domingo, 29 de agosto de 2010

Teoria do Estado 22

2 O SISTEMA PARLAMENTAR
José Luiz Quadros de Magalhães

Não se pode dizer que o sistema parlamentar, por si só, permitirá o desenvolvimento de uma democracia participativa efetiva. Contribuem para esse processo uma série de dados culturais, históricos, socioeconômicos e conjunturais, que têm que ser analisados e su¬perados para sua evolução. Entretanto, ao contrário do presiden¬cia¬lismo, o sistema parlamentar pode permitir controle maior por parte da população sobre o governo e o próprio parlamento, por inter¬médio da pressão legítima sobre esses organismos, que têm, nos dois institutos básicos do parlamentarismo, mecanismos de submissão das políticas governamentais e da atuação do parlamento à vontade popular.
Podemos dizer que quantos Estados adotarem o sistema parlamentar tantos sistemas parlamentares existirão. É um sistema complexo, e não há um modelo exatamente igual a outro. Entretanto, podemos encontrar como características fundamentais do parlamentarismo:

a) queda do governo pelo parlamento e dissolução do parlamento pelo governo;
b) inexistência de mandatos fixos como consequência do item anterior, sendo que em geral não há mandato mínimo para o governo, mas há um mandato mínimo do parlamento e não há um mandato máximo para o governo, que permanece enquanto tiver maioria parlamentar, mas há um mandato máximo para o parlamento, que, se não for dissolvido até quatro anos (ou cinco, em geral), será automaticamente dissolvido para eleições parlamentares;
c) não há acumulo de funções, sendo o primeiro-ministro chefe de governo; o presidente ou monarca, chefe de Estado com função simbólica; e mais recente o início de criação de uma adminstração autônoma, concursada, de carreira e estável;
d) eleição do governo pelo parlamento, o que leva à existência de governos de maioria parlamentar, o que nem sempre ocorre no presidencialismo.

A inexistência de mandatos demonstra a preocupação do sistema parlamentar em buscar a estabilidade do regime democrático, com a criação de mecanismos que possibilitem afastar maus governos. O sistema parlamentar busca primeiro a estabilidade do regime democrático e só depois a estabilidade do governo. O primeiro-ministro, em geral, não tem mandato mínimo, ou seja, pode o governo cair a qualquer momento, desde que perca a sua base parlamentar, assim como não tem mandato máximo, mantendo-se no poder enquanto tiver apoio parlamentar e, teoricamente, apoio popular. Os deputados não têm, em geral, mandato mínimo (salvo alguns sistemas que proíbem a dissolução do parlamento nos primeiros meses de mandato), tendo, entretanto, o mandato máximo; não havendo dissolução antecipada do parlamento, este se dissolverá automaticamente, findo o prazo limite do mandato.
Quanto à dissolução do parlamento, devemos dizer que o sistema parlamentar baseia-se em dois mecanismos fundamentais que representam o controle e a proximidade entre Executivo e Legislativo. Estes dois mecanismos têm como árbitro o povo. Desta forma, a dissolução do parlamento é o mecanismo que permite ao governo (primeiro-ministro e gabinete) buscar apoio popular. Como o sistema parlamentar baseia-se na sustentação do governo sobre a maioria parlamentar e como, em geral, esta maioria ocorre no sistema parlamentar pluripartidário, com base numa aliança de partidos políticos, o governo pode manter-se sobre uma frágil base parlamentar e encontrar, muitas vezes, dificuldades de aprovação de seus projetos, na própria base de sustentação do governo, no caso de uma aliança de partidos mais ampla e delicada. Desta forma, quando o governo (gabinete) tiver uma frágil base parlamentar, mas um grande apoio popular, pode dissolver o parlamento antecipadamente, pedindo aos eleitores uma maioria expressiva que lhe permita governar com maior tranqüilidade. Pode ocorrer, como mencionamos anteriormente, a utilização desse mecanismo como forma de garantia ao governo mais tempo para implementar suas políticas. Desta forma, percebendo o governo que pode vir a perder apoio popular num futuro próximo, que está em queda na aprovação popular ou aproveitando um momento de especial apoio da população pode o governo dissolver o parlamento para garantir uma maioria parlamentar por mais uma legislatura. Entretanto, o risco sempre existe, e por vezes a perda da maioria é inevitável. Isto ocorreu com o governo de direita da França, onde o Presidente Chirac (1998) dissolveu o parlamento antecipadamente, prevendo que daí a um ano não obteria mais a maioria parlamentar para a direita francesa. Entretanto, foi tarde demais, e a esquerda francesa retomou sua maioria.
A queda do governo é a contrapartida do parlamento. Por meio desse mecanismo, o sistema parlamentar permite que um mau governo possa ser afastado do poder a qualquer momento. Esse mecanismo foi pensado como forma de permitir ao parlamento e ao povo (pressionando de forma legítima o parlamento) afastar um governo que não esteja cumprindo de forma adequada o seu programa ou que não tenha competência para implementá-lo. A queda do governo ocorre, em geral, por intermédio da apresentação de um voto de desconfiança ao governo. Esse voto representa a oportunidade do parlamento discutir a política do governo e o seu desempenho. Uma vez discutida, a crítica ao governo (voto de desconfiança, moção de censura) é posta em votação, e, se o governo perder, o gabinete cai, devendo o parlamento compor uma nova base parlamentar e escolher um novo governo.
São pressupostos para o funcionamento adequado do parlamentarismo:

