sábado, 24 de dezembro de 2011

930- PODER MUNICIPAL 9 - Democracia versus autoritarismo.

PARA CITAR: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder Municipal, paradigmas para o estado constitucional brasileiro, Belo Horizonte, Editora Del Rey, 1997, pp.

7. DEMOCRACIA X AUTORITARISMO

A doutrina classifica normalmente duas tendências opos­tas de regimes políticos na atualidade: os regimes democráticos e os regimes autoritários:
"Os regimes autocráticos, autoritários ou monocráticos caracterizam-se pelo poder público de uma única pessoa. Outro ponto para apreciá-los é o relativo à origem dos governantes e dos órgãos constitucionais, desde que a escolha dos governantes não é obra dos governados."26
Há um problema em relação a esta classificação clássica, porque nem todos estão de acordo quanto à conceituação de democracia, uma vez que “as democracias ocidentais permane­cem fiéis ao individualismo, ao passo que as democracias populares afirmam que também asseguram a liberdade, mas colocando os determinismos sociais em primeiro lugar”27
Podemos dizer que, com a afirmação do Estado Social e Democrático, as democracias ocidentais - com algumas exce­ções, e entre elas os Estados Unidos da América do Norte -, vêm abandonando o individualismo, ao mesmo tempo que algumas democracias populares européias vêm concedendo maior espaço para o campo de ação individual. (lembrar que este texto foi escrito em 1996 – atualmente (2012), embora a União Européia e Estados Unidos vivam uma gravíssima crise econômica do sistema liberal, seus governos insistem na radicalização de políticas de matriz liberal, no autoritarismo do capital financeiro e na continuidade do desmonte do que resta do Estado Social, o que parece um suicídio sócio-econômico – a proposta individualista, de uma sociedade fundada em valores de destruição social como a competição, o consumismo e o egoísmo é, por enquanto, hegemônica. Parece claro que isto não pode durar muito tempo.) CONTINUA O TEXTO DE 1996: Trata-se de revisão crítica do individualismo, como também do socialismo estatizante, que levaram a distorções, como o individualismo egoísta liberal e o socialismo massificador e estatal.
Isto comprometeu os dois modelos de democracia, uma vez que a democracia baseada no individualismo, nos Estados Unidos, levou ao artificialismo do bipartidarismo, ocasionado por um baixo índice de participação popular e por uma persegui­ção feroz aos partidos de esquerda na década de 50. Do' outro lado, o partido único, como foi estruturado, deixou uma parcela da sociedade sem representatividade, censurando-se qualquer voz dissonante, o que não impediu a revisão do regime, impulsionada pelos problemas econômicos.       .
Apesar de antagônicos, o modelo individualista de demo­cracia norte-americana, como o modelo estatizante de democra­cia popular soviética, que agora se desfaz, possuíam pontos co­muns: a eleição indireta do Executivo, o controle pelo "grupo" dominante dos meios de comunicação social28; e, finalmente, a inexistência de uma opção política diferente daquela que se en­contra no poder, representada pelo bipartidarismo real norte­americano e o partido único soviético.
Diferença fundamental entre os dois modelos de "demo­cracias" será a ênfase aos direitos sociais no modelo de democra­cia popular, em detrimento dos direitos individuais extremamen­te comprometidos, enquanto que, no modelo individualista, en­contra-se o exercício dos direitos individuais, sendo que a exis­tência dos direitos sociais depende de uma economia forte e em ascensão, amparada em uma ordem econômica estruturada sobre a exploração do Terceiro Mundo.
