domingo, 22 de agosto de 2010

32- Artigos - Sobre a sociedade da competição

TOTALITARISMO SORRATEIRO 4
Sobre a sociedade da competição

José Luiz Quadros de Magalhães



Desaprendemos a conviver com a diferença. Na sociedade de consumo contemporânea somos levados a sempre escolher “o melhor”. Nos programas de televisão não se escuta simplesmente uma musica. Este prazer de ouvir uma musica vem acompanhada quase sempre com a escolha do melhor cantor, a melhor musica, o melhor calouro. A competição é alimentada em todo momento, em todas as atividades. Na escola é escolhido o melhor aluno, a melhor composição, a melhor monografia, a melhor nota em cada matéria. Esta competição permanente nos leva inconscientemente a reprodução da lógica do melhor em quase tudo: quem é o nosso melhor amigo? Qual a melhor pizza da cidade? Qual o melhor churrasco? E o melhor tempero? A melhor cerveja, o melhor escritor, o melhor livro, o melhor argumento, o melhor candidato, o melhor professor, o melhor samba enredo e a melhor escola de samba, o melhor...
Não é necessário mencionar que o que é melhor para um não o é para o outro e é essa impossibilidade momentânea de construir um consenso sobre o que é melhor que ainda nos salva do totalitarismo. O problema será o dia quando todos acordarem sobre o que é o melhor.
Uma sociedade que sempre escolhe o melhor corre o risco de no final ficar com uma única pizza, um único estilo de musica, uma única cerveja, um único argumento e etc. A diversidade é muito rica e se construímos uma sociedade onde só há espaço para os melhores negamos a diferença, a diversidade e nos submetemos ao conceito majoritário do que é melhor. Porque tem que ter sempre o melhor? Podemos comer uma pizza hoje e outra amanhã, ou ouvir uma musica hoje e outra amanhã. Se sempre escolhemos o melhor escolhemos um vencedor, o que faz do outro perdedor, categoria que desqualifica e tende a excluir. O diferente, perdedor, desta sociedade do numero 1 tende a desaparecer, ou no mínimo ser esquecido.

O filosofo Jean Claude Milner em entrevista ao Le Monde (Le Monde des livres, 28.02.2008, mis a jour le 06.03.08) se pergunta: Quando vamos parar de nos fixarmos na finalidade de dizer bem o que já foi dito?
Por este exemplo, é possível notar a superficialidade, a limitação, o aprisionamento do pensamento, e como nos obrigam, por meio de um consenso minoritário, diante do qual a maioria se cala, a nos enquadrarmos às regras que devem ser utilizadas para ensinar crianças e adolescentes a pensarem com lógica. O império da forma sobre o conteúdo e o livre pensar. Esta é uma forma de como a escolha do melhor, no caso da melhor publicação, pode impedir que tenhamos acesso ao novo, ao livre, ao diferente.

A história do pensamento científico tem nos mostrado nos últimos séculos que uma idéia, uma teoria que se tornará majoritária nasce minoritária e quando se torna amplamente aceita como sendo a melhor é porque já está no momento de ser superada. Podemos citar muitos exemplos conhecidos como Galileu, Newton, Kant, Marx, Freud e muitos outros. Não estamos afirmando que a maioria é burra (a unanimidade - e não o consenso - com certeza é irrefletida), mas a maioria nunca esteve na vanguarda de nada. As novas teorias, as novas idéias filosóficas, políticas, econômicas têm que envelhecer para serem compreendidas e aceitas, o que significa que já estão no momento de renovação, de superação ou transformação.

Uma sociedade que aprende a conviver com a diversidade, com a incerteza, com a pluralidade pode fazer com que estes processos de transformação sejam menos dolorosos, tenham um custo social e pessoal menor. As pessoas não deveriam ter que morrer ou serem condenadas ao isolamento para que as coisas mudem.
Ao contrário, uma sociedade que vive sempre em torno da idéia de escolha do melhor corre o risco de se tornar monocromática, monótona, lenta e conservadora.

A SOCIEDADE DO MELHOR
Voltemos à idéia do que é melhor? Quando uma idéia política se torna hegemônica como o liberalismo hoje ou o nazismo na Alemanha de 1933, significa que esta idéia vitoriosa é a melhor? Os seus argumentos foram capazes de convencer e envolver milhões. Como? Por quê? Efetivamente porque foram percebidos como sendo os melhores. O importante é entender como ocorreu esta percepção do que é melhor. Os consensos ou as maiorias históricas são construídos sobre verdades reveladas ou sobre encobrimentos estratégicos? É possível imaginar que nas sociedades complexas contemporâneas o jogo político é construído sobre uma honestidade de intenções? A questão não é esta embora a pergunta continue pertinente. O problema reside no fato de que as condições de percepção do mundo, das idéias, das pessoas, são variadas, diversas, são mundos de percepção distintos. A massificação, a busca da homogeneidade como forma de construção de falsos consensos tem repercussões perigosamente totalitárias como a hegemonia irrefletida, fundada no desejo, da sociedade de consumo neoliberal contemporânea.

