segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Teoria do Estado 35

5 DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
José luiz Quadros de Magalhães

Partindo de um enorme leque de classificações, optamos por escolher uma classificação mais simples, que possibilitou visualizar os grupos de direitos fundamentais que compõem os Direitos Humanos, concluindo, no Tomo I deste curso, pela indivisibilidade dos direitos individuais, sociais, políticos econômicos e culturais, sendo que estes últimos destacam-se no Direito Internacional e em Constituições como a espanhola, mas, na Constituição brasileira, podem se encontrar classificados como direitos sociais.
Concluímos pela impossibilidade de se fazer uma leitura que indicasse o tratamento estanque dos vários grupos de direitos que compõem os direitos humanos. Estabelecemos como referencial teórico o que hoje já é aceito pela doutrina de Direito Internacional e parte da doutrina do Direito Constitucional: a indivisibilidade dos Direitos Fundamentais dentro de uma perspectiva do Estado social e Democrático de Direito.
Isso significa que não há que se falar em liberdade sem mecanismos de exercício dessa liberdade. Desta forma, os direitos econômicos e sociais aparecem como garantias socioeconômicas dos direitos individuais e políticos, o velho núcleo de Direitos Humanos numa perspectiva liberal e de certa forma neoliberal.
Muitos textos constitucionais empregaram a expressão “garantias constitucionais” ou “garantias individuais” para significar os direitos individuais neles encontrados. Com o tempo, perceber-se-á que a simples declaração não será suficiente para garantir a sua eficácia.
Podemos perceber que, neste momento, as expressões “garantias constitucionais”ou “garantias de direitos” terão significados diferentes. Na doutrina francesa, a garantia de direitos decorrerá da inserção, nos textos constitucionais, de princípios, institutos ou situações subjetivas, que, logo após passam a ser especialmente assegurados, isto é, garantidos constitucionalmente.
A doutrina alemã, de forma diferente, vai empregar essa expressão para significar os mecanismos jurídicos que dão segurança ao ordenamento constitucional e estabelecem preceitos para a integridade de seu valor normativo.
Utilizando essa expressão para significar os mecanismos jurídicos que garantem a eficácia das normas constitucionais, encontraremos, no Direito brasileiro, garantias como habeas corpus, o habeas data, o mandado de segurança, (individual e coletivo), o mandado de injunção, remédios processuais constitucionais, além de princípios fundamentais do Direito Processual, como o devido processo legal, o juiz natural, a instrução contraditória e a ampla defesa.
Essas concepções de garantias de direitos evoluíram como reflexo da evolução e conseqüente ampliação do leque de direitos fundamentais, aos que se somaram, no início do século, os direitos sociais, econômicos e culturais, como complementação necessária aos direitos individuais e políticos.
Desta forma, podemos dividir as garantias constitucionais em três tipos diferentes, que poderiam ser classificadas como garantias processuais, garantia de rigidez constitucional e garantias socioeconômicas dos direitos individuais e políticos.
Como garantias processuais, poderemos localizar, na Constituição de 1988, garantias específicas e genéricas. O habeas corpus, tradicional remédio processual constitucional, visa proteger especificamente a liberdade de locomoção, enquanto o habeas data garante o direito à informação.
O mandado de segurança individual vem acompanhado da criação do mandado de segurança coletivo, que proporciona às organizações sindicais, entidades de classe ou associações legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano a possibilidade de defesa de direitos de seus membros ou associados, e aos partidos políticos, a defesa dos direitos difusos, que pertencem a todos de forma indivisível e indisponível.
Criaram-se ainda, no Texto de 1988, garantias processuais dirigidas a dispositivos que dependem de regulamentação, que, em geral, são aqueles referentes a direitos sociais e econômicos. O mandado de injunção vem possibilitar a concretização dos dispositivos constitucionais que dependem de norma regulamentadora e têm como objetivo obter do Poder Judiciário, num caso concreto e com efeito inter partes, a regulamentação do direito de forma provisória, até que o faça o órgão ou poder competente.
