quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

899- Poder Municipal 4 - Democracia e Estado


Capítulo I

 DEMOCRACIA E ESTADO

            Vamos nos restringir apenas aos tipos de Estados constitu­cionais que se afirmam a partir das revoluções burguesas do século XVIII, para que possamos visualizar a evolução recente da democracia e preparar as bases teóricas para o estabelecimen­to de um novo conceito de Estado constitucional democrático[1].
            Partindo da ideia de um Estado Constitucional, como aquele que limita os poderes do Estado, organiza sua estrutura, distribui competências e declara e garante direitos fundamentais da pessoa humana, vamos encontrar uma de suas manifestações iniciais na Magna Carta de 1215, quando o Rei João Sem Terra, na Inglaterra, pressionado pelos proprietários ingleses, foi obri­gado a reconhecer um texto de compromisso com os interesses reconhecidos então como direitos dos barões ingleses. Esse fato marca um ponto inicial do Estado Constitucional, que será a necessidade da limitação do poder do Estado por um texto legal maior que todos os poderes do Estado, reconhecendo direitos de outros grupos no ordenamento legal. Um segundo marco impor­tante para a afirmação do Estado constitucional serão as revolu­ções burguesas do século XVIII, na América do Norte, em 1776, e na França, em 1789. Na França revolucionária onde foram declarados os direitos dos homens e dos cidadãos, marcando a passagem para um modelo de Estado liberal constitucional, em que o poder do Estado é limitado e os direitos fundamentais, na época apenas os direitos individuais e políticos (para homens brancos proprietários e ricos), são declarados nas Constituições e respeitados por todos, o que não ocorreu nesse tipo de Estado em nenhum momento. Na prática esses direitos fundamentais constitucionais não são direitos humanos, mas sim direitos de privilégio ou de superioridade. Os que têm capacidade para conquistá-los terão esses direitos garantidos pelo Estado e principalmente contra o Estado. Os que não tive­rem a capacidade de conquistá-los serão abandonados à sua própria sorte. Essa realidade espelha o darwisnismo social que, numa adaptação da teoria de Darwin, afirma que os melhores serão selecionados por esse modelo socioeconômico livre que permitirá que os mais capacitados continuem a construir natural­mente uma sociedade melhor.
            O modelo de Estado liberal não funcionou. O crescimento econômico desordenado, a gigantesca concentração econômica e a revolta social, que passa a ser organizada pelos movimentos socialistas na segunda metade do século XIX, desafiam a conti­nuidade do modelo que começa a mudar, primeiramente nas leis infra-constitucionais, com as primeiras leis trabalhistas, previ­denciárias e a lei antitruste, que marcam uma mudança de postu­ra do Estado que de abstencionista passa a intervir nas questões sociais e econômicas, assistindo aos economicamente excluídos ou carentes de um lado, e de outro lado intervindo no domínio econômico, no sentido de controlar o processo de concentração econômica, evitando o fim do modelo liberal que se baseava na livre iniciativa e na livre concorrência, inviabilizadas pela con­centração econômica e o domínio de mercados decorrente dessa concentração.[2]
A Primeira Guerra Mundial foi um marco divisor de águas para esse modelo. Morre o Estado liberal e nasce no seu lugar dois novos modelos. Um será sua negação. O Estado socialista, nascido com a revolução bolchevique em 1917 na Rússia, rompe com o pensamento liberal através de unia crítica contundente ao capitalismo feita por Marx. Constrói, a partir do pensamento marxista-leninista, uma nova estrutura de Estado que se pretende não excludente, e que seria a etapa necessária para uma sociedade sem Estado, sem poder, sem hierarquia. Para a consecução de seus objetivos, necessário seria um Estado forte, que abolisse a propriedade privada dos meios de produção e que elevasse todos os trabalhadores à condição de cidadãos, aptos a construir seu próprio destino em uma sociedade totalmente livre e onde o direito fosse internalizado em cada pessoa. Esse projeto de Estado teve nuanças diferentes em cada país em que ele se estabeleceu e ainda hoje sofre releituras constantes, principalmente com o desafio do fim da União Soviética e da estrutura burocrática e policial em que se transformaram estes Estados.
Em todos os casos, esses Estados se desviram do seu objetivo inicial. Devido a pressões internas e externas, o modelo socialista se fechou, e para continuar vivo foi obrigado a se modificar, e assim, como no caso do liberalismo que negou a sua essência, O estado socialista se transformou em  um Estado policial, capaz, em muitos lugares, de oferecer saúde, educação, trabalho e moradia, mas negando a liberdade total que era o seu grande desafio, a partir da libertação de todos de suas carência materiais e intelectuais. De uma proposta includente, passou para uma prática excludente, em que os não adaptados eram depositados em presídios e manicômios, como nos outros Estados. O desafio de construir um modelo no qual todos tenham voz, fala e comunicação, continua existindo.