Voltando a Slavoj Zizek com as mesmas observações que fizemos no totalitarismo sorrateiro 1 e 2 (para quem não leu) este Autor ao visitar Freud no livro dos sonhos nos mostra que o processo de construção de maiorias políticas pode ter em diversos momentos históricos (inclusive na hegemonia neoliberal atual) um perturbador e sofisticado processo ideológico de distorção do real com conseqüências poderosas.

Zizek nos mostra por meio de um diálogo com Freud, que nos sonhos se manifestam medos e desejos dentro de uma estória que reflete experiências diárias que muitas vezes não têm relação direta com os desejo e os medos ali escondidos. Em outras palavras, construímos uma estória na qual estão presentes os nossos medos e desejos que se escondem no desenvolvimento da estória. O importante não é a estória, mas os pensamentos latentes nas estórias de nossos sonhos. Para encontrar estes desejos e medos (pensamentos latentes) é necessário encontrá-los escondidos nas entrelinhas desta estória.

Trazendo isto para a política, podemos exemplificar, como faz Zizek, com o nazismo: a sociedade alemã vivia o desemprego, a violência, o caos e a humilhação, o Partido Nacional Socialista Operário Alemão (que não era nem socialista nem operário) construiu uma estória na qual cabiam os medos e desejos daquela sociedade naquele momento. Como fazer milhões de pessoas seguirem suas idéias? Criando uma estória onde os desejos e medos de milhões de alemães estejam presentes. Esta estória terá então o condão de levar as pessoas, na busca da realização de seus desejos e superação de seus medos, na direção dos interesses de quem criou a estória. Nesta estória o estrangeiro, o judeu é responsável pelo desemprego; o operário é tão alemão quanto o empresário e o inimigo responsável pelo desemprego e insegurança são as potências estrangeiras. Mesmo sendo falsa a estória, a crença na estória construída, mostra que a solução dos problemas que os afligem está na expulsão dos estrangeiros e especialmente os judeus. A estória contada repetidas vezes legitima ações que em nada podem efetivamente solucionar os seus medos e satisfazer os seus desejos, mas o importante é que a maioria acredite nisto. Enquanto milhões se mobilizam em torno desta estória, aqueles que detém o poder realizam seu desejos e se protegem dos seus medos. 

Transferindo para a contemporaneidade brasileira, a construção da estória, hoje hegemônica na imprensa conservadora, de que podemos resolver o problema da insegurança nas grandes cidades com mais polícia; mais direito penal; com o encarceramento em massa, criando personagens que fogem da noção de humanidade como o bandido; o monstro violento; o menor infrator e outras nomeações simplificadoras, pode justificar toda uma política estatal, defendida pela maioria incapaz de perceber que está agindo contra seus próprios interesses. Esta construção de estórias pode ajudar a explicar porque milhões de pessoas agem contra seus próprios interesses, repetidas vezes na história da humanidade: é uma minoria que constrói as estórias que absorvem desejos e medos de uma maioria, direcionando estes para outras finalidades que correspondem obviamente aos interesses desta minoria.

Este jogo de construções de “verdades” ideologizadas, distorcidas, faz com que a percepção do melhor seja comprometida pela vontade de poucos.

Como dito, o grupo que assume o poder do Estado (e não só o poder do Estado mas o poder econômico) cria uma estória para coordenar. Invade este espaço pessoal de construção de sentidos, de coordenadas e impõe suas próprias coordenadas. Zizek se refere ao totalitarismo nazista desta forma. Este poder toma os medos e desejos da população e dá um sentido, constrói uma estória. Para isto Zizek usa o exemplo de Freud no livro dos sonhos: os desejos e medos estão contidos em uma estória, um sentido que nossos sonhos criam. Para descobrir estes desejos é necessário encontrá-los em meio à estória. A estória criada encobre os desejos. A estória não tem relação direta com os desejos ali escondidos.

Nas palavras de Zizek, quando este se pergunta por qual razão as idéias dominantes não são as idéias dos dominantes: “... cada universalidade hegemônica deve incorporar ao menos dois componentes particulares, o componente popular ‘autêntico’ e sua ‘distorção’ do fato das relações de dominação e exploração.” (Pladoyer en faveur de l’intolerence”, editions Climats, Castelnau le Lez, 2004, page 25).

