SOBERANIA
Jose Luiz Quadros de Magalhaes
1 ORIGEM
A palavra soberania tem sua raiz no francês antigo souverana que por sua vez deriva do baixo latim superanus, significando supe¬rioridade. Bodin pela primeira vez utiliza o termo souveraineté para no século XVI designar o poder supremo da república.1
Pode-se dizer que a construção conceitual de soberania no ocidente teve origem nos fatos históricos traduzidos nas lutas travadas pelos reis franceses contra os barões feudais, para impor a sua autoridade, o que poderíamos chamar, então, de soberania interna, como também para se emanciparem da tutela do Santo Império Romano, primeiro, e do Papado, depois, o que poderíamos chamar de soberania externa.
Esta procura de soberania deveu-se ao fato de que os primeiros reis da França não eram militarmente os mais fortes, como também, conseqüentemente, não eram os mais acatados. O poder, na Idade Média, não é unitário, mas sim fragmentado e permanentemente nego¬ciado entre o rei e os nobres senhores feudais, cada um com seu exército. Não havia, portanto, a idéia de um Estado nacional com um exercito nacional, uma moeda nacional e um poder unitário e soberano.
A idéia de uma soberania una, indivisível, imprescritível e inalienável foi construída para o Estado nacional, que surge neste momento na forma unitária como já visto. Imaginava-se na época um Estado soberano com um poder unificado, de onde emanava toda a vontade soberana do Estado. Desta forma, a soberania era indivisível porque não existia outro poder paralelo ou superior ao poder soberano; porque era una, no sentido que os poderes do Estado não são cada um, soberanos, mais apenas divididos e autônomos, mas unidos em um Estado com poder único e soberano; imprescritível, no sentido de que uma vez soberano o Estado não perde esta condição, não havendo, portanto, uma soberania por prazo certo; e finalmente inalienável, no sentido de que não se poderia transferir a soberania para outro Estado ou organização. Óbvio que não se conheceu a efetividade de tal soberania indivisível, mas este conceito sobreviveu durante muito tempo, e mesmo hoje alguns ainda o utilizam contra toda a realidade que os cercam.
O processo histórico base para esta construção conceitual ocorreu com o fato de que, aos poucos, os barões, “soberanos” em seus feudos, perdem essa condição para o rei. Logo, os reis, que só devem obediência a Deus, subtraem de um só golpe a autoridade dos papas e a intervenção do povo, tornando o poder real absoluto.
Posteriormente, encontraremos as doutrinas democráticas que atribuem ao povo ou à nação o poder político.
Este pensamento, entretanto, não será unânime. Thomas Hobbes,2 filósofo inglês (1588-1679), assim aborda a questão:
“A idéia, parte da antiga convicção de que o homem, em épocas primitivas, viveu fora da sociedade, em estado de natureza. Sendo todos do homens iguais e essencialmente egoístas, tendo todos os mesmos Direitos Naturais e não existindo nenhuma autoridade ou lei, o estado de natureza foi uma época de anarquia e violência, em que o indivíduo levava uma vida solitária, sórdida e brutal, pois nenhuma era tão forte que não temesse os outros, nem tão fraco que não fosse perigoso ao demais. Para pôr termo a esse período de violenta anarquia, os homens criaram, por um contrato, a sociedade política e cederam seus direitos naturais a um poder comum, a que se submeteram por medo e que disciplina uns atos em benefício de todos. Assim a soberania que residia primitivamente em todos os homens, passa ser propriedade da autoridade criada pelo contrato político.”
Nas palavras de Hobbes,
“o Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atri¬buído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes dos homens.”
Hobbes irá negar aos homens o direito de resistência à tirania do soberano: “...se aquele que tentar depor seu soberano for morto, ou por ele castigado devido a essa tentativa, será o autor de seu próprio castigo dado que por instituição é autor de tudo quanto seu soberano fizer.”