Em 1917, no México e me 1910 na Alemanha ( Constituição de Weimar), temos as primeira Constituições sociais. Esse modelo vem reformular o modelo liberal, morto na Primeira Guerra Mundial, propondo em nível constitucional um neoliberalismo, no qual seria admitida a intervenção do Estado no domínio econômico e a assistência aos excluídos, oferecendo direitos sociais a uma clientela de desfavorecidos economicamente. Perceba-se que não há nesse caso um rompimento com o modelo econômico, mas sim adaptações para a sua manutenção.[3]
As Constituições sociais ampliam o leque de direitos fun­damentais garantidos, somando, ao núcleo liberal de direitos individuais e políticos, novos direitos sociais e econômicos. Des­sa forma, o Estado poderia enfrentar a questão social de maneira que se evitasse o risco de uma mudança radical no modelo econômico, alterando em alguns casos, sensivelmente, o modelo de repartição econômica sem comprometer no entanto grandes interesses privados. Estavam, pois, separados em dois núcleos estanques os direitos fundamentais da pessoa humana. De um lado, os direitos individuais e políticos, como direitos de implementação imediata, numa perspectiva liberal de direitos basicamente contra o Estado. De outro lado, os direitos sociais e econômicos, oriundos de pensamento e das reivindicações socialistas do século XIX, incorporados na legislação dos Estados liberais e agora elevados ao nível constitucional pelos modelos neoliberais emergentes.Esses direitos são incorporados, entretanto, a partir de outro paradigma que não o do Estado socialista, o que os transforma em direitos assistencialistas para uma clientela de excluídos do modelo econômico que se queira manter[4].
O radicalismo fascista não tarda a surgir. O discurso ultranacionalista, incorporando tonalidades bastante dissonantes do apelo socialista, era a fórmula ideal que o grande capital nacional de diversos Estados, principalmente europeus, encon­trou para fazer frente à proposta internacionalista de luta de classes dos revolucionários comunistas do início do século.
O fascismo, ultranacionalista, antidemocrático, antiliberal, anticomunista, anti-socialista e racista,conseguiu quebrar li unidade internacional do proletariado através de um forte apelo corporativista e nacionalista. De uma proposta de organização hori­zontal em que a ideia de classe social unia trabalhadores de todo o mundo, o fascismo opõe uma organização vertical, na qual todos são colocados como essenciais em uma uma organização nacional, dentro de uma perspectiva de luta entre raças superiores e inferiores. Ao Estado correspondia uma nação e necessariamente uma raça[5].
Uma outra guerra e agora renasce o Estado social, como proposta efetivamente neoliberal, uma vez que o vencedor da Segunda Guerra Mundial foi o grande capital, que iniciou a guerra para a manutenção de seus interesses. Se no campo militar se proclamou a vitória dos aliados, com a derrota das tropas do eixo, constituídas por Alemanha, Itália e Japão, no campo humano todos saíram perdendo pela tragédia ocorrida. Entretanto, uma perspectiva de poderio econômico configurava-se nas novas po­tências. Ao percebemos, hoje, quais são as grandes economias do mundo, podemos com clareza e sem o tradicional romantismo racista da capacidade de trabalho de determinados povos, perce­ber quais foram os verdadeiros vencedores. Não é por acaso que a Alemanha, a Itália e o Japão se encontram entre as sete maiores economias do mundo.
Uma outra leitura das Constituições sociais, entretanto, propõe uma perspectiva não excludente. Surgindo, segundo al­guns, pela primeira vez na Revolução Francesa de 1848, e renascida entre os constitucionalistas alemães deste século, a pro­posta de um Estado Democrático de Direito, baseado numa de­mocracia econômica, social e política, propõe um rompimento democrático das estruturas socioeconômicas, por meio de nova leitura dos textos constitucionais, a partir da reconstrução do conceito de democracia.
A democracia nessa perspectiva deixa de ser apenas direi­to de votar e ser votado, como forma de participação no poder do Estado, transformando-se em um conceito construído a partir da ideia de uma sociedade democrática, como fundamento de um Estado efetivamente democrático, sensível às constantes indicações dessa sociedade sobre qual caminho deve seguir.
Essa nova perspectiva faz com que tenhamos uma premissa básica para a compreensão dos direitos fundamentais: a indivisibilidade desses direitos. Os direitos individuais, para a sua implementação, dependem dos direitos sociais e econômicos, que também se interrelacionam, assim como os direitos políticos ou a democracia política pressupões a existência de direitos individuais, sociais e econômicos, ou uma democracia social e econômica[6].




