8. OS SISTEMAS POLÍTICOS
Os sistemas políticos neste estudo compreendem a etapa final e mais complexa de análise do Estado, pois o seu exame significará a inserção de todos os dados levantados até agora, pela percepção da forma de Estado, forma de governo, sistema de governo e regime político, na realidade social, política e econômica do Estado objeto de investigação.
Queremos, com isto, demonstrar que, para se analisar qualquer dos fatores anteriormente mencionados, é fundamental, para se chegar a um resultado o mais próximo da realidade do Estado, inserir todos esses elementos no funcionamento da máquina estatal, na relação desses mecanismos com a sociedade civil, verificar a influência dos fatores econômicos, sociais e culturais nessas relações e compará-los, podendo, com isto, visualizar-se em que grau se encontra comprometida a vontade popular, na produção normativa, pelo Legislativo e mesmo Executivo, e na atuação do Poder Judiciário a partir dessa análise sociopolítica e econômica. A averiguação do sistema político apresenta, portanto, resultado completamente diferente daquele manifestado quando nos limitamos à análise, somente, do texto constitucional.
O confronto da produção normativa infraconstitucional, dos decretos e medidas excepcionais, previstos ou não no texto constitucional, pode demonstrar, com clareza, distorções da Constituição, apontando para um sistema político autoritário, no contexto constitucional de um regime democrático. Outro fator importante será a análise das decisões judiciais e sua correspondência com as expectativas populares e com o próprio sistema constitucional.
Entretanto, não podemos reduzir-nos à apreciação, apenas, da produção estatal. Outro fator importante será a constatação da eficácia da vontade constitucional, quando devemos analisar, por exemplo, em que medida o modelo de repartição econômica, previsto pelo texto constitucional, será encontrado na realidade econômica.
O texto brasileiro de 1988, por exemplo, traz um modelo de repartição econômica constitucional nos arts. 170 e seguintes, onde se privilegia as formas de ganho com trabalho, como o salário e o lucro advindo do investimento produtivo e sempre proporcional a este esforço, limitando as formas de ganho sem trabalho, como os juros e a renda, um representando o ganho com o dinheiro, e o outro, com outras formas de propriedade privada, e ainda o lucro, conseguido por meio de controle de mercado, sem competição e sem investimento. A realidade brasileira, se destacarmos o ano de 1995, apontou para o caminho inverso. Arrocho salarial, desemprego, juros altos, principalmente para uma moeda equivalente ao dólar, como aconteceu todo o ano de 1995 com o real. Ressalte-se, ao mesmo tempo, o processo de concentração econômica no sistema financeiro, incentivado pelo Estado com a fusão de vários bancos e inúmeras falências de pequenos e médios produtores. Percebe-se, com isso, que a realidade econômica e a atuação do Estado sobre essa realidade não corresponde ao modelo de repartição econômica previsto no texto constitucional, desde que não promove a democracia econômica que este projeta. (lembramos que este texto foi escrito em 1995-96 durante o governo Fernando Henrique Cardoso) Basta ler o texto e atentar, a partir de uma leitura sistemática, para a proteção ao trabalho e ao salário, às restrições aos juros altos, limitando-os a 12% ao ano, a proteção à pequena empresa, dentre outros mecanismos de promoção de um modelo de democracia econômica, dentro ainda de um modelo social-liberal, no sentido amplo dessa expressão[1].
Essa confrontação do texto com a realidade vivida dentro do Estado pode e deve ser feita, pegando-se cada um dos elementos estudados. Veremos que temos uma federação muito menos perfeita do que aquela existente no texto, um presidencialismo muito mais imperial do que é permitido pela Constituição, e, portanto, um sistema autoritário que não é consagrado pelo texto constitucional, motivo pelo qual defendemos a implantação de uma Constituição democrática e um novo conceito de direitos humanos e de Constituição, o que veremos no momento oportuno, quando do estudo da Constituição democrática.
Analisemos o sistema político brasileiro, a partir da realidade do Estado brasileiro e sua relação com os cidadãos no ano de 1995, durante o primeiro ano de governo do presidente eleito, pelo voto direto, Fernando Henrique Cardoso.
Várias são as distorções do regime político, na sua aplicação diária, fruto de uma cultura autoritária, clientelista e curto exercício histórico da democracia representativa.
No ano de 1995, tomado como exemplo, para a análise do sistema político brasileiro, percebemos o exercício autoritário do Poder, com a supremacia do Poder Executivo e a figura do Presidente da República, diante de um Poder Legislativo conformado e um Poder Judiciário, em várias oportunidades, inexplicavelmente comprometido com as teses econômicas do governo e não com a Constituição de 1988, em seus princípios e regras essenciais.
