sábado, 24 de dezembro de 2011

928- Criminalizar o Uso de Drogas é Constitucional? Coluna do professor Alexandre Bahia

Criminalizar o Uso de Drogas é Constitucional?

Alexandre Bahia

Está em discussão no STF o Recurso Extraordinário n. 635.659 no qual a Defensoria Pública de SP questiona a constitucionalidade da lei que tipifica como crime o porte de substâncias entorpecentes (ilícitas) para consumo próprio.[1] A matéria foi considerada como tendo repercussão geral, pelo que, após julgada, servirá de precedente para casos análogos.
Os fundamentos para o questionamento da constitucionalidade são os direitos fundamentais à intimidade e à vida privada, previstos no inciso X do art. 5º da Constituição.[2] De acordo com notícia publicada pelo site do STF, para o recorrente:
o dispositivo contraria o princípio da intimidade e vida privada, pois a conduta de portar drogas para uso próprio não implica lesividade, princípio básico do direito penal, uma vez que não causa lesão a bens jurídicos alheios.
A Defensoria Pública argumenta que “o porte de drogas para uso próprio não afronta a chamada ‘saúde pública’ (objeto jurídico do delito de tráfico de drogas), mas apenas, e quando muito, a saúde pessoal do próprio usuário”.[3]

Não é nosso objetivo aqui discutir a questão pelo viés do Direito Penal e enveredarmos pelo que é o “bem juridicamente protegido” na atual lei sobre drogas no Brasil. Deixemos para os penalistas tal trabalho. Contudo, há 2 pontos que nos chamam a atenção no presente caso.
O primeiro é que a atual lei anti-drogas, que é de 2006, evoluiu muito frente à anterior, a lei 6368/1976, que tratava o uso como um crime sujeito a prisão.[4] Ou seja, entre a total “descriminalização” e a “prisão” do usuário preferiu-se, em 2006, pelo caminho do meio. De qualquer forma é um avanço porque não se pune mais o usuário com “cadeia”, uma vez que o legislador entende que este é uma vítima do seu próprio vício. Já aí se percebe que houve uma mudança valorativa do comportamento.
Contudo, paradoxalmente, a mudança era tão significativa que já há pesquisas mostrando uma “subnotificação” policial (e subcondenação judicial) quanto ao uso em comparação ao aumento da notificação de “tráfico” (este sim punido com prisão). Pessoas flagradas com pequenas quantidades de droga são logo “enquadradas” como traficantes[5], já que como usuárias elas não seriam presas. Isso contraria a iniciativa da lei, que era diminuir o número de encarcerados e, principalmente, dar um tratamento público diferenciado – e mais eficiente – para os usuários de drogas.
O segundo é a discussão da punição criminal do porte de drogas esbarrar na proteção da intimidade e da vida privada, direitos garantidos constitucionalmente. Mais uma vez, sem querer entrar no mérito sobre qual o “bem protegido” na lei anti-drogras, se a saúde pública ou individual, é interessante pensarmos na discussão sobre o que esses direitos significam. Um dos supostos fundamentais do Direito é a “autonomia”, isto é, do ponto de vista público, a autonomia é o direito de participação na formação da vontade pública – em democracias representativas isso se dá com o voto em representantes que devem aprovar/não leis no interesse daqueles que representam. Do ponto de vista privado se traduz na garantia de liberdade e igualdade.
Ora, leis são, necessariamente, limitações à liberdade “total”. Leis limitam a possibilidade de um indivíduo fazer algo que ofenda/prejudique a outrem,[6] mas também que possam ofender a eles mesmos – como, por exemplo, a lei que nos obriga a usar cinto de segurança (isso porque, apesar da saúde individual e a vida serem direitos “individuais”, ao mesmo tempo são em tese indisponíveis pelo indivíduo, logo, cabe ao Estado sua proteção). A questão, logo, não é se a lei anti-drogas ofende “em tese” a intimidade e a vida privada dos indivíduos, mas se tal ofensa é aceitável de um ponto de vista democrático-constitucional.
Pagar um tributo ofende, “em tese”, o meu direito de propriedade, contudo se justifica pelo benefício que traz para a coletividade, sendo aceito como uma limitação legítima pelos contribuintes – desde que resulte, realmente, em benefícios coletivos e não seja privatizado por alguns, mas essa é outra questão.
Como saber, então, se uma limitação legal à liberdade individual é legítima? Do ponto de vista do procedimento legislativo, representantes eleitos podem, dando seguimento à vontade dos que os representam, estabelecer restrições a direitos visando a obtenção de resultados que beneficiem “a sociedade” como um todo (ex. tributos) ou suas partes (ex. cinto de segurança). No campo penal especificamente não é nada novo se falar em sua natural “seletividade”: pune-se o consumo de certas substâncias entorpecentes como a maconha, que causa dependência e danos à saúde, mas não se proíbe/pune da mesma forma outras, como o tabaco e do álcool. Ora, se “onde há a mesma razão de fato deve haver a mesma razão de direito”, seguindo-se o velho brocardo latino (ubi eadem ratio ibi eadem dispositio), apenas a discricionariedade legislativa (que, sabemos, é levada por certos lobbies muito poderosos) pode fazer discriminações como essa e utilizar “dois pesos e duas medidas”.
É claro que a vontade da maioria nem sempre é aceitável, pois pode ser que ofenda a Constituição. Uma lei que hoje aprovasse a pena de morte, mesmo que contasse com 99% de aprovação popular seria nula porque ofenderia a Constituição – aliás, nem ela pode ser alterada nesse ponto, porque é a própria Constituição que proíbe emendas que sejam “tendentes a abolir” direitos fundamentais.
Isso faz retornar o problema: se nem a democracia pode legitimar de forma absoluta, vemos que há uma tensão entre constitucionalismo e democracia que sempre irá retornar, seja no debate legislativo, seja no judicial. Nos EUA, em 1973, no polêmico caso Roe vs. Wade, a Suprema Corte entendeu que a lei que proibia o aborto era inconstitucional porque violava o direito à intimidade (e privacidade) da mulher.
Dessa forma, seja qual for a decisão do STF nesse caso, entre a proteção do indivíduo (inclusive contra ele mesmo) e a intimidade (e vida privada), o Tribunal irá dar curso à eterna tensão mencionada (constitucionalismo x democracia); de qualquer forma, deverá mostrar, no caso, qual daquelas duas pretensões é a adequada para resolver o caso concreto. Não se trata de “julgar o valor das opções do legislador”, se são “proporcionalmente razoáveis ou não” – como postula o princípio da proporcionalidade/razoabilidade –, mas sim, como dissemos, se considerando o aparente conflito entre aqueles direitos, a reconstrução do caso e do ordenamento jurídico proporciona, perceba-se qual dos princípios é o “adequado”.


