terça-feira, 20 de dezembro de 2011

896- PODER MUNICIPAL 3 - Introdução


Para citação: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder Municipal, paradigmas para o estado constitucional brasileiro, Belo Horizonte, Editora Del Rey, 1997, pp. 23-27.

Introdução
José Luiz Quadros de Magalhães

Ao trabalharmos a ideia de democracia, percebemos que vários são seus conceitos em momentos diferentes da evolução do pensamento humano. Um fator, entretanto, é comum nessa evolução: em nenhum momento da história do Estado, ao qual se tem, em certas ocasiões, vinculado a ideia de democracia, visualizamos a existência de sociedade e de Estado que não criem excluídos.
Esse fato tem sido uma constante na evolução das civiliza­ções, uma vez que estas são marcadas pelo exercício de um poder, que, em graus diferenciados e por razões distintas, neces­sitam para sua sobrevivência e afirmação, de normas, estabele­cendo sempre diferentes formas de coação, para que a ordem estabelecida seja mantida. É importante notar que, mesmo nas civilizações marcadamente desenvolvimentistas, essa evolução que se busca estará sempre condicionada a determinados limites e valores, que não podem ser rompidos, pois significariam a destruição do próprio modelo de desenvolvimento.
Mesmo o desenvolvimento que se propõe em uma socie­dade como essa, está condicionado à conservação de determina­dos princípios e valores intocáveis, pois a sua alteração significa­rá a subversão da ordem estabelecida. O desenvolvimento se dá dentro de determinados parâmetros, que obviamente não permi­tem a percepção de incontáveis caminhos de desenvolvimento possíveis na construção de uma civilização diferente, baseada em valores diversificados.
Sem dúvida, tais formas de Estado e sociedade permitem maior segurança, pois, ao se apegarem a modelos de desenvolvimentos específicos, limitam a percepção de alternativas e transformam a realidade social e econômica como o único cami­nho possível dentro do qual devem estabelecer todas as conjecturas científicas para a solução de continuidade do mesmo modelo. Isso ocorre em qualquer proposta e em qualquer época, pois todos se apegam a estruturas de poder e a interesses dele decorrentes, o qual, para permanecer, não admite qualquer idéia que subverta a ordem, pois isto significaria a perda daquele valor maior que o fundamenta. Esse valor, por ser marcadamente de­corrente de um modelo específico de Estado e de sociedade, com o respectivo conjunto normativo existente para assegurar deter­minada ordem, mais ou menos excludente, e os interesses estabe­lecidos, não é coincidente com os valores de desenvolvimento da vida e da consciência nas suas mais variadas formas.
Dessa maneira, toda forma de organização social baseada no exercício do poder de um grupo sobre outro, e todo ordena­mento jurídico estatal, serão excludentes. Essa é uma afirmação perigosa, pois genérica, devendo ser considerada, portanto, na sua relatividade, no que se refere principalmente às instituições políticas.
Temos em comum, portanto, em todos os tipos de Estados e os seus respectivos ordenamentos constitucionais e legais, o estabelecimento de modelos, procedimentos e condutas que são impostas a todos os que se encontram submetidos àquele poder, seja qual for sua justificativa e forma de exercício. Aqueles que não se adaptam a esses comportamentos padrões, sejam morais, éticos ou legais, têm como resposta a rejeição, que será em graus diferentes, de acordo com a sua posição e importância na estrutu­ra e manutenção dos interesses do grupo no poder. O mesmo comportamento pode ser ou não tolerado, de acordo com a ori­gem e importância da pessoa dentro do sistema e do grau de sofisticação deste, que para justificar sua continuidade pode fa­zer demonstrações exemplares de sua justiça.
Importante lembrar que estamos trabalhando com concei­tos diversos de Justiça, de Direito e de Estado, para afirmar que em quaisquer dos modelos já propostos existirá a exclusão, po­rém em graus diferenciados.
Assim, os excluídos são aqueles que não se adaptam ao modelo proposto de organização social e econômica, ou, com maior freqüência, aqueles que são gerados por esse mesmo mo­delo, devendo ser afastados do convívio social, pois são a própria essência do fim do modelo existente.        
Isso nos leva a refletir que a democracia, entendida como modelo que permite participação da população que irá apontar os caminhos do Estado e da própria sociedade, é apenas, e sempre, tolerada pelo grupo que efetivamente tem maior poder naquele modelo de sociedade. Com a globalização, sem dúvida, o proble­ma se agrava[1].
