingo, 22 de agosto de 2010

26- MIDIA LIVRE - Liberdade de Imprensa? - Texto de Habermas

Sobre o tema, com a palavra

JÜRGEN HABERMAS

Semanas atrás, a página de economia do jornal alemão "Die Zeit"
assustou seus leitores com a manchete "O quarto poder corre perigo?".
Tratava-se da notícia alarmante de que o "Süddeutsche Zeitung" rumava
para um futuro econômico de incertezas.
A maioria dos acionistas quer se ver livre do jornal; caso as coisas
se encaminhem para um leilão, é possível que um dos dois bons diários
supra-regionais da Alemanha [o outro é o "Frankfurter Allgemeine"]
caia nas mãos de investidores privados, fundos de investimento ou
conglomerados de mídia.
Haverá quem diga: "Business as usual" [negócios, como sempre]. O que
poderia haver de alarmante no fato de que os proprietários queiram
fazer uso de seu direito de se desfazer de seus negócios, sejam quais
forem seus motivos?
A crise dos jornais, desencadeada no começo de 2002 pelo colapso do
mercado publicitário, ficou para trás - no "Süddeutsche Zeitung" e em
outros órgãos de imprensa da mesma dimensão. As famílias que agora se
dispõem a vender sua participação detêm 62,5% das ações e escolheram
um momento propício.
Apesar da concorrência digital e dos novos hábitos de leitura, os
lucros vêm aumentando.
Deixando de lado a boa conjuntura econômica, os lucros se devem
sobretudo a medidas de racionalização com impacto direto sobre o
desempenho e a margem de manobra das redações. Notícias bombásticas à
maneira do jornalismo norte-americano ditam a tendência atual.
Assim, por exemplo, o "Boston Globe", um dos poucos jornais de centro-
esquerda dos EUA, teve que renunciar a todos os seus correspondentes
no estrangeiro, enquanto os grandes encouraçados da imprensa
nacional -como o "Washington Post" e o "New York Times"- temem a
capitulação diante de fundos ou conglomerados ávidos por "sanear"
jornais em vista de taxas de lucro descabidas; no caso do "Los
Angeles Times", esse já é fato consumado.

Jugo do lucro
Há três semanas, o "Die Zeit" voltou à carga, falando de um "ataque
de Wall Street à imprensa dos EUA".
O que há por trás desse tipo de manchete? Certamente, o temor de que
os mercados não façam justiça à dupla função que a imprensa de
qualidade até hoje desempenhou: atender à demanda por informação e
formação, sem comprometer taxas de lucro aceitáveis.
Mas os lucros em alta não serão uma confirmação de que
jornais "enxutos" satisfazem melhor os desejos de seus consumidores?
Conceitos vagos como "profissional", "arrojado" ou "sério" não servem
apenas para velar a preeminência concedida ao leitor adulto, que sabe
o que quer?
A imprensa terá o direito de, sob o pretexto da "qualidade", cercear
a liberdade de escolha de seus leitores?
Por que forçar a leitura de reportagens áridas em vez
de "infotainment" [fusão, em inglês, das palavras "information"
e "entertainment", informação e entretenimento], comentários
objetivos e argumentos circunstanciados, ao invés de encenações
apelativas de personalidades e acontecimentos?
A objeção que se manifesta nessas questões se baseia na suposição
polêmica de que os consumidores escolhem com autonomia, segundo suas
preferências pessoais. Mas essa espécie de verdade acaciana
certamente induz ao erro quando se trata de uma mercadoria tão
peculiar quanto a informação política e cultural. Pois essa
mercadoria a um só tempo atende e transforma as preferências de seus
consumidores.

Formação em massa
Não há dúvida de que leitores, ouvintes e espectadores seguem suas
preferências ao fazer uso dos meios de comunicação: querem se
divertir ou se distrair, querem se informar ou tomar parte em debates
públicos.
Mas, quando se interessam por um programa político ou cultural,
quando recebem a "bênção matinal realista" da leitura de jornais,
todos se expõem -com alguma medida de autopaternalismo- a um processo
de aprendizado de resultados imprevisíveis.
No curso de uma leitura, novas preferências, convicções ou juízos
podem se formar.
A metapreferência que orienta uma tal leitura se dirige então àquelas
prioridades que se exprimem na auto-imagem de um jornalismo
independente e que fundamentam o prestígio da imprensa de qualidade.
A polêmica sobre o caráter peculiar da mercadoria "informação e
formação" faz pensar no slogan que fez furor quando do surgimento da
televisão: essa nova mídia não seria mais que "uma torradeira com
imagens".
Pensava-se que a produção e o consumo de programas televisivos podiam
ser deixados inteiramente a cargo do mercado. Desde então, as
empresas de comunicação cuidam de fornecer programas para seus
espectadores enquanto vendem a atenção do público a seus anunciantes.
Sempre que imperou sem peias, esse modo de organização causou danos
políticos e culturais. O sistema "híbrido" de televisão [na Alemanha]
é uma tentativa de remediar o mal.
E as leis locais, as decisões de tribunais federais e os princípios
de programação das emissoras públicas refletem a noção de que as
mídias eletrônicas não devem satisfazer apenas as necessidades mais
comercializáveis dos consumidores.
Ouvintes e espectadores não são apenas consumidores mas também
cidadãos com direito à participação cultural, à observação da vida
política e à voz na formação de opinião.
Com base nesses direitos, não é o caso de deixar programas voltados a
tais necessidades fundamentais da população à mercê da conveniência
publicitária ou do apoio de patrocinadores.
Mais ainda, as taxas que financiam esses serviços também não devem
variar ao sabor dos orçamentos locais, isto é, da conjuntura
econômica -é o que argumentam algumas emissoras num processo contra
os governos locais, em trâmite no Supremo Tribunal Federal alemão.
A idéia de uma reserva pública voltada para a mídia eletrônica pode
ser interessante.
Mas algo assim poderia servir de modelo para a organização de jornais
e revistas "sérios", como o "Süddeutsche Zeitung" ou o "Frankfurter
Allgemeine Zeitung", "Die Zeit" ou "Der Spiegel", para não falar das
revistas mensais mais ambiciosas?