[1] Art. 28 da lei 11.343/2006: “Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
[2]X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
[4] “Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa”.
[5] Matéria da Folha de São Paulo de Julho/2011 fala sobre isso: “Nova legislação aumentou prisões no país, mas deveria resultar em penas comunitárias, afirmam especialistas. Número de pessoas presas por tráfico cresce 118% entre 2006 e o ano passado, segundo dados do governo federal. O estivador M.V, 19, foi condenado a seis anos de prisão na última terça-feira por ter sido apanhado com 25 gramas de maconha em Angra dos Reis (RJ). Réu primário, vai cumprir pena em Bangu, no Rio, um dos piores presídios do país. O estudante R. T., 21, ficou dois anos preso em Porto Alegre (RS) por carregar 100 gramas de maconha. Após uma série de recursos, os juízes chegaram à conclusão de que não era traficante -e o mandaram para casa. Os casos são exemplos extremos da lei que deveria acabar com a pena de prisão para usuários de maconha. Às vésperas de completar cinco anos, no próximo mês, a lei provocou o efeito contrário ao previsto: é a responsável pela superlotação de presídios, dizem especialistas. A ideia original era que usuários fossem encaminhados para prestar serviços comunitários ou para assistir palestras sobre drogas -a internação compulsória é vetada no Brasil. Entre 2006 e 2010, a população carcerária cresceu 37%, segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional), do Ministério da Justiça. O índice equivale a mais de dez vezes a proporção de aumento da população no período (2,5%). O número dos presos por tráfico no país saltou de 39.700 para 86.591 entre 2006 e 2010-um aumento de 118%, segundo o Depen. (...) O tráfico aumentou nesses cinco anos, mas a explosão de prisões é resultado da mudança da lei, segundo Luciana Boiteux, professora de direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Há duas razões para explicar o aumento, segundo ela: a pena mínima para traficantes cresceu de três para cinco anos e os juízes estão condenando usuários como traficantes. ‘A lei deixou um poder muito grande na mão de policiais e juízes, e eles têm sido muito conservadores’. Pesquisa feita no Rio e em Brasília pela UFRJ confirma, segundo ela, a tese de que os que vão para a prisão são bagrinhos. No Rio, 66,4% dos condenados por tráfico são réus primários, segundo análise feita em processos de 2008 e 2009. Em Brasília, esse índice chega a 38%. ‘Do ponto de vista carcerário, essa lei é um desastre’, afirma Marcelo Mayora, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Um dos problemas da lei, na visão dele, é que não há limites mínimos para caracterizar tráfico, como ocorre na Espanha. Lá, até 50 gramas de haxixe, não há pena. De 50 gramas a um quilo, é tráfico simples. A pena só fica mais grave quando quantidade vai de um a 2,5 quilos. O governo reconhece que a lei é mal aplicada e diz que vai dar cursos para 15 mil juízes e promotores para tentar melhorar o uso da legislação. Juízes encarregados de aplicar a lei rechaçam a pecha de conservadores e a ideia de uma tabela para caracterizar tráfico. ‘É normal que juízes tenham critérios diferentes’, diz Roberto Barcellos, presidente da Escola Nacional da Magistratura, pela qual já passaram 18 mil juízes. Segundo ele, a lei é boa porque tirou do horizonte a ideia de que punir é prender (...)” (disponível em: <http://www.abead.com.br/midia/exibMidia/?midia=7894>).
[6] Ao mesmo tempo, se garantem ao indivíduo um espaço dentro do qual não pode sofrer ações lesivas de outrem, as leis também são fonte de liberdade, como amplamente discutido pela tradição contratualista desde Hobbes, passando por Kant, Rousseau e Locke.

Nenhum comentário:

Postar um comentário