Para evitar esse confronto entre o modelo de democracia "ocidental", que pode ser mais individualista ou mais socializante, e o modelo de "democracias populares", Juan Fer­rando Badia classifica em três os grandes sistemas políticos atuais: o democrático, o social-marxista e o autoritário:
a) a democracia clássica liberal tem como fim essencial aperfeiçoar a já existente liberdade baseada no sufrágio univer­sal, no equilíbrio de poderes, no pluralismo de partidos, no auto­governo e na supremacia da lei;29
b) o sistema social-marxista, no qual se estabelecem três fases para se chegar a uma democracia marxista, onde o homem será livre, uma vez que liberado da exploração e de sua subordi­nação às forças da natureza: a ditadura do proletariado, o socia­lismo e o comunismo ou fase superior. Na ditadura do proletaria­do e na fase socialista, concebe-se a liberdade, exclusivamente, como a participação de cada cidadão na construção do comunis­mo, não tendo sentido falar-se em liberdades de resistência nem de limitações aos governantes. Na fase final do comunismo, o problema das limitações ao poder dos governantes não existe, uma vez que na sociedade comunista o Estado e os governantes não existirão mais. Estaremos, portanto, diante de uma democra­cia total, de auto-gestão social integral30;
c) o sistema autoritário, especialmente em suas versões do fascismo e nacionalismo, foi a melhor mostra das transformações que sofreu a teoria individualista das liberdades públicas.
Os regimes autoritários partem do pressuposto da inevitá­vel inferioridade das massas em relação às elites políticas e especialmente em relação ao chefe, portador de excepcionais qualidade31.       .
Giuseppe de Vergottini acrescenta que o Estado autoritário surgiu para fazer frente ao comunismo ou às formas estatais progressistas. Sua finalidade será a de manter situações de desi­gualdade social e econômica e frear os movimentos de reivindi­cação de igualidade e as formas difusas de participação política.32
O regime autoritário, que se afirmou na década de 60 e 70, em países latino-americanos como o Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Chile, dentre outros, é sem duvida o pior campo para a existência dos direitos humanos, pois não existe respeito a ne­nhum dos grupos de direitos, sejam individuais, sociais, políticos ou econômicos.   .
Portanto, neste estudo dos sistemas políticos podemos no­tar que, no atual estágio de evolução dos sistemas políticos, o que melhor apresenta condições para o desenvolvimento dos direitos humanos será o socialismo democrático (ou a social-democracia dos partidos europeus do século XIX e parte do século XX), que reúne elementos do liberalismo, ao assegurar as liberdades fundamentais, e do socialis­mo, ao assegurar direitos sociais, democracia econômica e política. Será a partir desse modelo que, aperfeiçoado, chegaremos a modelos mais democráticos e participativos de sociedades. (Mais uma vez lembrando que este texto foi escrito em 1996, é importante lembrar o abandono - de forma clara na década de 90 e no século XX-  por parte dos partidos socialistas tradicionais da Europa ocidental, do projeto de construção do socialismo pela via parlamentar representativa burguesa. Estes partidos perderam o rumo e o eleitorado, sofrendo derrotas eleitorais onde o eleitorado tradicional de esquerda européia deixou de votar. Em outras palavras, perderam a eleição sozinhos, por falta de coerência histórica e coragem política. Não acredito mais em qualquer solução social-democrata. Não há futuro possível para a humanidade no capitalismo. Podemos construir um socialismo novo na América-plural, com a experiência do estado plurinacional e o novo constitucionalismo latino-americano, expresso principalmente nas Constituições da Bolivia e Equador de 2008-2009).
VOLTAMOS, ABAIXO, AO TEXTO DE 1996:
A democracia liberal clássica se mostrou ineficaz, posto que ao respeitar as liberdades individuais, ignorando, os direitos sociais, inviabilizou o exercício dessas liberdades para grande parte da população. O sistema marxista-social, nos seus dois primeiros estágios de evolução, enfatizou os direitos sociais e econômicos, não havendo, entretanto, o pleno exercício dos di­reitos individuais. Sem dúvida que, ao atingir o terceiro estágio, estaríamos diante da realização de todos os direitos da pessoa, o que, entretanto, parece difícil, no atual estágio da evolução humana.