O objeto de mandado de injunção, portanto, é suprir a carência de norma regulamentadora, possibilitando que o sujeito do direito, que depende da regulamentação, possa usufruir deste. É importante notar que, como na ação de inconstitucionalidade por omissão, o mandado de injunção também é uma forma processual de controle de constitucionalidade, pois supre, para aqueles que o impetrarem, a omissão inconstitucional.
A outra garantia, portanto, é a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, que não se confunde com o mandado de injunção. Além da diferença da legitimidade ativa e passiva, nos termos mesmo da redação do art. 103, incisos I a IX, e do § 2º, a principal diferença está no objeto. O mandado de injunção visa ao pronto exercício do direito, embora ausente a norma regulamentadora. Temos, então, uma decisão judicial supridora da omissão para aquele caso concreto colocado sob apreciação do Poder Judiciário. De forma diferente, a ação de inconstitucionalidade por omissão busca a construção da norma ausente por parte do órgão erga omnes, ao contrário do mandado de injunção, que tem efeito inter partes.
Finalmente, temos ainda, como garantias processuais constitucionais, a ação direta de inconstitucionalidade, com legitimidade ativa restrita às pessoas do art. 103 da Constituição Federal, e a ação popular, bastante valorizada no Texto de 1988, pois amplia sua proteção, possibilitando que, por meio deste remédio processual, possa-se anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
A segunda espécie de garantia constitucional é aquela que chamamos de garantia de rigidez constitucional, que se caracteriza pela inserção de determinados limites à atuação do Poder Público, das pessoas em geral e do legislador infraconstitucional, no que se refere à proteção dos direitos fundamentais.
Exemplificando, podemos visualizar esta espécie de garantia ao fazermos um estudo comparado de textos constitucionais brasileiros, no que diz respeito à inviolabilidade do domicílio. A Constituição de 1937, quando se refere a esse direito, simplesmente declarou o direito à inviolabilidade da casa, “salvas as exceções expressas em lei” (art. 122, § 6º). Não há, aí, nenhuma garantia, mas mera declaração de direito, que deixa livre o legislador infraconstitucional para estabelecer quaisquer casos em que se poderá penetrar no domicílio.
A Constituição de 1967, no seu art. 150, § 10, estabelece que a casa é o asilo inviolável, ninguém podendo nela penetrar, à noite, sem consentimento do morador, a não ser em caso de crime ou desastre, nem durante o dia, fora dos casos e na forma que a lei estabelecer. Temos, aí, um limite expresso relativo aos casos em que se poderá penetrar no domicílio durante a noite, havendo, portanto, uma garantia de rigidez da Constituição, que não permite ao legislador infraconstitucional estabelecer outras hipótese senão aquelas já previstas. Entretanto, o Texto constitucional deixa o legislador livre para estabelecer, para o período do dias, quais casos este entenda para ser necessário regulamentar. Não há, então, garantia de rigidez para o legislador ordinário, mas há para as autoridades e para os cidadãos em geral, que estarão restritos à determinação de lei infraconstitucional, conforme mandamento constitucional.
Finalmente, o Texto de 1988 estabelece, no seu art. 5º, inciso XI, que a “casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.” Temos, neste caso, garantia de rigidez constitucional dirigida ao legislador ordinário, que não poderá estabelecer outros casos além dos ali mencionados, como também, obviamente, são esses limites impostos para todos que, obrigatoriamente, em nosso território, submetem-se à nossa ordem constitucional.
Utilizamos esse exemplo apenas para facilitar o entendimento da expressão “garantia de rigidez constitucional”, aqui empregada.
O último tipo de garantia constitucional é o que podemos classificar como garantias socioeconômicas dos direitos individuais e políticos, conceito que nos levará à percepção da indivisibilidade dos direitos humanos.
Para entendermos o sentido dessas garantias, é necessário percorrer, rapidamente, a evolução do conceito de direitos humanos e mesmo de indivíduo, no Direito Constitucional moderno. O nascente Estado liberal, que se afirmou com a Revolução americana de 1776, a Constituição norte-americana de 1787 e a Revolução francesa de 1789, proclamaram direitos individuais e liberdades públicas que fundamentaram em dois conceitos básicos.