Efeito político
O resultado de um estudo sobre fluxos de comunicação pode ter
interesse nesse contexto: ao menos no âmbito da comunicação política -
ou seja, para o leitor enquanto cidadão-, a imprensa de qualidade
desempenha um papel de "liderança": o noticiário político do rádio e
da televisão depende em larga escala dos temas e das contribuições
provenientes do jornalismo "argumentativo".
Suponhamos que uma dessas redações caia nas mãos de investidores que
trabalham com lucros rápidos e prazos curtos: a reestruturação e o
enxugamento nesses lugares estratégicos não tardarão a pôr em risco
os padrões jornalísticos e a afetar em cheio a vida política.
Pois a comunicação pública perde vitalidade discursiva quando lhe
falta informação fundamentada ou discussão vivaz, coisas que não se
obtêm sem custos.
A esfera pública não teria mais como opor resistência às tendências
populistas e não seria mais capaz de desempenhar funções que lhe
cabem no quadro de um Estado democrático de Direito.
Vivemos em sociedades pluralistas. O processo de decisão democrático
só pode ultrapassar as cisões profundas entre visões de mundo opostas
se houver algum vínculo legitimador aos olhos de todos os cidadãos.
O processo de decisão deve conjugar inclusão (isto é, a participação
universal em pé de igualdade) e condução discursiva do conflito de
opiniões.
Pois tão-somente a discussão deliberativa fundamenta a suposição de
que, no longo prazo, os processos democráticos propiciam resultados
mais ou menos racionais.
A formação de opinião por via democrática tem uma dimensão
epistêmica, uma vez que envolve a crítica de afirmações e juízos
errôneos.
Esse é o papel de uma esfera pública dotada de vitalidade discursiva.
Esse papel se evidencia intuitivamente tão logo se tenha em mente a
diferença entre o conflito público de opiniões concorrentes e a
divulgação de pesquisas de opinião.
Opiniões que se formam por meio de discussão e polêmica são, a
despeito de toda dissonância, filtradas por informações e argumentos,
enquanto as pesquisas de opinião apenas invocam opiniões latentes em
estado bruto ou inerte.

Mediação
É claro que os fluxos díspares de comunicação numa esfera pública
dominada pelos meios de comunicação de massa não permitem o tipo de
discussão ou consulta regrada que tem lugar em tribunais ou sessões
parlamentares.
Mas isso também não é necessário, pois a esfera pública é apenas um
dos elos relevantes: ela faz as vezes de mediação entre discursos e
discussões nos foros do Estado, de um lado, e as conversas episódicas
ou informais de eleitores potenciais, de outro.
A esfera pública dá sua contribuição à legitimação democrática da
ação estatal ao selecionar temas de relevância política, elabora-os
polemicamente e os vincula a correntes de opinião divergentes.
Por essa via, a comunicação pública estimula e orienta a formação da
opinião e do voto, ao mesmo tempo em que exige transparência e
prontidão do sistema político.
Sem o impulso de uma imprensa voltada à formação de opinião, capaz de
fornecer informação confiável e comentário preciso, a esfera pública
não tem como produzir essa energia.
Quando se trata de gás, eletricidade ou água, o Estado tem a
obrigação de prover as necessidades energéticas da população.
Por que não seria igualmente obrigado a prover essa outra espécie
de "energia", sem a qual o próprio Estado democrático pode acabar
avariado?
O Estado não comete nenhuma "falha sistêmica" quando intervém em
casos específicos para tentar preservar esse bem público que é a
imprensa de qualidade.

Melhores resultados
O problema é apenas de ordem pragmática: como se alcançam os melhores
resultados?
Em certo momento, o governo [do Estado] de Hessen concedeu ao
jornal "Frankfurter Rundschau" um crédito subsidiado -sem sucesso.
Mas as subvenções diretas são apenas um dos meios disponíveis.
Outros caminhos são as fundações com participação pública ou a
renúncia fiscal para famílias envolvidas no ramo.
Nenhuma dessas soluções está livre de problemas. E ainda é preciso
aclimatar a idéia de subvenções a jornais e revistas.
Em termos históricos, a idéia de regular o mercado da imprensa tem
alguma coisa de contra-intuitivo. Afinal, o mercado foi outrora o
cenário em que idéias subversivas puderam se emancipar da repressão
estatal.
Mas o mercado só é capaz de desempenhar essa função se as
determinações econômicas não penetrarem nos poros dos conteúdos
culturais e políticos dispersos no mercado.
Agora, como antes, a crítica adorniana da indústria cultural
constitui o ponto central. A observação cética é indispensável, pois
nenhuma democracia pode se dar ao luxo de uma falha de mercado nesse
setor.

JÜRGEN HABERMAS (1929) é um dos principais filósofos e sociólogos
vivos. Colaborou entre 1955 e 1959 com Adorno e Horkheimer no
Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt, e lecionou nas
universidades de Heidelberg e de Frankfurt. Entre suas obras de maior
impacto traduzidas para o português estão "Mudança Estrutural na
Esfera Pública", "Direito e Democracia" e "Consciência Moral e Agir
Comunicativo" (Tempo Brasileiro). Este texto foi publicado
originalmente no jornal alemão "Süddeutsche Zeitung". Tradução de
Samuel Titan Jr.

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