Retomando, portanto, à democracia social, vamos recorrer a Juan Ferrnando Badia, que ressalta a importância do sistema de democracia social que surge do impacto da crítica marxista ao liberalismo e da pressão operária. Foi a partir desse momento que as democracias políticas se foram transformando em democraci­as sociais, sendo que em alguns casos, que ainda são poucos, houve também a aceitação de certos princípios de democracia econômica.33
Com tais modificações essenciais do capitalismo, surgiu o que se pode chamar de capitalismo social com a fusão de princípios liberais com princípios socialistas e o aparecimento dos regimes social-democráticos, mudando o panorama inicial da crítica mar­xista, sendo possível o surgimento de tendências conciliadoras leste-oeste34. Esse entendimento, que parecia ser possível, devia-se às mudanças da democracia do sistema social-marxista, que passou a modificar determinadas posições em relação às liberdades individuais no final da década de 1980.
Ao trabalharmos, portanto, com o sistema político demo­crático-social, devemos atentar para as graves distorções que esse sistema apresenta, para que se possa aperfeiçoá-lo até um modelo totalmente democrático de sociedade. É ameaça constan­te a este modelo, a ausência de democracia econômica e especial­mente a auncia de uma gestão democrática dos meios de comu­nicação social. Tal ameaça pode ser notada na existência do autoritarismo estatal na realidade, contrapondo-se a uma demo­cracia social delineada na Constituição. A realidade dos fatos se sobrepõe à realidade constitucional, amparada nos meios de con­trole da opinião pública, chegando ao que Luiz Sanches Agesta chama de "forma autônoma de governo" baseado no carisma de um líder:
"En el horizonte político contemporaneo ha adquirido un relieve extraordinario una nueva fundamentación dei po­der de autoridad que exalta la personaiidad concreta de un jefe. Este concepto reconoce ciles precedentes histó­ricos, y hasta cierto punto puede considerarse como una forma de gobierno autónoma, si.bien con las limitaciones que resuitan de sus propios caracteres35."
A diferença fundamental desses líderes carismáticos na atu­alidade é que eles não necessitam se amparar em um aparato militar repressivo, mas se apóiam especialmente na propaganda pelos meios de comunicação de massa condicionantes do compor­tamento e das consciências. Tudo isto pode fazer parecer que um sistema autoririo tenha a aparência de uma democracia social.
Passando para a análise das Constituições brasileiras, en­contraremos modelos que atendem as nossas afirmações anterio­res, quando nos referimos a graduações de regimes democráticos e autoritários, e à frágil linha que divide, por vezes, esses regi­mes, o que irá somar-se à não-compreensão da democracia como processo, mas como modelo pronto e acabado, o que cria dificul­dade com as suas diversas conceituações ou concepções.
A Constituição brasileira de 1824, Constituição do Impé­rio outorgada pelo Imperador, adota o que se poderia chamar, enquanto tipo de Constituição, um modelo liberal. Marca-se, então, mais um liberalismo político constitucional, não coincidente com a realidade econômica do país. O modelo político é altamente restritivo, reservando a participação no Poder do Esta­do a uma minoria que detinha o poder econômico, e um modelo de poder estatal privatizado, o que fazia coincidir o poder econô­mico local com o poder político.
O regime político constitucional adotado, analisando sua estrutura a partir dos paradigmas de democracia enquanto pro­cesso adotado neste trabalho, e não o paradigma liberal da época, se mostra como altamente autoritário, quando reserva poderes ao imperador e restringe a participação popular ao modelo de voto censitário.
Embora a Constituição tenha adotado mecanismos típicos da democracia representativa e tenha declarado direitos individu­ais, tanto os direitos políticos como os individuais são constituci­onalmente colocados como direitos de privilégios, o que não nos permite classificá-las como direitos humanos, a partir do paradigma da doutrina da indivisibilidade dos direitos funda­mentais, sociais, individuais, políticos e econômicos. Não é pos­sível classificar a Constituição brasileira de 1824 como uma Constituição democrática seja na doutrina do Estado social e Democrático de Direito, seja na perspectiva de um Estado de democracia constitucional radical que pretendemos construir neste trabalho.
A Constituição de 1891 criou um Estado laico, rompendo os laços estatais com a Igreja, e construiu uma federação, como já visto anteriormente, em uma forma de governo republicana. O regime de governo consagrado na Constituição, mesmo que ado­temos os referenciais teóricos do pensamento liberal da época, não pode ser considerado como democrático, uma vez que a Constituição mantinha o voto censitário em um modelo ainda assentado no poder privado local, que mantinha um poder central autoritário, numa federação pouco evoluída.