a) partidos políticos fortes e ideológicos;
b) como conseqüência do item anterior, a necessidade de limitação do número de partidos políticos, que pode ser feita pela cláusula de barreira. O número de partidos ideal deve girar entre cinco e sete;
c) financiamento público de campanha que permita privilegiar a igualdade de competição entre os partidos e a valorização do programa do partido, e não os nomes dos candidatos apenas;
d) fidelidade partidária, com a impossibilidade de troca de partido político após a eleição sem que se perca o mandato. O mandato pertence ao partido, e não ao candidato.

O funcionamento adequado do sistema parlamentar pressupõe a existência de partidos políticos fortes e ideológicos. O povo vota principalmente no partido e no programa de governo proposto por este. Isto não quer dizer que não existam distorções personalistas, mas o parlamentarismo tem sido um sistema que tem valorizado de maneira democrática o voto no programa do partido. Para que existam partidos políticos fortes e ideológicos como uma democracia representativa requer, dois mecanismos legais foram criados: a cláusula de barreira e a fidelidade partidária. Nem todos os Estados parlamentares adotaram leis que exigem a fidelidade partidária ou que procuram fortalecer os partidos evitando os micropartidos políticos. Entretanto, aqueles partidos que por determinação histórica não chegaram a este ideal devem procurar buscar, por meio de mecanismos legislativos, evitar a proliferação de partidos e a ausência de fidelidade partidária.
A cláusula de barreira constitui um mecanismo legal que evita que partidos que não atinjam um percentual dos votos válidos não possam ter representação no parlamento. No sistema alemão, os partidos que não obtiverem 5% dos votos totais não terão direito à representação no parlamento. Isto evita partidos com um ou dois deputados no Parlamento, indesejáveis no sistema parlamentar, uma vez que, algumas vezes, a maioria necessária para a estabilidade do governo pode depender desse partido, criando uma grave distorção ao conferir a um micropartido o papel de fiel da balança.
Mecanismo interessante para a obtenção da fidelidade partidária é garantir que a vaga no parlamento pertença ao partido, e não ao candidato. Desta forma, se o candidato muda de partido, perde a vaga. Outro mecanismo é a impossibilidade de votar contra as posições do partido. A estrutura do partido deve ser democrática e permitir a livre discussão e a elaboração de propostas, que, quando levadas ao parlamento, devem ser uníssonas.
A dissolução do parlamento por parte do governo e a queda do gabinete por perda de apoio da maioria no parlamento são mecanismos fundamentais no parlamentarismo que permitem mudanças de governos e de políticas públicas submetidas à apreciação popular, sem os traumas que o sistema presidencial impõe.5 Em outras palavras, no sistema parlamentar pode o povo, por intemédio do parlamento, derrubar o governo constitucionalmente, se este governo não adotar políticas que tenham apoio popular.
A imposição de uma política socioeconômica no sistema presidencial dificilmente pode ser evitada pela população, principalmente nos países menos desenvolvidos, no conceito de desenvolvimento do sistema capitalista vigente. A queda de um Presidente da República, mesmo que este tenha cometido crime comum e crime de responsabilidade, é um processo demorado e difícil, trazendo instabilidade às instituições públicas, descrédito perante a população, que tem de esperar de seus representantes atitudes que nem sempre são tomadas. A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu, para julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade, procedimento político extremamente fechado, em que a denúncia, para ser aceita, depende da aprovação de dois terços da Câmara de Deputados, funcionando como juízo de admissibilidade, para depois ser julgado pelo Senado Federal, que, presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, deverá considerá-lo responsável pelo voto de dois terços dos senadores. Decorre daí a perda do seu mandato, o que não significa a queda do governo ou a desaprovação da sua política, que continua com o seu vice-presidente.