Exemplos não faltam para confirmar o que foi dito acima. Em 1995, foram editadas inúmeras medidas provisórias. A medida provisória foi criada pela Constituição de 1988 para substituir de forma democrática, portanto absolutamente excepcional, seu antecessor, que foi o decreto-lei. O decreto-lei consistia em medida normativa com força de lei, do Presidente da República, que era submetido à apreciação do Poder Legislativo e podia ser aprovado por decurso de prazo.
Percebendo a necessidade de prever medida legislativa excepcional por parte do Poder Executivo, em momentos que não se pudesse esperar os prazos de urgência, o Constituinte previu na Constituição de 1988 a medida provisória, mecanismo que permite que o Chefe do Executivo edite norma com força de lei no caso de relevante interesse público e urgência que justifique o governo legislar no lugar do Poder Legislativo, submetendo imediatamente essa medida a este Poder, a qual, sendo rejeitada por decurso de prazo, perde sua eficácia desde o momento de sua edição.
Essa conformação é a leitura possível em uma Constituição democrática. Entretanto, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, assim como o Ministério Público, fiscal da lei e da Constituição, têm aceitado e até mesmo sustentado a prática distorcida da medida provisória. Em matérias quase sempre sujeitas ao livre jogo democrático de discussão no Congresso Nacional, e em nenhum caso urgente, têm sido editadas medidas provisórias e reeditadas por sucessivas vezes, sendo que em alguns casos, por mais de doze vezes, acrescentando-se ainda o fato de que a cada mês alterava-se a sua redação em alguns parágrafos e incisos.
O autoritarismo estatal não se demonstra apenas nesse ponto. Como exemplo histórico da inadequação das medidas governamentais ao ordenamento constitucional, podemos mencionar dois decretos presidenciais, um regulando o direito de greve dos servidores, que constitucionalmente só pode ocorrer por lei complementar, e outro proibindo que a Administração Pública cumpra com seus compromissos financeiros legalmente assumidos, ao obrigar os órgãos da Administração Pública federal, a devolverem os recursos orçamentados em 1995, que foram empenhados e não liquidados. Tal medida fere diretamente a lei e ignora os princípios básicos de orçamento público[2].
Outros fatos são notados no comportamento do Poder Executivo, no governo da União, aceitos passivamente pela população, que, no entanto, demonstram o total desrespeito do Poder Executivo e a cumplicidade daqueles que não reagem com esse tipo de prática, apontando para um governo autoritário que desrespeita as regras que ele mesmo estabelece.
Esses exemplos ajudam a perceber a importância de se analisar a aplicabilidade da Constituição, para que se possa chegar à correta apreciação do papel do Estado nas sociedades contemporâneas, principalmente no chamado Terceiro Mundo(conceito que entendo superado neste surpreendente século XXI). Na América Latina, por exemplo, os antigos regimes autoritários foram substituídos, na grande maioria dos casos, por sistemas autoritários construídos sobre uma ficção constitucional que prevê formalmente um regime democrático representativo. (o neoautoritarismo na América Latina foi um fenômeno em tempos de noliberalismo na década de 80 e 90 marcado por governos que se revestiam de um discurso democrático mas que introduziram políticas econômicas de aprofundamento da desigualdade socioeconômica e entrega do patrimônio publico por meio de privatizações irresponsáveis. Foi marcante no Peru de Fujimori; Brasil de Fernando Henrique Cardoso; Argentina de Menen. Hoje, este neoautoritarismo se encontra superado, uma vez que mesmo os governos de direita no continente, hoje minoritários, se integram ao restante do continente diante da grave crise econômica da União Européia e EUA, crise esta gerada pela adoção das mesmas medidas liberais de desregulamentação do mercado).
O que a imprensa chamou de "Fujimorizaçao", numa referencia à truculência do Presidente peruano no seu primeiro mandato, que com apoio das Forças Armadas fechou o parlamento e impôs política econômica liberal, tem feições mais sofisticadas em outros países, em que, com o apoio da mídia, o Poder Executivo, como instituição dominante, impõe as verdades econômicas dos "novos esclarecidos" sobre a vontade popular (quando esta pode existir), com à tolerância ou apoio do Legislativo e do Judiciário.
[1] Autores brasileiros têm leituras diferentes da ordem econômica, tendendo para uma interpretação liberalizante, os Professores Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Celso Bastos, Ives Gandra, Miguel Reale, e uma leitura sistemática do texto os Professores Washington Peluso Albino de Souza, José Afonso da Silva e Eros Grau. No direito estrangeiro, leia-se: ASENJO, Oscar de Juan. La constitución económica espanola. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984; COMA, Martir Bascolo. Constituição e sistema econômico. Madrid: Tecnos, 1988; GELLHORN, Emest. Antitrust law and economics. St Paul: West Publishing, 1986.
[2] TORRES, Ricardo Lobo. O orçamento na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1995; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Finanças públicas e sistema constitucional orçamentário. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
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