Segundo Charles Tocqueville, existe uma concepção liberal que defende a correlação entre propriedade e liberdade, e uma concepção liberal-democrática, que defende a correlação entre igualdade e liberdade.
Os direitos humanos, nesse período, tiveram como conteúdo apenas direitos individuais e políticos, sendo os direitos políticos sinônimo de uma democracia política extremamente limitada e restrita, vinculada a privilégios econômicos.
Esse liberalismo clássico corresponde, portanto, a um Estado liberal, que traduz o pensamento econômico do laissez-faire laissez-passez, que deixou aos cidadãos a possibilidade do exercício da livre concorrência de modo que o egoísmo de cada um ajudasse a melhoria do todo.
Esse modelo político e econômico levava, no século XIX, a uma concentração econômica que ameaçava o núcleo do pensamento liberal de livre concorrência e da livre iniciativa. Era urgente a intervenção estatal no domínio econômico que viesse possibilitar a sobrevivência do liberalismo, como também urgente era que o Estado liberal incorporasse determinadas reivindicações socialistas por trabalho, previdência, saúde e educação, evitando, com isso, a explosão social que ameaçava os Estados europeus naquele final de século e no início do século XX.
Esses fatos conduziram ao surgimento, como já estudado, do Estado social e Democrático de Direito, que se afirma nas Constituições do México, de 1917, e da Alemanha, de 1919.
Estas Constituições ampliaram o catálogo de direitos fundamentais, acrescentando ao núcleo desses direitos no Estado liberal (os direitos individuais e políticos), novos direitos socioeconômicos e culturais.
É importante ressaltar que não se trata de mera ampliação de direitos e garantias, como interpretam vários constitucionalistas, que caracterizaram esse Estado como um Estado assistencialista, mantendo o núcleo liberal de direitos fundamentais intacto e acrescentando direitos sociais e econômicos, que seriam reflexo da injunção econômica do momento. O Estado, neste sentido, interviria na economia quando necessário para fazer correções e assistiria os necessitados nos momentos de crise econômica. Não há, portanto, nenhuma reformulação no modelo econômico liberal.
Entendemos não ser isso o que propõe o novo modelo constitucional, adotado pela Constituição de 1988.
Na verdade, os direitos sociais e econômicos são verdadeiras garantias socioeconômicas do exercício de direitos individuais e políticos. Não há como separar os direitos individuais e políticos dos direitos sociais e econômicos. Eles são indivisíveis, e esta é a grande contribuição do moderno constitucionalismo.
O que ocorre é, na verdade, o surgimento de um novo conceito de indivíduo portador de todos os direitos que possam permitir a sua completa integração à sociedade em que vive. É um indivíduo que não tem apenas o direito à sobrevivência, o direito à vida biológica, mas direito à vida com dignidade, com trabalho e justa remuneração.
As garantias socioeconômicas são meios de que o indivíduo deve dispor em uma sociedade, em determinado momento histórico, para ser livre. Não há liberdade política sem democracia econômica e social. Esta é a propositura que faz o Estado Democrático e Social de Direito, e é este o sentido da expressão “garantias socioeconômicas de direitos individuais e políticos”.
Os direitos humanos, hoje, são integrados por grupos de direitos indivisíveis, como os direitos individuais, políticos, econômicos e sociais. Um pressupõe o outro necessariamente, e não há como compreender esta nova sistemática partindo de pressupostos liberais. Estes estão ultrapassados.
Podemos dizer que os direitos sociais e econômicos possibilitam a libertação do indivíduo das carências materiais, que o impedem de ser realmente livre.
O debate de indivisibilidade dos direitos humanos também ocorreu no Direito Internacional Público, no qual se superou a dicotomia entre direitos civis e políticos de um lado, como direitos de implementação imediata, e direitos socioeconômicos e culturais de outro, como direitos passíveis de aplicação apenas progressiva.
A célebre Resolução 32/130, de 1977, da ONU, proclamou a in¬divisibilidade e a interdependência de todos os direitos humanos. Percebe-se que, em os direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos teriam pouco sentido para a maioria das pessoas.
