segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Teoria do Estado 31

2 DEMOCRACIA E AUTORITARISMO
José Luiz Quadros de Magalhães

A doutrina clássica normalmente nos mostra duas tendências opostas de regimes políticos na atualidade, os regimes democráticos e os regimes autoritários: os regimes autocráticos, autoritários os monocráticos caracterizam-se pelo poder político de uma única pessoa. Outro ponto para aprecia-los é o relativo à origem dos governantes e dos órgãos constitucionais, desde que a escolha dos governantes não seja obra dos governados.
Há um problema com relação a esta classificação clássica. É que nem todos estão de acordo quanto à conceituação de democracia, uma vez que as democracias ocidentais permanecem fiéis ao individualismo, ao passo que as populares afirmam que também asseguram a liberdade, mas colocando os determinismos sociais em primeiro lugar.
No final da década de 80, alguns especialistas apontavam para o fato de que as democracias ocidentais, com algumas exceções, dentre elas o Estados Unidos da América do Norte, vinham gradualmente, desde o fim da Segunda Guerra, abandonando o individualismo, ao mesmo tempo que algumas democracias populares européias na década de 80 vinham concedendo maior espaço no campo de ação individual. Tratava-se de uma revisão crítica do individualismo, como também do socialismo estatizante, que levaram a extremos como o individualismo egoísta liberal e o socialismo massificador e estatal, que foram suspensos com a vitória temporária do projeto neoliberal e o fim do socialismo real na Europa oriental.
Os extremos do invividualismo ou do estatismo levaram, no pós-Segunda Guerra, ao comprometimento dos dois modelos de democracia propostas, uma vez que a democracia baseada no individualismo nos Estados Unidos conduziu ao artificialismo do bipar¬ti¬da¬ris¬mo ocasionado por um baixo índice de participação popular e por uma perseguição feroz aos partidos de esquerda na década de 50 e, do outro lado, o partido único, como foi estruturado, deixou uma parcela da sociedade sem representatividade, censurando-se qualquer voz dissonante. Na década de 80, dois processos estavam em curso simultâneamente: a revisão do estatismo massificante de modelo soviético e a ascenção do projeto neoliberal em Estados fortes com Estados Unidos, Japão, Alemanha e Reino Unido. Com a vitória ilusória do neoliberalismo e o esfacelamento do bloco soviético o processo de revisão da democracia socialista e da social democracia foi interrompido.
Apesar de antagônicos, o modelo individualista de “democracia” norte-americana, como o modelo estatizante de “democracia” popular soviética, possuem pontos comuns: a eleição indireta do Executivo, o controle pelos “grupos” dominantes, dos meios de comunicação social (enquanto na União Soviética os meios de comunicação de massa são estatizados e controlados não pela sociedade, mas por uma burocracia, nos Estados Unidos os meios de comunicação são controlados por uma elite econômica que também controla o poder estatal); e, finalmente, a inexistência de uma opção política diferente daquela que se encontra no poder, representada pelo bi¬par¬ti¬darismo norte-americano e o partido único soviético.
Diferença fundamental entre esses dois modelos de “democracias” será a ênfase aos direitos sociais no modelo de democracia popular, em detrimento dos direitos individuais extremamente comprometidos, enquanto, no modelo individualista, encontra-se o exercício dos direitos individuais, sendo que a existência dos direitos sociais depende de uma economia forte e em ascensão, amparada em uma ordem econômica estruturada sobre a exploração do Terceiro Mundo. Nos dois modelos, portanto, tanto os direitos humanos como a democracia (partindo do paradigma da indivisibilidade dos direitos fundamentais ou dos direitos humanos) estão seriamente comprometidos.
Para evitar esse confronto entre o modelo de democracia “ocidental”, que pode ser mais individualista ou mais socializante, e o modelo de “democracias populares”, Juan Ferrando Badia classificou três grandes sistemas políticos marcantes na segunda metade do século XX: o democrático, o social-marxista e o autoritário:

