quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Teoria do Estado 16

4 O ESTADO AUTONÔMICO
Jose Luiz Quadros de Magalhaes

Das formas descentralizadas de Estado, a mais criativa e recente é a criada pela Constituição espanhola de 1978.6 Estado de imensa complexidade, a Espanha foi mantida unida no período do franquista sob o regime autoritário centralizador, que proibia as manifestações culturais das diversas nações que compõem a Espanha. Com quatro idiomas reconhecidos no texto constitucional (o castelhano, o galego, o basco e o catalão) e mais diversos dialetos, a Espanha é rica em diversidade cultural, o que, de um lado, retrata um belo mosaico cultural, mas, de outro, traz problemas para a manutenção de sua unidade territorial.
Aspecto fundamental para a existência e permanência de um Estado nacional, o povo nacional, como elemento constitutivo do Estado, deve ser compreendido como o conjunto de pessoas que se sentem parte do Estado, que compartilham valores comuns que fazem com se sintam integrantes do Estado nacional, ou, em outras palavras, pessoas que compartilhem a crença coletiva em determinado Estado nacional. Para isto, é necessário que, por sobre o sentimento de ser galego, basco, catalão ou castelhano, exista o sentimento de ser espanhol. Este sentimento de ser parte de um Estado nacional é um sentimento recente, surgindo com a formação dos Estados nacionais, e é construído a partir de determinados pontos de aglutinação que podem ser desde uma origem étnica comum um projeto político comum, uma religião comum, um idioma comum, enfim, algum fator que possa identificar as pessoas como integrantes de uma crença coletiva no Estado Nacional.
Importante notar que tais aspectos podem estar presentes simultaneamente, alguns deles, todos eles, um deles, mas devem ser suficientemente fortes para manter a unidade ou sentimento de pertinência a um Estado nacional. Sem este elemento, o Estado nacional está fadado a seu esfacelamento. Vários são os exemplos de Estados que desapareceram quando da perda desta identidade comum, e o mais recente é a Iugoslávia. Formada pela União federal de povos distintos, com idiomas distintos, religiões distintas, passado histórico que nem sempre uniu, a Iugoslávia foi concebida após a Segunda Guerra Mundial como um Estado socialista autogestionário e por anos o seu fator de unidade foi este projeto comum, assim como durante muitos anos um outro fator agregador foi a liderança carismática e eficiente do croata Josip Bros Tito. Com a morte de Tito e a crise do socialismo autogestionário iugoslavo, a crença no Estado nacional iugoslavo desaparece, cedendo lugar a outras crenças regionais e raciais. Da antiga Federação Iugoslava, formada pela Sérvia, Croácia, Montenegro, Macedônia, Eslovênia, Bósnia, e que teve uma das mais belas constituições do mundo, formaram-se, hoje, depois de diversos conflitos, vários novos Estados nacionais.
A complexidade espanhola não está muito distante da iugoslava. Entretanto, a unidade territorial espanhola é mais antiga (data da expulsão dos mouros pelos reis católicos Isabel e Fernando) e, logo, construiu outros fatores agregadores importantes, como um passado histórico comum, a religião católica e, interessante, a enorme penetração do castelhano no mundo, que o tornaram, de um idioma regional, em um idioma espanhol. Entretanto, mesmo presentes todos esses elementos, o movimento separatista, principalmente basco, é hoje ainda forte, e a unidade espanhola é atualmente representada por dois elementos extremamente eficientes até agora: a monarquia e o Estado Autonômico.
A restauração da monarquia após o período franquista foi muito importante para a Espanha. Separando de maneira adequada a função simbólica de Chefe de Estado (o rei) da função de governo (o Primeiro-Ministro ou Presidente de governo, na terminologia da Constituição espanhola), deu-se um passo importante para eliminar o risco de se ter um Chefe de governo e de Estado carismático (porque símbolo e poder efetivo ao mesmo tempo), abandonando, com isto, a triste tradição fascista de Franco, ao mesmo tempo em que permitiu que a figura do rei pudesse cumprir seu papel simbólico de representar os valores espanhóis acima dos regionalismos.
O outro fator de agregação é o criativo Estado autonômico. Previsto pela Constituição de 1978, o Estado autonômico assemelha-se ao Estado Regional no que diz respeito ao grau de descentralização (descentralização de competências administrativas e legislativas ordinárias), mas com este não se confunde em nenhuma hipótese. A maneira de sua constituição é diferente e pode ser assim enumerada:

1. A iniciativa de estabelecimento de regiões autônomas parte de baixo para cima, sendo que as províncias devem unir-se, formando uma região e, através de uma assembléia, elaborar seu estatuto de autonomia.
2. O estatuto de autonomia pode ou não incorporar todas as competências destinadas às regiões pela Constituição espanhola, o que significa que as competências que não forem assumidas pela região serão assumidas pelo Estado nacional.
3. Uma vez elaborado o estatuto, este deve ser aprovado pelas Cortes Gerais (parlamento espanhol), transformando-o em lei espe¬cial, que não pode ser mais modificada pelo próprio parlamento espanhol através de lei ordinária, voltando para ser aplicado nos limites do território da região autonômica.
4. De cinco em cinco anos, estes estatutos podem ser revistos, seguindo-se o mesmo procedimento, sendo que, nesse período, a região pode reduzir suas competências ou ampliá-las, admitindo a Constituição espanhola que a região possa inclusive reivindicar competências que na Constituição espanhola estejam destinadas ao Estado nacional espanhol.
5. A todo momento, o parlamento realiza o controle da autonomia das regiões, aprovando ou não as modificações nos estatutos.7

Esse modelo extremamente inteligente tem o condão de levar as discussões por autonomia a um espaço democrático e constitucional, evitando a exacerbação dos ânimos em um debate extraconsti¬tu¬cio¬nal. A manutenção da unidade espanhola pela forma autoritária do Estado unitário franquista teria como conseqüência uma guerra civil, como ocorreu na Iugoslávia e na Rússia. A criação de um processo constitucional, para onde podem ser levadas as reivindicações por mais autonomia permitindo que estas possam ser solucionadas democraticamente através do debate político, da argumentação séria no parlamento, é hoje a principal responsável pela continuidade da unidade territorial. Problemas existem e sempre existirão, pois são eles que fazem os sistemas evoluírem e se adaptarem constantemente a novas realidades, mas, sem dúvida, o Estado autonômico é a fórmula de administração territorial mais criativa surgida recentemente.

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