Note-se que não será a análise do sistema político que nos permitirá tirar estas conclusões; está análise irá apenas reforçar o que já é constatado pela simples leitura do texto. Acrescente-se, ainda, que as mudanças que já ocorriam nos Estados liberais europeus desse período, por força do movimento operário, com a adoção do voto secreto, universal e periódico, incluindo-se a mulher em alguns casos, fazem com que o modelo constitucional de "democracia representativa", ado­tado pela Constituição de 1891, já se encontrasse superado pela doutrina mais atualizada da época, não permitindo o texto nem mesmo o funcionamento de uma democracia representativa, mas sim um regime autoritário sustentado ou falsamente legitimado por eleições com participação popular inexpressiva e conduzidas pelo sistema do coronelismo, pouco ou nada representativo.
A Constituição de 1934 foi nossa primeira Constituição social e democrática, incluindo os direitos sociais e econômicos no texto fundamental, aumentando o leque de direitos fundamen­tais, ainda vistos numa perspectiva neoliberal que os separava em dois grupos estanques de direitos, ou seja, o núcleo essencial­mente liberal de direitos individuais e políticos de implementa­ção imediata e o grupo de direitos socioeconômicos de caracte­rística meramente assistencialista e muitas vezes apenas programáticas.
A democracia representativa adotada apontava para um modelo que correspondia ao mais avançado da doutrina do cons­titucionalismo social, marcadamente assistencialista, numa pers­pectiva neoliberal, no sentido mais amplo da expressão.
Embora já em 1848, na França, e a partir de 1919, na Alemanha, com a Constituição de Weimar, teóricos do Direi­to Constitucional já estudassem um modelo novo de democracia política, econômica e social, afirmando a interdependência entre esses conceitos, ou, em outras palavras, a indivisibilidade dos direitos fundamentais, essa corrente era minoritária. No caso alemão, juntamente com os defensores do Estado assistencialis­ta, serão estes derrotados, momentaneamente, pelo pensamento autoritário na versão do Estado total do tipo de Estado social, que representa o movimento fascista e nazista que se afirmaram naquele momento em parte da Europa. Naquele momento, na Europa, era possível visualizar o confronto de vários grandes discursos sobre o Estado: o Estado Social assistencialista; o Estado socialista (e a posterior distorção “stalinista”); o Estado democrático e social de direito e o Estado nazi-fascista (lembrando que existem importantes diferenças entre o social-fascismo e o nazismo, dois movimentos de massa de extrema-direita).
No Brasil, o reflexo dessa tendência será a adoção de nova Constituição, substituindo a de 1934, que não chegou a ser implementada. A Constituição de 1937 é, no seu texto, a mais autoritária, copiando do modelo fascista europeu uma forma de organização vertical, na qual se pretendia eliminar as contradi­ções entre o capital e o trabalho, concentrando poderes, no Exe­cutivo, nas mãos de um Presidente que deveria encarnar as quali­dades da nação e que conduzia o País de forma não democrática, pois sua legitimidade enquanto líder dispensava audição da população para ratificar ou orientar as suas ações no governo, que, para ter mais agilidade e eficiência, não poderia depender de um parlamento lento que perdia muito tempo em discussões inócuas.
Para fazer frente ao crescente movimento comunista, a nova ideologia adota um discurso social assistencialista, entre­tanto autoritário, uma vez que a democracia social não foi capaz de afastar os temores do grande capital nacional, dos países que adotaram este regime autoritário, na forma de um Estado total, presente em todas as esferas de decisão.
A Constituição de 1937 indica claramente esse modelo autoritário, mantendo direitos sociais e econômicos no seu texto dentro de uma perspectiva altamente intervencionista, inibindo instrumentos de manifestação coletiva recentemente reconheci­dos como direitos pela legislação, como o direito de greve, que foi considerado, na época, como de manifestação antinacional.