Zizek observa que o fascismo manipula os autênticos desejos populares de busca de comunidade e de solidariedade social contra a competição feroz e a exploração, deformando a expressão deste desejo com a finalidade de legitimar a perpetuação das relações de dominação e de exploração social. Logo a hegemonia ideológica não se constitui no caso onde um componente particular ocupa o vácuo de um universal vazio, mas sim, antes, a universalidade ideológica testemunha a luta entre ao menos dois componentes particulares: o popular exprimindo os desejos secretos da maioria dominada e o específico exprimindo os interesses das forças de dominação. 

Zizek menciona como exemplo o cinema, demonstrando como esta arte pode despertar um desejo e ao mesmo tempo nos dizer como desejar. É tudo que o poder dominante quer: não só dar um sentido, construir coordenadas a partir dos desejos existentes, mas também criar desejos e dizer como desejar. O que o nazismo fez foi oferecer uma estória, dar um sentido, que atende aos interesses da classe dominante, aos desejos inconscientes das pessoas. 

Retomando Freud, Zizek explica que há uma distinção entre pensamentos “latentes” do sonho e o desejo inconsciente expresso em um sonho. É FUNDAMENTAL DIFERENCIAR A ESTORIA DO SONHO, O TEXTO EXPLÍCITO DESTE, DOS PENSAMENTOS LATENTES MANIFESTADOS NESTA ESTÓRIA.

De uma maneira semelhante não há nada de fascista ou de reacionário no pensamento latente (do sonho) da ideologia fascista, no desejo de comunidade e na solidariedade social. O que explica o caráter propriamente fascista da ideologia é a maneira como este pensamento latente é transformado e elaborado pelo (trabalho do sonho) texto ideológico explícito que procura legitimar as relações sociais de dominação e exploração. O mesmo pode ser aplicar ao populismo direitista de Sarkozy ou Berlusconi ou o neoliberalismo dos anos 90 até hoje, ou o ultra-conservadorismo de Bush, etc, etc...

CONCLUSÃO

Percorremos, em vários textos, um longo caminho, da formação do estado nacional, da imposição de uma religião, de um idioma, da construção artificial e violenta de uma identidade nacional até as sociedades cosmopolitas, multidentitárias, plurais, tão tolerantes que muitas vezes chegam ao desprezo e tão individualistas que chegam ao egoísmo.

Se de um lado fomos capazes de trilhar um caminho de conquistas de direitos, de afirmação do estado constitucional e mais importante, do discurso constitucional, da efetividade de alguns direitos individuais e políticos e do reconhecimento do poder pela legitimidade democrática e pela extensão das liberdades individuais, muito ainda há por fazer pela superação das brutais diferenças econômicas, pela indiferença à miséria, pela afirmação dos direitos sociais e econômicos desconstruídos nas ultimas duas décadas pelo cruel projeto neoliberal.

A construção de uma sociedade democrática includente e não violenta depende da superação destas diferenças sócio-econômicas. Para além da universalização dos direitos sócio-econômicos uma nova cultura humana precisa ser discutida e o reconhecimento de direitos humanos universais depende da nossa capacidade de percebermos o ser humano único, esta singularidade coletiva que somos, esta condição comum e ao mesmo tempo singular de sermos um nome próprio, construído por uma história única da qual participam muitas pessoas. 

Devemos ser capazes de enxergar, e lembrar de buscar sempre, esta singularidade escondida atrás dos nomes coletivos. Uma pessoa é múltipla, dinâmica, cada pessoa é um ser em constante transformação. Logo ninguém “é” apenas. As pessoas estão sempre se transformando, estão sempre virando alguma outra coisa conforme o contexto que se coloca diante delas. 

Não se pode reduzir uma pessoa a um nome coletivo, fulano não é juiz mas uma pessoa que exerce aquela função; cicrano não é bandido mas praticou determinados atos ilícitos; esta ou aquela pessoa são muito mais do que sua condição social, que seu gênero, que sua opção sexual, que sua cor, que sua religião, que seu grupo étnico ou sua nacionalidade. 

Quando formos capazes de vermos esta imensa diversidade e complexidade humana por detrás dos nomes coletivos, então não existirão mais genocídios, não existirá mais a miséria ou exclusão pois ninguém suportará ver um igual na diferença em condição tão desigual.

Quando nos referimos às pessoas como “eles” estamos a um passo do genocídio: eles os judeus; eles os muçulmanos; eles os hutus; etc. Quando resumimos uma vida a um predicado como “bandido” estamos condenando uma pessoa a exclusão; quando chamamos outras pessoas de judeus, cristãos, muçulmanos, estamos construindo muros de difícil transposição. Somos todos pessoas. Pessoas únicas e complexas que podem ser simultaneamente um monte de coisas, mas seremos no final sempre uma pessoa como qualquer outra pessoa.

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