Analisando, então, essa classificação proposta das garantias dos direitos fundamentais, vários questionamentos podem surgir a respeito das implicações dessa abordagem, na realidade contemporânea. Duas questões podem ser levantadas neste momento, as quais podemos abordar rapidamente. A primeira diz respeito aos limites do poder constituinte derivado no Texto de 1988.
A Constituição de 1988 coloca este poder de reforma, que é um poder limitado, subordinado e de segundo grau, dividido em duas espécies: emenda e revisão. O poder constituinte derivado de emenda à Constituição caracteriza-se pela ação pontual do texto, alteração esta que está sujeita a um quorum de três quintos, limitando-se a iniciativa da emenda ao Presidente, a um terço dos senadores ou deputados e a mais da metade das Assembléias Legislativas dos Estados membros, que deliberarão por maioria absoluta de seus membros. Esse poder derivado de emenda sofre ainda limites circunstanciais (proibições de funcionar em estado de defesa, estado de sítio e intervenção federal), como também limites materiais no mesmo art. 60, § 4º, incisos I a IV (proibição de emendas tendentes a abolir a forma federativa, a separação dos poderes, a democracia representativa e os direitos individuais e suas garantias).
O art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT prevê a possibilidade de funcionamento, ainda, de um poder constituinte derivado de revisão, sendo que este só poderá existir uma só vez, aplicando-se a este poder, além da limitação temporal do mencionado art. 3º do ADCT, as limitações circunstanciais e materiais previstas no art. 60 para o poder constituinte derivado de emenda.
Partindo desse entendimento, que encontra amparo na doutrina do poder constituinte e de posse dos dados doutrinários já estudados sobre garantias de direitos, podemos concluir que, no exercício do poder constituinte derivado, seja como poder de revisão, seja como poder de emenda, os direitos individuais, políticos sociais e econômicos não poderão ser ameaçados, sendo impossível a restrição ou a retirada do Texto constitucional de 1988, de qualquer direito individual e político, assim como de suas garantias socioeconômicas, sendo inconstitucional qualquer emenda ou revisão que venha de encontro aos princípios da ordem econômica e social. Esses dispositivos podem ser modificados no sentido se sua ampliação ou aperfeiçoamento, que facilite sua implementação.
Finalmente, outro aspecto importante relativo a problemas atuais diz respeito à internacionalização da economia e à mudança dos centros de poder decisional sobre questões políticas econômicas.
Fala-se, hoje, da substituição do Estado-Nação tradicional, protagonista indiscutível do exercício do poder durante quatro ou cinco séculos, por Mega-Estados, entidades macrorregionais, como a União Européia e o Nafta, que assumem o controle do poder político e econômico.
Essa realidade coloca um questionamento fundamental para o papel das Constituições nacionais na proteção dos direitos fundamentais, principalmente no que diz respeito aos direitos sociais e econômicos.
Entendemos que, mesmo com a evolução do Mercado Comum do Cone Sul, será possível e desejável a convivência do modelo nacional e municipal de repartição econômica ao lado de um modelo regional e mesmo internacional.
É fundamental que, no plano internacional, criem-se condições de controle das políticas dos organismos financeiros internacionais, vinculando suas políticas econômicas a princípios dos direitos humanos, presentes nos textos internacionais, possibilitando, com isto, o desejável desenvolvimento regional e nacional e a livre adoção de modelos locais, regionais e nacionais de repartição econômica.
A necessidade da vinculação dessas políticas à implementação dos direitos humanos poderá, certamente, evitar a adoção de políticas econômicas que acarretem grandes custos sociais, o que ocorre invariavelmente no Terceiro Mundo.
Essa preocupação está presente em estudos realizados pelas Nações Unidas, como o estudo de Raul Ferrero, Rapporteur, da subcomissão da luta contra as medidas discriminatórias e da proteção das minorias.
Alerta Raul Ferrero para as imposições do FMI, por exemplo, quando este fornece créditos para ajudar os problemas de balança de pagamentos, obrigando países em desenvolvimento a aplicar políticas internas de conseqüências perigosas, como a aceleração da inflação ou o agravamento do desemprego. Os organismos internacionais, como o FMI, o Banco Mundial e a OMC, devem levar em consideração as repercussões ou conseqüências sociais que podem ter suas recomendações ou receitas para países em desenvolvimento.