A Constituição brasileira de 1946 mais uma vez reflete movimento mundial de redemocratização nos moldes neoliberais (no sentido amplo), adotando modelo de Constituição social-liberal, se­melhante ao texto de 1934, consagrando o voto secreto, periódi­co e universal em um contexto de democracia representativa.
Podemos afirmar que esse período de vigência da Consti­tuição de 1946 foi o primeiro de democracia representativa, embora ainda restrita, o que pode ser demonstrado pela ilegalida­de do Partido Comunista, que pode ser explicada pela perspectiva de leitura neolibera1 de nosso texto, em um contexto de "Guerra Fria", no qual o mundo se repartia em basicamente duas áreas de influên­cia, a soviética e a norte-americana.
O texto de 1946 adota a democracia representativa, corres­pondendo à tendência do direito constitucional ocidental naquela época. Sua vigência será, entretanto, suspensa pelo sistema autori­tário (o golpe empresarial-militar de 1964), interrompendo período único em nossa história, até então, de uma democracia representativa relativa, que durou 18 anos.
O regime autoritário não estava, ainda, sustentado por Constituição escrita, o que será feito em 1967, e adequado à vontade dos generais e dos grupos econômicos nacionais e es­trangeiros que sustentaram o regime, pela Emenda Constitucional n. 1 em 1969, texto absolutamente contraditório no aspecto constitucional-formal.
Essas Constituições (1967 e 1969) refletiram o estabelecimento de um regime autoritário que tentou se revestir de constitucionalidade e legali­dade, declarando direitos individuais, sociais, políticos e econô­micos numa perspectiva neoliberal altamente intervencionista e limitada.
Os direitos políticos eram constitucionalmente limitados inibindo a participação popular e o voto direto e secreto para a escolha dos cargos mais importantes, principalmente em um sistema presidencial que no regime auto­ritário concentra os mais importantes poderes de decisão no Presidente da Repúbli­ca, na época, generais que se sucederam no poder.
Após o violento período de ditadura militar-empresarial, e depois de assentadas novas bases de desenvolvimento econômico num processo de concentração econômica incentivada pelo Estado a favor dos banqueiros e industriais que patrocinaram o regime, houve lento e gradual processo de redemocratização, ou, mais precisamente, um lento processo de recuperação de direitos individuais, especialmente a relativa liberdade de expressão, as liberdades públicas em geral e o direito a voto para os cargos de chefia do Executivo[2].
Esse processo culmina na Constituição de 1988, que mar­ca um ponto de arrancada para a construção de uma democracia política, social e econômica. O modelo de Estado adotado nesse texto será o de um Estado Social e Democrático de Direito, permitindo o texto leitura mais avançada no sentido da indivisibilidade dos direitos fundamentais, que permi­tem entender o oferecimento de direitos sociais e econômicos não de forma clientelista, mas em uma perspectiva libertadora. Esse texto e, obviamente, a transformação da Constituição escrita na Constituição real do Brasil, é uma etapa fundamental que tem que ser cumprida para possibilitar posterior passagem para um Estado efetivamente democrático, que implicará a revisão, ou o estabelecimento de novo conceito de direitos fundamentais da pessoa, que utilizamos em trabalhos anteriores como sinônimo de direitos humanos constitucionais, uma das perspectivas sob as quais podemos estudar os direitos humanos[3].
Questão importante surge neste momento: é necessária a passagem pelo modelo de Estado Social e Democrático de Direi­to, visto numa perspectiva assistencial mas libertadora, ou seja, não clientelista, para se chegar ao novo conceito de Estado de Democracia radical, em que a base dos direitos humanos será a vontade dos cidadãos, sendo limite dessa faculdade apenas os direitos humanos aceitos em todas as culturas e sistemas econômicos como universais? Este é um ponto crítico que merece reflexão mais detida, e cuja resposta definitiva não pode ser oferecida apenas pelos teóricos do Direito, mas só será encontrada na realidade social, ou seja, na demonstração da sociedade civil de sua capacidade de responder aos desafios que lhe são colocados, superando-os de forma decidida e organizada.