Portanto, o que se pode defender como fator de estabilidade pode significar, na prática, fator de desestabilização, pela quase impossibilidade de derrubar a política governamental. O fato ainda da convivência de um governo não amparado por um parlamento, claramente contrário as suas políticas, pode paralisar o Estado, invia¬bili-zando a implementação de qualquer medida, adiando ou impossibilitando o acesso da população, muitas vezes, aos seus direitos básicos e inadiáveis.
A eleição não legitima todos os atos do governo, e este deve estar submetido a controles permanentes não apenas de legalidade e constitucionalidade, mas efetivamente de direcionamento de tais políticas pelos cidadãos diretamente interessados e responsáveis pelas mesmas. Assim, uma política governamental não poderia nunca ignorar ou desrespeitar os direcionamentos apontados pelos profissionais da área a que essa política se refere e pela população que usufrui dos serviços envolvidos.
O parlamentarismo permite este controle por intemédio de seus mecanismos básicos já referidos. Entretanto, uma série de condições têm de ser estabelecidas para que o sistema funcione, com a existência de partidos políticos fortes, organizados e com programas definidos por processo de discussão e decisão internas democráticas, além da necessária fidelidade partidária dos seus componentes com relação às políticas estabelecidas e ao plano de ação definido, somando-se, obviamente, um legislação eleitoral não casuísta e uma população cidadã, ou seja, uma população portadora de todos os direitos fundamentais sociais, econômicos, políticos e individuais que permitem o funcionamento de uma democracia.
Um sistema de governo não é capaz de mudar nada se as pessoas que compõem a sociedade civil e a estrutura do Estado não se modificarem e não detiverem os meios de participação efetiva de transformação. Este é o ponto central a que pretendemos chegar. A criação de condições sociais e econômicas e o estabelecimento de canais de comunicação e participação, de uma população informada é que permitirão a mudança constante e a evolução permanente do processo democrático juntamente com a s transformações do ser humano,6 e não a forma de Estado e o sistema de governo.
O sistema parlamentar pode apresentar, e apresenta, distor¬ções da vontade popular e do próprio ideal democrático de participação de todos em uma sociedade de oportunidade iguais. Ë necessário compreender que os mecanismos de dissolução do parlamento e de queda do gabinete são criados para o controle mútuo entre Executivo e o Legislativo, uma fiscalização mútua no sentido de se cumprir a vontade popular que, obviamente, é mutável com o tempo. Esta é a grande diferença entre o parlamentarismo e o presidencialismo, uma vez que, enquanto um sistema pretende ser legítimo por quatro, cinco ou até mesmo sete anos, o outro está em constante avaliação, sendo estabelecido um mandato máximo, mas não fixo, o que significa que se pode acabar antes do limite máximo, se assim apontar a população, que terá sua vontade expressa no governo, quando este, contando com o apoio da população, dissolve um parlamento que não mais conta com o apoio popular, submetendo a composição do novo parlamento ao voto direto do povo, ou, de outro lado, ouvindo os cidadãos, derruba o governo e constitui um novo gabinete com uma nova maioria no parlamento.
Entretanto, temos assistido a manobras de gabinetes que, para permanecerem no poder por mais alguns anos, utilizam-se de situações momentâneas não vinculadas às políticas do gabinete do primeiro-ministro e dissolvem o parlamento onde têm maioria na tentativa de manter o poder por mais, no mínimo, quatro anos.
Esta manobra, infelizmente comum em alguns sistemas parlamentares, pode ser exemplificada pelo caso do governo da Primeira-Ministra Margareth Tatcher, quando, no período que antecedia à guerra das Malvinas, gozava de baixa popularidade. Com a guerra e a vitória inglesa contra os argentinos, que culminou com a reconquista das ilhas próximas ao território argentino, a popularidade da “Dama de Ferro” foi recuperada. Tatcher, sabendo atrair para si a responsabilidade pela vitoriosa campanha militar, teve aprovação popular para mais um mandato, ao convocar antecipadamente eleições parlamentares.

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