É necessário levar para o plano internacional a idéia de condi¬cionamento das políticas econômicas e da ordem econômica internacional aos valores refletidos pelos textos internacionais de direitos humanos, assim como ocorre no plano interno.
As respostas para essas questões muitas vezes têm de ser retiradas da vivência, do debate e da reflexão, para que possamos construir mecanismos eficazes de implementação dos direitos humanos que correspondam às constantes modificações socioeconômicas de nosso tempo.
Devemos discutir sobre a necessidade de construção de um modelo constitucional que crie mecanismos de comunicação e, portanto, de discussão, que permita à população, aos cidadãos de uma comunidade, encontrar as suas próprias respostas para os seus problemas diários e suas expectativas, estando o poder e a estrutura administrativa estatal a serviço dessas transformações permanentes legitimadas pelo processo democrático constitucionalmente assegurado.
A partir dessas reflexões, podemos construir uma nova visão ou concepção da teoria dos direitos fundamentais de pessoa humana. Esta teoria é compatível com a que defendemos anteriormente, pois a faz evoluir, sendo que, em certo aspecto, supera a anterior, principalmente no seu aspecto constitucional, encontrando nos aspectos filosóficos que sustentam a tese da indivisibilidade sua base primeira, a partir da qual podemos evoluir o raciocínio.
Ao defendermos um Estado e uma Constituição essencialmente democrática, que legitima todas as transformações por intermédio do processo democrático de participação, isso significa dizer que os direitos humanos passam a ter a vontade individual política como núcleo essencial.
Entretanto, é de fundamental importância compreender que a afirmação da vontade individual como essência dos direitos humanos nada tem em comum com as teorias liberais.
A nova visão dos direitos humanos, tendo como ponto de concentração os direitos políticos, é decorrente da evolução da teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais, que nada têm em comum com a doutrina que afirma os direitos individuais e políticos como grupos de direitos fundamentais que independem dos direitos sociais e econômicos para existir e ser exercidos.
Portanto, numa nova perspectiva constitucional dos direitos humanos, podemos afirmar que estes devem ter como essência o processo democrático constitucionalmente assegurado, estabelecendo uma democracia participativa por meio de canais constitucionais de comunicação entre cidadãos e a sociedade civil organizada e os órgãos estatais, que têm como dever constitucional assegurar os processos de mudança social, política e econômica, de acordo com os princípios de direitos humanos, universalmente aceitos, o que exclui qualquer vinculação do Texto constitucional com modelos socioeconômicos específicos.
Ao fazermos referência à democracia participativa, ou seja, ao exercício diário da cidadania, como idéia de participação dos indivíduos na construção do seu futuro, essa democracia não se resume em um conceito liberal do direito de voto. Parte da indivisibilidade dos direitos humanos para que a democracia política pressuponha a prática de uma democracia social, sendo que, no Estado Democrático, deixamos para os cidadãos construírem o seu próprio modelo de democracia social e econômica, não oferecendo a Constituição nenhum modelo pronto, econômico e social, como todas as Constituições modernas contêm.
Sejam as Constituições liberais, sejam as sociais ou as socialistas, todas consagram um modelo teórico social e econômico que vincula o Estado e a sociedade.
Ao propormos a exclusão da ordem econômica e social da Constituição Federal, isso implica, obrigatoriamente, a descons¬titu¬cio¬nalização da propriedade privada, que deixa de ser direito fundamental, pois retiramos todos os dispositivos constitucionais referentes a um modelo socioeconômico. Deixar a propriedade privada como direito fundamental significa um retrocesso de pelo menos duzentos anos na história constitucional, pois estamos adotando uma Constituição econômica liberal. A proposta é deixarmos para os cidadãos a opção do modelo socioeconômico na esfera municipal ou micro¬es¬ta¬tal, com a miniaturização dos Estados membros que compõem a Fe¬deração, conforme defendemos em nosso livro Poder Muncipal.25
Os direitos humanos, no conceito de uma nova democracia participativa, teriam, portanto, como conteúdo fundamental a idéia de uma democracia política participativa, na qual o indivíduo tenha voz, fala e comunicação.