Fator de fundamental importância será o de implementa­ção do texto constitucional, no sentido de criar no administrador e nos cidadãos uma nova mentalidade, em que todo o aparato assistencialista e intervencionista desse Estado, criado pela Constituição de 1988, seja colocado numa perspectiva não clientelista, ou, em outras palavras, numa perspectiva que não permita a utilização da estrutura estatal para a manutenção do modelo social e de repartição econômica que assiste os excluí­dos, de forma a criar uma clientela permanentemente dependente do Estado, evitando-se, com isto, quebrar o modelo socioeconômico existente.
A perspectiva não clientelista ou libertadora de nossa Constituição significa essencialmente uma mudança na forma de ver a atuação do Estado interventor e assistencial como temporária e, portanto, cumprindo o papel de criar condições de democracia radical, ou seja, de participação de todos os cidadãos na construção da vida social e econômica de forma plena. A Constituição deverá passar por novas transformações, para adaptar-se a um novo tipo de Estado, no qual os cidadãos, munidos de meios para exercer sua liberda­de, como saúde e educação, terão, no novo texto constitucional, a criação de mecanismos de comunicação e participação nas deci­sões de um Estado descentralizado, além de contar com uma estrutura estatal não a serviço da manutenção de situações esta­belecidas ou de privilégios, mas sim instrumento de mudanças contínuas, em espaços territoriais pequenos, como o do municí­pio, nos quais cada comunidade possa promover a construção de seu modelo social e econômico, amparada e sustentada pelos Poderes do Estado.
A análise do regime político, consagrado pela Constitui­ção de 1988, leva-nos a uma democracia política, social e econô­mica, e a uma radical mudança de paradigma, com o abandono dos referenciais liberais e neoliberais c1ientelistas, partindo-se de visão compartimentada dos direitos fundamentais, para a adoção de novo modelo de Estado Social e democrático de Direito, consagrando a indivisibilidade dos direitos fundamentais, fazen­do com que o oferecimento dos direitos sociais e a intervenção do Estado no domínio econômico tenha uma perspectiva de construção de uma democracia participativa com perspectiva libertadora, que coloca os direitos sociais e econômicos, como meios ou garantias de exercício dos direitos individuais e políti­cos. É o que chamamos, em outros trabalhos, de garantias socio­econômicas de implementação dos direitos humanos.
Na perspectiva da indivisibilidade dos direitos humanos, o conceito de democracia sofre uma marcante evolução. Deixa de ser uma perspectiva meramente política, de participação no po­der do Estado através do voto, seja em mecanismos de democracia representativa, quando o povo escolhe os seus representantes que atuarão em seu nome, ou, seja em mecanismos de democra­cia semidireta, como o plebiscito, referendo e iniciativa popular das leis, também consagrados em nossa Constituição, para ga­nhar uma proporção muito maior, em que a democracia política, para existir enquanto mecanismo de manifestação consciente da vontade dos cidadãos, inclui, necessariamente, a existência de uma democracia social, econômica e cultural.
Não tem sentido, neste trabalho, estudarmos as inúmeras classificações de regimes políticos e sistemas políticos, e sua variações em diversos países em momentos históricos diferentes, desde que já foi tratada pelo Professor José Alfredo de Oliveira Baracho, no livro Regimes Políticos, com extrema riqueza bibli­ográfica, levantando e analisando classificações diversas, que passam por expressões como: "cesarismo democrático", "ditadu­ras totalitárias", uma das vertentes do autoritarismo, o fascismo e o nacionalismo alemão, "monocracias marxistas", "grandes demo­cracias", "médias e pequenas democracias"; "regimes democráti­cos sem imediata tradição democrática", "regimes de Estado re­centemente descolonizados", "regimes de povos industrializados" e "regimes de povos subdesenvolvidos" e muitas outras classifica­ções que analisam aspectos específicos dos regimes de diversos países, motivo pelo qual remetemos o leitor ao referido livro.[4]
Importante ter sempre em mente que as diferentes classifi­cações partem de referenciais teóricos diferentes, o que pede do estudioso do tema atenção redobrada, sob pena de simplificar o que não pode ser reduzido. Classificações que colocam o antigo regime soviético, que teve variações durante sua história, sim­plesmente como totalitarismo de esquerda ao lado do totalitaris­mo de direita, partem de paradigmas completamente diferentes daquelas classificações que colocam o antigo regime da não mais existente União Soviética, como uma democracia socialista base­ada na idéia do centralismo democrático. Essas classificações, tão divergentes, não nos conduzem à afirmativa de que uma está incorreta e a outra, correta. Isto não existe. A posição diferencia­da, em que autores diferentes colocam o mesmo regime históri­co, aponta na verdade para diferentes referenciais teóricos ou conceitos diferentes de democracia.