Dessa forma, sintetizando o que foi dito até aqui, se ocor­rer, um dia, de certo partido de ideologia diferenciada vencer as eleições presidenciais norte-americanas, tese bastante questioná­vel que poderia ser ilustrada com exemplos mais palpáveis, como a eleição de um candidato fora do dualismo partidário, sem dúvida alguma o questionamento do modelo econômico e social existente, ou a simples ameaça longínqua de que isso ocorra, já seria suficiente para que a vontade popular, expressa através do voto em uma democracia representativa, já fosse imediatamente desconsiderada. São fartos os exemplos dessa tolerância. No Brasil podemos citar o episódio de 1964, no qual reformas de base que não ameaçavam estruturalmente o modelo socioeconô­mico nacional, mas sim interesses econômicos internacionais (aí a razão de me referir ao perigo maior da globalização), foram suficientes para justificar a intolerância do regime autoritário de então.
Esses excluídos são os não-cidadãos, aqueles que não têm voz, aqueles cuja fala é sempre desconsiderada. Várias são as formas de exclusão, umas mais sofisticadas do que as outras, umas criadas pelos Estados, outras pela Sociedade, que mantém o modelo proposto de organização social e econômica.
O lugar onde geralmente se jogam aqueles que "não se adaptam" são os presídios depósitos de "condenados pelo siste­ma penal" e os manicômios depósitos de "loucos". Os miseráveis historicamente foram jogados para além dos olhos da coletivida­de, que justifica e mantém o modelo existente[2].
Não só nos estados liberais ou neoliberais assistimos a esse fato, mas principalmente nos modelos fascistas e nazista, esse processo se deu com maior intensidade e a mesma brutalidade. Os Estados constitucionais socialistas tam­bém, para manter o seu modelo de desenvolvimento, afastaram os não adaptados, transformados em não-cidadãos. Importante lembrar que não discutimos aqui os valores e as ideologias que sustentaram esses processos de exclusão em épocas diferentes, por razões diferentes e com intensidades e crueldade diferentes, mas sim demonstramos que em todos estes modelos existem os não-cidadãos.
Contemporaneamente, os Estados mais desenvolvidos so­cial e economicamente têm processos mais sofisticados de exclsão. No passado, comportamentos não aceitos na sociedade hoje são aceitos ou tolerados em lugares diferentes. A prostituição virou atração turística nas vitrinas de Amsterdã, e o homossexua­lismo, considerado crime no século passado e doença mental em recentes decisões judiciais, é aceito em vários Estados e sociedades.
Sem dúvida alguma, em muitos desses países, o Estado social assistencialista conseguiu estabelecer bases para uma soci­edade mais democrática, mas nem por isso não excludente. Se por um lado, para se adaptar e se afirmar como modelo que mantém a liberdade, os neoliberalismos, ou as várias faces que o capitalismo ganhou neste século, toleram a aceitação e a diminui­ção da excludência nas suas formas não essencialmente econô­micas, como no caso das minorias, dos direitos culturais, do homossexualismo, do racismo, e das mulheres, que até pouco tempo não tinham direito a voto, de outro lado, como força de reserva, o nacionalismo e a violência racial podem ser resgatados no momento necessário para justificar a excludência interna dos Estados nacionais mais desenvolvidos[3].
Não há uma única fórmula. Estados diferentes com históri­as e justificativas diferentes terão saídas diferentes para a manu­tenção do modelo existente. Dessa forma, se na Europa em crise encontramos o ressurgimento do movimento nacionalista, renas­cido da crise do modelo econômico e social excludente e concentrador de riquezas, os Estados Unidos podem justificar sua violência urbana através de uma sociologia de percentuais, na qual a criminalidade se origina nela mesma, numa sociedade profundamente individualista, capaz de acreditar que o "não­-cidadão" escolheu livremente seu caminho, profundamente divi­dida entre bons e maus, entre cidadãos e não-cidadãos, que, por não serem cidadãos na terra dos direitos civis, podem ser conde­nados à morte, a trabalhos forçados, à prisão perpétua ou a outras diversas formas primitivas, ainda consagradas pela legislação.
A exclusão pode ocorrer de maneira mais sutil, de forma que os não adaptados, apesar de serem considerados cidadãos, e por isso terem voz e voto, são estigmatizados nos próprios meios de comunicação como excêntricos pensadores.



[1] VELOSO, João Paulo dos Reis; MARTINS, Luciano (coord.). A nova ordem mundial em questão. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1993; BLACKBURN, Robin (org.). Depois da queda - O fracasso do comunis­mo e o futuro do socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
[2] Para ilustrar recordemos a reforma urbana de Paris no período de Napoleão III quando se destruiu a Paris medieval ocupada pelos miseráveis, jogados na periferia, onde poderiam ser controlados com mais facilidade pela polícia, e no lugar se construiu grandes bulevares imunes a barricadas populares.
[3] FILATON, Milchail; RIABORE, Alexandre. O fascismo dos anos oitenta. Lisboa: Avante, 1986.

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