Isto implica que, para ter voz, o indivíduo tem de ter canais institucionais para ser ouvido. Este é o processo democrático constitucional.
Para ter fala, o indivíduo deverá ter discurso, ou conteúdo, o que implica a livre formação de consciência política, filosófica e religiosa, que pressupõe, por sua vez, a educação. O direito à educação passa a ser Direito democrático, sem o qual a democracia inviabiliza-se.
Finalmente, a comunicação, que é fundamental no processo de¬mocrático, só existirá se os órgãos e poderes estatais forem efetivamente sensíveis às comunicações estabelecidas na sociedade, cor¬respon¬dendo às indicações desta com relação ao curso das políticas públicas implementadas pelo poder estatal nas esferas estabelecidas dentro de uma Federação.
A nova teoria que tentamos estabelecer dos direitos fundamentais, ou dos direitos humanos na perspectiva constitucional, partindo da teoria da indivisibilidade dos direitos humanos, leva-nos a propor um tratamento diferenciado dos direitos fundamentais à saúde e à educação, direitos que, como vimos, são essenciais para a existência e continuidade do processo democrático nas sociedades complexas contemporâneas.
Esses direitos são garantias do exercício da democracia e, como tal, devem estar desvinculados do governo, seja em que nível for, devendo ser geridos por autonomias constitucionais autoges¬tio¬ná¬rias.
A idéia não é totalmente nova, pelo menos no que se refere às universidades, pois remonta às suas origens no século XII e XIII, sendo consagrada na legislação brasileira desde 1917 e garantida no Texto constitucional, no art. 207, que mantém a autonomia das universidades como verdadeira garantia de permanência e evolução do processo democrático, uma vez que têm a função de produzir e divulgar o conhecimento nas suas mais variadas perspectivas, de forma livre e plural.
Aliás, esse é o sentido originário da autonomia das universidades: desvincular a produção e divulgação do saber dos governos que podem utilizá-los no sentido de manutenção do poder e limitação da expressão científica, vinculando a sua produção a determinados interesses de grupos no poder, interesses estes que podem ser ligados a interesses econômicos, condicionando a produção científica às necessidades criadas por determinado modelo econômico específico, desprezando, por intermédio da ideologia oficial, toda a produção que contrarie ou não seja útil a esse modelo (ideologia aí empregada como distorção da realidade para sua adequação ao modelo autoritariamente imposto pelos que se encontram no poder).
Esse é o sentido da garantia democrática prevista no art. 207, que deve receber leitura sistêmica com o restante do texto e, obviamente, com o capítulo da educação, que estabelece bases democráticas para a gestão do ensino, adequando as instituições de ensino de primeiro, segundo e terceiro graus ao princípio democrático de livre expressão e convivência pacífica de idéias filosóficas, religiosas e políticas, sem nenhum tipo de imposição de qualquer forma de pensar, proibindo-se apenas a divulgação e o funcionamento de instituições que preguem qualquer tipo de preconceito ou discriminação.
Logo, a autonomia que se irá construir, no caso do art. 207 da Constituição, já existente, e das outras defendidas neste trabalho, devem necessariamente respeitar os princípios universais de direitos humanos, construindo sempre modelos de gestão que garantam, de acordo com o espírito da atual Constituição e da Constituição democrática que estudamos, a plena participação no sistema de autogestão de todos o que constroem o sistema educacional ou ainda de saúde.
Para construir o modelo de autonomias democráticas para gerir o sistema de educação e saúde em todas as esferas de poder na Federação, partimos da idéia de autonomia universitária como capacidade de auto-organização e autogoverno, limitada aos princípios democráticos e constitucionais, pois autonomia não se confunde com soberania.
Um aspecto fundamental da autonomia universitária é a idéia essencial de desvinculação do governo, estabelecendo as universidades as políticas de educação superior, tendo a capacidade de proposta orçamentária própria feita diretamente do Congresso Nacional, no caso de universidades federais, e nas respectivas esferas de poder na Federação nos outros casos.