É importante ressaltar que, ao preferirmos uma classifica­ção dos regimes políticos constitucionalmente consagrados entre autoritários e democráticos, e no mesmo sentido os sistemas políticos que estudaremos a seguir, tivemos o cuidado de de­monstrar que muitas graduações desses dois regimes e desses dois sistemas existirão talvez na mesma proporção dos Estados existentes em um determinado momento histórico. Por esse mo­tivo, a classificação deve permitir encontrar os elementos e as idéias teóricas que se escondem por trás dos rótulos, para que o analista do Estado possa, através destes referenciais, extrair, dos textos legais estudados e a partir da observação da realidade do funcionamento dos órgãos do Estado, e de sua relação com a sociedade, a correta analise do Estado objeto de estudo.
Os rótulos tendem a ser utilizados como generalizadores de situações, simplificadores de análises aparentemente substan­ciais, tais as complexas classificações que simplificam a realida­de. Deve ocorrer o oposto, e este é o sentido das classificações utilizadas neste trabalho. Os rótulos são meros orientadores e não uma verdade em si mesma, mais importante que a realidade. As classificações adotadas devem ser roteiros simples para uma análise complexa da realidade estatal.


26 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Op. cit., p. 249
27 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Op. cit., p. 249; HAMON, Léo.Mort des dictatures? Paris: Económica, 1982; BADIA, Juan Ferrando (Coord.). Regimenes políticos actuales. Madrid: Tecnos, 1985.
28 Enquanto na União Soviética os meios de comunicação eram estatizados e controlados, não pela sociedade, mas por uma burocracia, nos Estados Unidos os meios de comunicação são controlados por uma elite econômica que também influencia de maneira marcante o poder estatal.
29 BADIA, Juan Ferrando. Democracia frente a autocracia. Los tres grandes sistemas políticos (el democrático, el social-marxista y el autoritario). Madrid: Tecnos, 1989, p. 51. É necessário compreender que será dentro deste modelo de democracia com ênfase aos direitos individuais e ausência de preocupação social do Estado que se desenvolverá a democracia social que implica o oferecimento de direitos sociais, e na democracia econômica, sendo portanto campo fértil para afirmação dos direitos humanos.
30 BADIA, Juan Ferrnado. Op. cit., p. 57-58.
31 VERGOTTINI, Giuseppe de. Derecho constitucional comparado. Madrid: Espasa-Calpe, 1983, p.116.
32  BADIA, Juan Ferrando. Op. cit., p. 55/56.
33 BADIA, Juan Ferrando. Op. cit., p. 80.
34 BADIA, Juan Ferrando. Op. cit., p. 81
35 AGESTA, Luiz Sanches. Princípios da teoria política. 3. ed. rev., Madrid: Editora Nacional, 1970, p. 389.


[2] ABREU, Marcelo Paiva et al. A ordem do progresso - Cem anos de política econômica Republicana – 1889 -1989. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
[3] ANDRADE, José Carlos Vi eira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1983; SALGADO, Joaquim Carlos. Os direitos fundamentais e a constituinte em constituir e Consti­tuição. Belo Horizonte: UFMG, 1986; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direitos humanos na ordem jurídica interna.

[4] BARACHO,José Alfredo de Oliveira. Regimes Políticos, Op. cit

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