• A democracia clássica liberal tem como fim essencial aperfeiçoar a já existente liberdade baseada no sufrágio universal, no equilíbrio de poderes, no pluralismo de partidos, no autogoverno e na supremacia da lei (é necessário compreender que será nesse modelo de democracia, com ênfase aos direitos individuais e ausência de preocupação social do Estado, que se desenvolverá a democracia social, que implica o oferecimento de direitos sociais, e na democracia econômica).6
• O sistema social-marxista, onde se estabelecem três fases para se chegar a uma democracia marxista, na qual o homem será livre uma vez que libertado da exploração e de sua subordinação às forças da natureza: a ditadura do proletariado, o socialismo e o comunismo ou fase superior. Na fase da ditadura do proletariado e socialista, concebe-se a liberdade exclusivamente como a participação de cada cidadão na construção do comunismo, não tendo sentido falar em liberdades de resistência nem de limitações aos governantes. Na fase final do comunismo, o problema das limitações ao poder dos governantes não existe, uma vez que, na sociedade comunista, o Estado e os governantes não existirão mais. Estaremos, portanto, diante de uma democracia total, de autogestão social integral.7
• O sistema autoritário, especialmente em suas versões do fascismo e do nacionalismo, foi a melhor mostra das transformações que sofre a teoria individualista das liberdades públicas.8

Os regimes autoritários partem do pressuposto da inevitável inferioridade das massa em relação às elites políticas e, especialmente, em relação ao chefe portador de excepcionais qualidades.
Giuseppe de Vergottini acrescenta que o Estado autoritário surgiu para fazer frente ao comunismo ou às formas estatais progressistas. Sua finalidade será manter situações de desigualdade social e econômica e frear os movimentos de reivindicações de igualdade e as formas difusas de participação política.9
O regime autoritário que se firmou nas décadas de 60 e 70, em países latino-americanos como o Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Chile, dentre outros, é, sem dúvida, o pior campo para a existência dos Direitos Humanos, pois não existe respeito a nenhum dos grupos de direitos, sejam individuais, sociais, políticos ou econômicos.
Portanto, neste estudo do Estado e dos sistemas políticos, podemos notar que dois modelos apresentam condições para a afirmação dos Direitos Humanos: a) a democracia social, que reúne elementos do liberalismo, ao assegurar as liberdades fundamentais, e do socialismo, ao assegurar os direitos sociais, democracia econômica e política. Será a partir desse modelo que, aperfeiçoando-se, chegaremos a modelos mais democráticos e participativos de sociedades; b) a democracia socialista, projeto interrompido, mas que neste início de século é retomado pela sociedade civil em todo o mundo (e não pelos partidos socialistas, em geral, cada vez mais próximos da elite econômica e longe do povo. Alguns partidos socialistas perdem o trem da história).
A democracia liberal clássica mostrou-se ineficaz, posto que, ao respeitar as liberdades individuais ignorando os direitos sociais, inviabilizou o exercício destas liberdades para grande parte da população. O sistema marxista-social, nos seus dois primeiros estágios de evolução, dá ênfase aos direitos sociais e econômicos, não havendo, entretanto, o pleno exercício dos direitos individuais. Sem dúvida que, ao atingir o terceiro estágio, estaríamos diante da realização de todos os direitos da pessoa, o que, entretanto, parece distante no atual estágio da evolução humana.
Retornando à democracia social, vamos recorrer a Juan Ferrando Badia, que ressalta a importância do sistema de democracia social que surge do impacto da crítica marxista ao liberalismo e da pressão operária. Foi a partir desse momento que as democracias sociais se afirmaram, sendo que, em alguns casos, que ainda são poucos, houve também a aceitação de certos princípios de democracia econômica.
Com essas modificações essenciais do capitalismo, surgiu o que se pode chamar de capitalismo social, a fusão de princípios liberais com princípios socialistas e o aparecimento dos regimes social-democráticos, mudando o panorama inicial da crítica marxista, sendo possível o surgimento de tendências conciliadores leste-oeste, o que, entretanto, foi destruído pela expansão do projeto neoliberal na década de 90. O entendimento de que parecia ser possível uma fusão do socialismo real e da social democracia deveu-se às revoluções pacíficas (em grande parte dos casos) nos Estados do leste europeu. Deveu-se, também, às mudanças da democracia ocidental, que cada vez incorporava mais do socialismo, como também a uma autocrítica do sistema social-marxista, que passava a modificar determinadas posições em relação às liberdades individuais. Infelizmente o processo de integração leste-oeste foi barrado pela fúria neoliberal, o que pode ser bem visualizado no processo de unificação alemã na década de 90. O que se esperava era uma fusão dos dois Estados soberanos, mas o que ocorreu foi uma incorporação da Alemanha Oriental (que foi extinta) pela Alemanha Ocidental (que permaneceu com sua Constituição, sua moeda e seu sistema econômico, político e social, imposto ao leste).
Ao trabalharmos, portanto, com o sistema político-democrático-social, devemos atentar para as graves distorções que esse sistema apresenta, para que se possa aperfeiçoá-lo até um modelo totalmente democrático da sociedade. É ameaça constante a esse modelo a ausência de democracia econômica e, especialmente, de uma gestão democrática dos meios de comunicação social. Esta ameaça pode ser notada na existência do autoritarismo estatal na realidade, contrapondo-se a uma democracia social delineada na Constituição. A realidade dos fatos sobrepõe-se ao texto constitucional, amparada nos meios de controle da opinião pública, chegando ao que Luis Sanches Agesta chama de “forma autônoma de governo” baseado no carisma de um líder:

“En el horizonte político contemporaneo ha adquirido un reliéve extraordinario una nueva fundamentación del poder de autoridad que exalta la personalidad concreta de un jefe. Este concepto reconoce fáciles precedentes históricos, y hasta cierto punto puede considerarse con una forma de gobierno autónoma, si bien con las limitaciones que resultan de sus propios caracteres.”10

A diferença fundamental desses líderes carismáticos, na atualidade, está em que eles não necessitam amparar-se em um aparato militar repressivo, mas apóiam-se especialmente na propaganda por intermédio dos meios de comunicação de massa condicionantes do comportamento e das consciências. Tudo isso pode fazer parecer que um sistema autoritário tenha a aparência de uma democracia social.
Podemos dizer, com as reflexões até aqui desenvolvidas, que o exercício dos direitos políticos depende do sistema político adotado, com todas as implicações que envolvem esta questão. Neste sentido é que podemos afirmar que, assim como os direitos políticos, como conteúdo dos direitos humanos, são essenciais para os direitos individuais, sociais e econômicos, o pleno exercício das liberdades individuais, dos direitos sociais e a existência de uma democracia econômica são garantia de efetivação dos direitos políticos.
É o mesmo que dizer que, para o exercício dos direitos políticos de forma consciente, é necessária a liberdade de formação da consciência e de expressão (direitos individuais), que dependem do direito social à educação (formação da consciência), o qual, por sua vez, depende de uma democracia econômica, pela distribuição equilibrada de riquezas, evitando a ameaça constante que os privilégios econômicos e o egoísmo privado representam para a democracia.
É de extrema importância a constatação da indivisibilidade dos direitos fundamentais superando a noção liberal dos direitos humanos como grupos estanques de direitos individuais e políticos ou, mesmo, a compreensão dos direitos humanos numa perspectiva neoliberal, onde, somados aos direitos individuais e políticos, aparecem os direitos sociais e econômicos, entretanto entendidos a partir da compreensão liberal, recebendo uma leitura que os considera grupos de direitos estanques, portanto, numa perspectiva meramente clientelista.
Não é difícil visualizar a indivisibilidade dos direitos fundamentais, bastando para isto enumerar os diversos direitos que compõem os grupos de direitos fundamentais mencionados e perceber, do ponto de vista lógico, que não há efetivamente liberdade sem que existam as condições mínimas para o seu exercício, que são os direitos sociais e econômicos, que surgem aí como garantias socioeconômicas de implementação dos direitos individuais e políticos.
Para tornar mais claras as formas democráticas e autoritárias existentes, podemos adotar a seguinte classificação, o que não significa que ela esgote (longe disso) todas as possibilidades de organização democrática da sociedade e do Estado contemporâneos. Como formas mais ou menos democráticas temos:

a) democracia representativa;
b) democracia semidireta;
c) democracia direta;
d) democracia participativa;
e) democracia de concordância ou de consenso.

É claro que estes modelos se integram de formas diferentes, em dimensões e profundidades diferentes, dependendo dos pressupostos de existência de uma sociedade democrática (o que pode ser extraído do estudo do sistema político) nos vários Estados nacionais contemporâneos.
Como formas mais ou menos autoritárias podemos encontrar as seguintes:

a) totalitarismo;
b) ditaduras;
c) regimes constitucionais autoritários;
d) neo-autoritarismo.

Comecemos nosso estudo pela democracia representativa. No que diz respeito à democracia de consenso ou de concordância e a democracia direta, remetemos o leitor ao capítulo onde estudamos o sistema diretorial suíço.

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