A proposta de regulamentação da autonomia das universidades por lei orgânica das universidades, feita pelos Colégios de Procuradores-Gerais das IFES, em 1996, parte do pressuposto de que a autonomia das universidades, assim como a autonomia conferida ao Ministério Público, necessariamente desvincula essas instituições do governo, assim como de qualquer dos poderes da União, neste caso específico, ou dos Estados e municípios se nesta esfera construir-se a autonomia universitária.
A desvinculação do governo é óbvia, pois, ao considerarmos as autonomias constitucionais das universidades e do Ministério Público como autonomias de garantias do exercício e de continuidade do processo democrático, essas instituições, cada uma cumprindo sua função específica, têm que ter liberdade de organização e de gestão, inclusive e talvez principalmente de gestão financeira, para poder garantir efetivamente a democracia contra intervenções indevidas de governos autoritários, que ganham na América Latina, hoje, contornos bem mais sofisticados que anteriormente, porque construídos sobre uma aparente capa democrática de eleições periódicas.
Desta forma, o Ministério Público deve, com autonomia, fiscalizar o respeito e o cumprimento das leis e da Constituição pelos Estados e seus vários órgãos da administração direta, indireta e fun¬dacional, fiscalizando também a atuação e o respeito ao ordenamento jurídico por parte do Poder Judiciário e do Poder Legislativo. Essas são as atuais funções constitucionais desse importante órgão, que, na Constituição de 1988, transformou-se em um guardião da cidadania, deixando de ter definitivamente aquela feição de órgão que advoga pelo governo. Esta função nem mesmo a Advocacia-Geral da União pode ter, pois sua função constitucional é defender os interesses do Estado, observando o ordenamento constitucional vigente, não podendo ser utilizado para prejudicar os cidadãos em nome de interesses governamentais, pois não são os advogados da União advogados dos governantes. A utilização do processo como mecanismo de simples retardamento do acesso das pessoas ao seu direito deve ser ação repelida com veemência pelo poder jurídico e pelo Ministério Público, com punição dos responsáveis.
De acordo com o mesmo conceito de garantia democrática, mas obviamente nas suas funções específicas, as universidades receberam da Constituição de 1988 autonomia financeira, administrativa e didático-científica, sendo esse dispositivo vigente e aplicável.
Infelizmente, uma grande distância separa a Constituição escrita da Constituição real do País. Por momentos mesmo, podemos visualizar vários textos constitucionais no Brasil. Convivendo lado a lado, temos a Constituição para o governo, que, distante do Texto de 1988, permite ações governamentais constantemente não democráticas, a Constituição para o Poder Judiciário que muitas vezes prorroga uma importante interpretação constitucional para o momento adequado, fazendo um processo de mutação do texto que, por vezes, atende ao interesse do governo, e uma dura Constituição real para a maior parte da população que, ao contrário do que prescreve o texto escrito e interpretado pelos juristas, não tem direito à saúde, à educação, ao trabalho, à justa remuneração etc.
Por esse motivo, as universidades federais, além de defenderem publicamente a auto-aplicabilidade do art. 207, diante da impossibilidade fática do exercício de sua autonomia, passaram a trabalhar pelo projeto de autonomia por intermédio de uma lei complementar, que, a exemplo, do Ministério Público, estabeleceria as bases do funcionamento dessas instituições numa lei orgânica das universidades.
Entendendo que são as primeiras instituições a serem atingidas quando da restrição à democracia ou da evolução do seu permanente processo, as universidades brasileiras querem assegurar o seu importante papel de garantidoras da produção de um saber plural.
A proposta de lei orgânica é importante para ilustrar e fundamentar a idéia que ora advogamos, não apenas para as universidades federais, mas para todo o ensino público de primeiro, segundo e terceiro graus, na União, nos Estados e nos municípios, geridos por autonomias constitucionais que os desvinculem do governo.