Locke refuta indiretamente as idéias de Hobbes; há nelas a concepção de um estado de natureza, mas, ao contrário de Hobbes, vê, nesta época primitiva, ordem e razão. Para Locke, os homens são iguais e possuem os mesmos direitos naturais à vida, à liberdade e à propriedade.
Rosseau admitirá, mais claramente que Hobbes e Locke, o estado de natureza, que será uma época primitiva em que o homem vive feliz e livre fora da sociedade. Está época termina por causa do progresso da civilização e à propriedade privada. Rosseau afirmará:
“O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer ‘isto me pertence’ e encontrou criaturas suficientemente simples para acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerra, assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, desarraizando as estacas ou atulhando o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: ‘guardai-vos de escutar este impostor! Estais perdidos se vos esqueceis de que os frutos a todos pertencem e de que a terra não é de ninguém’.”
Rosseau afirma que a vontade geral é a manifestação da soberania. Ele preconiza a criação de pequenos Estados e a democracia direta:
“Os eleitos pelo povo para governar não são seus representantes, mas apenas comissários para executar a vontade geral; as leis só serão obrigatórias depois de aprovadas pelo povo, e por isso a população do Estado deve ser pequena, para poder reunir-se freqüentemente.”
Mais adiante voltamos no debate da soberania popular. Vamos agora sistematizar o conceito de soberania até aqui construído por intermédio da sua história.
2 CONCEITO DE SOBERANIA
Quando falamos de soberania, temos suas duas características principais: a soberania interna e a soberania externa.
A soberania interna é sinônimo de poder supremo. Significa que, dentro das fronteiras do Estado, não existe nenhum poder paralelo ou acima do poder do Estado.
A soberania externa significa independência. O Estado soberano, nas suas relações com outros Estados, não tem nenhum vínculo de submissão, não admitindo nenhum tipo de intromissão nos seus assuntos internos ou internacionais: a quase unanimidade dos tratadistas reconhece que, se a soberania é um poder supremo, é a maior força, não querendo dizer que seja um poder arbitrário, uma força brutal, que não reconhece limites, como se pensava no passado.
É importante ressaltar que a soberania não é um poder do Estado, mas sim uma qualidade deste poder, que poderá ser ou não soberano.
Em termos práticos, temos exemplos de países que perderam a sua soberania interna, como a Colômbia, importante Estado da América Latina, que perdeu-a a partir do momento em que o poder do Estado perdeu a sua característica de supremacia. As FARC, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, controlando parte do território do Estado nacional, significa um poder paralelo que desafia o poder do Estado e não permite mais que este exerça sua supremacia em todo o território nacional.
Com relação à soberania externa, podemos encontrar, também na América Latina, outro exemplo: Porto Rico, que, inicialmente colônia espanhola, passa a ser colônia norte-americana quando da guerra dos Estados Unidos contra os espanhóis. A administração colonial norte-americana impôs o idioma inglês e transformou Porto Rico em base militar. Em 1817, os porto-riquenhos passam a ser cidadãos norte-americanos sem participação do governo da Ilha. Em 1847, após forte pressões internas, os Estados Unidos permitiram que os porto-riquenhos elegessem seu próprio governador, transformando Porto Rico em um “Estado Livre Associado”, situação que permanece até hoje:
“Esse Estado de comunidade livre, commonwealth, que ainda hoje continua em vigor, coloca nas mãos de Washington os assuntos financeiros e as relações exteriores, enquanto mantém cidadania e moeda comuns, bem como livre acesso ao EUA para os porto-riquenhos, e vice-versa. Com a instituição da com-monwealth, as Nações Unidas dispensaram os EUA da obrigação de prestar esclarecimentos sobre a situação de Porto Rico perante sua Comissão de Descolonização, endossando assim, tacitamente, o acordo com o fim do domínio colonial. Contudo, em setembro de 1978, a Comissão de Descolo¬niza¬ção abandonou essa posição e, em dezembro do mesmo ano, uma resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas definiu Porto Rico como colônia e exigiu o direito de determinação para o povo da ilha.”
Temos, aí, um exemplo atual de um Estado que perdeu sua soberania externa.