[1]  ESMEIN, A. Eléments de droit constitutionne lfrançais et comparé. 6. ed., Paris: Recueil Sirey, 1914. FERREIRA, Luis Pinto. Princípios gerais de direito constitucional moderno, 6. ed. amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 1983; ARDANT, Philippe. Manuel institutions politiques e droit constitutionnel. Paris,1992. GICQUEL, Jean. Droit constitutionnel et institutions politiques. 10. ed., Paris: Montchrestien, 1989; TURPIN, Dominique. Droit constitutionnel. Paris: Presses Universitaires de France, 1992
[2]BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 4. ed., Rio de Janeiro, 1980; NICZ, Alvacir A1fredo. A liberdade de iniciativa nas Constituões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981; DUVERGER, Maurice. Instituciones políticas y derecho constitucional. 5. ed., espanho­la, Barcelona: Ariel, 1970; HAURIOU, André. Droit constitutionnel et institutions politiques. 4. ed., Paris: Montchrestien, 1970.

[3] BOBBIO, Norberto. Qual socialismo – Discussão de uma alternativa 2. Ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983; BOBBIO,Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1988; MIRKINE-GUETZEVITCH, Boris. Evolução constitucional européia. Trad. Marina Godoi Bezerra. Rio de Janeiro; José Konfino, 1957; CORRÊA, Ana Maria Martinez. A Revolução Mexicana (1910-1917). São Paulo: Brasiliense, 1983; REIS FILHO, Daniel Aarão. A Revolução Alemã – Mitos e versões. São Paulo; Brasiliense, 1984
[4] BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direitos Humanos na ordem jurídica interna. Belo Horizonte: Interlivros, 1992; GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel. 3. Ed., Porto Alegre: L&PM, 1980. DIAZ, José Ramón Cássio. Estado Social y derecho de prestación. Madrid; Centro de Estudios Constitucionales
[5] KONDER, Leandro. Introdução ao facismo. 2. Ed., Rio de Janeiro: Graal, 1979
[6] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A preteção internacional dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1991. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A questão da implementação dos direitos econômicos , sociais e culturais. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, UFMG, n.71 p. 7-55, 1990; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direitos Humanos na ordem jurídica interna. 1992.

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