Isto porque o ensino e a educação pública são tão básicos, essenciais para a democracia, que são direitos que não podem estar vinculados à vontade de governantes e a políticas que os valorizem ou desvalorizem, e muito menos a promessas de palanques. Não se pode prometer que, no governo de Fulano de Tal, será permitido respirar ou comer, assim como não se pode prometer que no mesmo governo será oferecida educação ou saúde. Educação e saúde não podem ser mais ser políticas de governos, mas sim políticas estatais autogeridas por autonomias desvinculadas do governo e controladas diretamente pela população que usufrui dos seus serviços públicos, por intermédio da figura de um ombudsman, ou de um novo ouvidor, órgão com capacidade de postular a mudança de composição e de gestão das referidas autonomias.
Este modelo que se poderia construir na realidade brasileira, sustentado por mandamento constitucional, poderia ser o ponto de partida para a construção de toda uma realidade educacional autônoma em todas as esferas da Federação, controladas pelo Ministério Público, pela população por intermédio das ouvidorias, e, nas suas contas, pela população, com o remédio processual da ação popular e pelos Tribunais de Contas, com estrutura que lhes garanta a necessária autonomia em relação aos poderes e órgãos que fiscaliza.
No mesmo sentido, a saúde pública também não pode estar submetida às promessas de palanques ou a ideologias políticas. A vida do ser humano e o seu desenvolvimento são condições primeiras para qualquer regime democrático, não podendo estar sujeitas a variações ou distorções de ideologias que procuram, muitas vezes, encobrir interesses egoístas expressos em modelos econômicos individualistas.
Desta forma, a saúde deve ser autogerida por autonomias que, entretanto, não terão as mesmas características das autonomias educacionais.
A saúde, por indicação de toda atual política da Saúde Pública, não pode ser gerida por esferas administrativas maiores como a União e os Estados, que, ao centralizar a gestão e o controle, inviabilizam uma administração competente, na qual os recursos investidos cheguem até o destinatário do serviço de saúde. Por esse motivo, que é de conhecimento notório no nosso país hoje, caminha-se para uma municipalização da gestão e dos recursos.
Juntando a idéia de necessidade premente de municipalização dos serviços de saúde e da necessária desvinculação do governo de sua gestão, chegamos à conclusão de que é necessária a criação de uma avançada gestão democrática municipal da saúde, por meio de autonomias constitucionais denominadas Conselhos Multidisciplinares de Saúde nos Municípios, autarquias especiais criadas pela Constituição Federal, por intermédio de emenda, e com sua estrutura, respeitados o caráter multidisciplinar e democrático de gestão, organizadas por leis municipais.
A composição destes Conselhos Municipais de Saúde Pública, autarquias especiais, será escolhida por concurso público, visando à escolha de profissionais competentes, no mínimo, nas áreas de administração hospitalar, medicina, enfermaria e psicologia, podendo-se incluir outras áreas, conforme a vontade do Legislativo municipal, devendo existir, ainda, um representante da comunidade municipal indicado pelo Poder Legislativo municipal e um ou mais representantes, dependendo do porte do Município, dos trabalhadores do setor de saúde, escolhido pelo voto de seus colegas.
A composição diferente e a forma de escolha diversa, eleição direta pelos membros da comunidade que compõem os órgãos educacionais, e concurso público, indicação e eleição, para composição da autarquia que irá gerir a saúde no município, são reflexos das especificidades em cada setor, envolvendo o setor de saúde, para sua gestão, uma série de especialidades que, muitas vezes, os municípios de pequeno porte não podem oferecer.
Esta autarquia autônoma constitucional terá, como sua semelhante na área de educação, controle externo por parte do Ministério Público, pela população, por intermédio do ombudsman do município e pelo Tribunal de Contas com composição não política.
Entendemos que este ponto do estudo é importante para caracterizar, na prática, a nova teoria democrática dos direitos humanos, que coloca como condição primeira, para o exercício da democracia, uma população que tenha acesso à informação e ao conhecimento e que, obviamente, tenha saúde mental e física. Logo, saúde e educação deixam de ser políticas de governos ou meros discursos políticos, ou ainda representação de interesses econômicos egoístas de grupos que pretendem sustentar privilégios atrás de pseudo-ideologias liberais, para se transformar em necessidade primeira da democracia, como o são o ar e a alimentação para a sobrevivência do ser humano e de qualquer outro animal no nosso planeta.

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