Portanto, reafirmando o que anteriormente foi dito, é a soberania uma qualidade do Estado, idéia esta que pode ser encontrada em vários autores. O Prof. José Alfredo de Oliveira Baracho, quando analisa o pensamento de Carré de Malberg, considera a soberania como a qualidade suprema do poder dos Estados soberanos. O poder do domínio estatal, por ser um poder de natureza jurídica, é submetido ao direito. Esta conclusão leva ao entendimento de que a soberania, como qualidade do poder estatal, está, como esse poder, submetida ao direito e tem uma natureza jurídica.
Entretanto, devemos lembrar que aquele conceito de soberania una, indivisível, imprescritível e inalienável, se já não era verdade para a realidade para qual este conceito foi construído, foi definitivamente comprometido diante de três momentos históricos perante os quais ele foi desqualificado, sendo, portanto, inaplicável perante os novos fatos e as novas realidades do exercício do poder:
• O primeiro momento será o da formação da federação com a Constituição norte-americana de 1787, quando então encontramos a idéia realizada de uma fragmentação da soberania onde os Estados membros, antes soberanos, transferem parcelas de soberania para o Estado federal, permanecendo com ainda grandes parcelas de soberania representadas pela manutenção do poder constituinte decorrente pertencentes aos entes federados, que marcam a inexistência de hierarquia entre a União, os Estados membros e, no nosso federalismo também, os Municípios.
• O segundo momento será o da formação da União Européia. A União Européia, com origem em tratados regionais menores até a formação do Mercado Comum Europeu e finalmente com o Tratado de Maastricht, desafia os conceitos tradicionais de soberania. Podemos dizer que a União Européia constitui hoje um Estado com uma organização territorial ainda mais sofisticada que a do Estado federal. Dessa constatação nos parece estranho a busca de alguns teóricos europeus de uma Federação européia, pois é a União Européia, na sua forma de Estado comunitário, muito mais sofisticada e ágil que o Estado federal. Na União Européia, os Estados nacionais se transformaram em administradores de competências, transferindo parcelas importantes de soberania para o nível micro e macro. Há algum tempo, seria impensável um Estado permanecer soberano abdicando de sua moeda nacional. Entretanto, a partir de janeiro de 2002, entrou em circulação o papel moeda chamado “Euro” em 12 dos 15 membro da União até esta data. A idéia de parcelamento e transferência de soberania esta expressa em vários textos constitucionais dos Estados membros da União. Encontramos na Constituição da Alemanha fruto da revisão constitucional de 21 de dezembro de 1992 expresso que “...a Federação Alemã poderá transferir direitos de soberania por uma lei aprovada pelo Bundesrat”. O novo artigo 11 da Constituição italiana dispõe que “a Itália [...] consente, em condições de paridade com os outros Estados, nas limitações de soberania necessárias a uma ordem que assegure a paz e a justiça entre as nações; ajuda e favorece as organizações que internacionais que tenham este objetivo”. No mesmo sentido encontramos limitações e previsões de transferência de soberania nos textos das Constituições da Irlanda, Dinamarca, França e Luxemburgo. Nas outras embora não haja disposição expressa o fato é o mesmo.
• Finalmente o terceiro momento de comprometimento dos conceitos tradicionais de soberania ocorre diante da globalização, na sua versão neoliberal. Neste caso não se trata de uma reconstrução conceitual da soberania, mas sim do comprometimento radical dessa idéia. O neoliberalismo e a globalização já foram devidamente estudados no meu livro Direito Constitucional tomo I e no início do tomo II da editora Mandamentos..
oi
ResponderExcluirprofessor me chamo waldson jose da silva quadros,é um grande privilegio ter um sobrenome igual ao seu,pois sei que é uma honra um professor do seu nivel repassar conhecimentos pra estudantes de todo Brasil.meu saite é waldson-jose@hotmail.com
ResponderExcluirProtásio leu tudo. Impressionante! E tudo no mesmo dia!
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